Em defesa de Cuba

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Por VALÉRIO ARCARY*

O mal-estar social na ilha aumentou e a vida ficou ainda mais difícil

“O que significa dizer “defesa incondicional da URSS”? (…) Quer dizer que, independentemente do motivo (…) defendemos as bases sociais da URSS, se esta for ameaçada pelo imperialismo”. (Leon Trotsky, “Novamente e uma vez mais”, Sobre a natureza da URSS).

As manifestações em Cuba colocam um desafio estratégico para a esquerda, em especial a latino-americana. A defesa de Cuba diante do imperialismo é uma questão de princípios. O projeto de deslocamento reacionário do governo cubano é contrarrevolucionário. A restauração do capitalismo seria selvagem, e Cuba seria recolonizada e se transformaria, na prática, em um protetorado norte-americano como Porto Rico.

Cuba luta contra o tempo, e entusiasma o mundo com façanhas científicas como o desenvolvimento autônomo de vacinas contra o coronavírus em tempo recorde. Uma mudança favorável no contexto latino-americano poderia diminuir o isolamento. Em grande medida isso vai depender do desenlace da luta contra Bolsonaro, e a possibilidade de um governo de esquerda no Brasil.

O mal-estar social na ilha aumentou e a vida ficou ainda mais difícil. Mas as razões que levam pessoas às ruas, mesmo quando são legítimas e compreensíveis, não são um fator suficiente para a caracterização dessas mobilizações como progressivas. Ser de esquerda não nos obriga a apoiar qualquer mobilização.

São quatro os critérios para formar um juízo do caráter de um protesto, revolta ou levante na tradição marxista: quais são as reivindicações ou programa, qual é o sujeito social, quem cumpre o papel de sujeito político e quais são os resultados prováveis.

A ideia, muito popularizada de forma unilateral, de que uma mobilização pode ser progressiva, se as reivindicações são justas e o sujeito social é popular, mesmo se a direção é reacionária, tem às vezes uma esmola ou grão de verdade, mas se ignorar os resultados prováveis é errada. Trata-se de objetivismo. Objetivismo é a desvalorização do papel da direção e a desconsideração do desfecho, desenlace ou resultados que ela provoca.

As manifestações em Cuba não podem ser compreendidas sem a ação pelas redes sociais de núcleos articulados com as organizações da diáspora burguesa e seus satélites na Florida. Ainda que pareçam, superficialmente, acéfalas elas obedecem a um plano de incendiar uma explosão popular e derrubar o governo.

Mas um ano de pandemia produziu uma contração econômica estimada em mais de 10% do PIB. A crise sanitária reduziu a quase nada o turismo, e agudizou a escassez de divisas fortes, dólares e euros, essenciais para o financiamento de importações, e controle da inflação.

O pacote econômico “Tarea Ordenamiento” de dezembro do ano passado realizou uma reforma monetária que unificou as duas moedas em circulação, reforçou estímulos aos pequenos negócios que já operam na escala de meio milhão de micro-empresas, reduziu subsídios ao consumo popular, assumiu condições mais favoráveis de abertura ao investimento externo, e originou aumentos de preços de bens de primeira necessidade. Incluiu, também, aumentos de salários de até 500% para conter a elevação da desigualdade social, e deve ser analisado e criticado no contexto do cerco histórico imposto pelo embargo dos EUA.

Defender Cuba diante das interferências e pressões imperialistas não equivale a defender, acriticamente, as posições e ações do governo do Partido Comunista liderado por Diaz-Canel. Ao contrário, uma atitude solidária internacionalista honesta deve ser crítica, tanto na estratégia quanto na tática. O que significa que aqueles que defendem a revolução devem poder exercer os direitos democráticos de expressão. Há uma fratura geracional em Cuba. A prisão de Frank Garcia e seus três jovens companheiros, militantes reconhecidos, publicamente, como revolucionários trostskistas, por exemplo, é inaceitável.

A burguesia cubana nos EUA é hoje muito mais forte do que era quando da revolução em 1959/61. Ela é uma fração da classe dominante yankee, a mais poderosa do mundo. Ao contrário dos capitalistas chineses na diáspora ela recusou qualquer negociação com Cuba e mantém, irreconciliavelmente, a defesa do bloqueio. Descartada uma estratégia militar que resultaria em uma guerra civil, a aposta é um cruel, lento, e inflexível estrangulamento econômico para fomentar uma crise social sem saída.

Mas essa é a estratégia de Washington. A recente votação contra o embargo na Assembleia Geral das Nações Unidas confirmou que os EUA, embora não recuem, estão isolados nesta linha, com o patético apoio de Israel e agora do Brasil e da Ucrânia. A ordem mundial se estrutura, pelo menos nos últimos cem anos, como uma ordem imperialista não autoriza a conclusão de que exista um “governo mundial”. Há fissuras, brechas e tensões.

O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas e permanecem, portanto, rivalidades entre as burguesias dos países centrais nas disputas de espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos. Europa e Japão não acompanham, incondicionalmente, Washington, porque são conscientes que o perigo de uma guerra civil é uma onda mundial de solidariedade com a possibilidade até de brigadas internacionalistas, como na guerra civil espanhola.

Não se confirmou a hipótese de um superimperialismo, discutida na época da Segunda Internacional: uma fusão dos interesses imperialistas dos países centrais. É certo que lutamos contra uma ordem imperialista. Mas permanecem intactas disputas entre as burguesias de cada uma das potências, e os conflitos entre frações em cada país. O ultraimperialismo, pelo menos até hoje, nunca foi senão utopia reacionária.

Mesmo na etapa político-histórica do pós-guerra, no contexto da chamada guerra fria, entre 1945/1991, quando o capitalismo sofreu a onda de choque de uma poderosa onda revolucionária que subverteu os antigos impérios coloniais. Afirmou-se uma inequívoca liderança política norte-americana, mas essa supremacia não dispensa a necessidade de negociações.

Os conflitos entre os interesses dos EUA, Japão e Europa Ocidental levaram Washington a, por exemplo, romper, parcialmente com Bretton Woods, em 1971, e suspender a conversão fixa do dólar com o ouro, desvalorizando sua moeda para defender o seu mercado interno, e baratear suas exportações. A concorrência entre corporações e a competição entre Estados centrais não foram anuladas, embora o grau em que se manifestam tenha oscilado.

Mas seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da Segunda Guerra Mundial. Ele se expressa ainda, institucionalmente, trinta anos depois do fim da URSS, pelas organizações do sistema ONU e Bretton Woods, portanto, através do FMI, do Banco Mundial, OMC, e BIS de Basileia e, finalmente, no G7. A contrarrevolução aprendeu com a história.

Neste centro de poder está a Tríade: os EUA, a União Europeia e o Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington, e aceitam a sua superioridade desde o final da II Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica internacional em 1989/91 não alterou esse papel da Tríade e, em especial, o lugar dos EUA.

Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece. A dimensão de sua economia; o peso de seu mercado interno; o apelo do dólar como moeda de reserva ou entesouramento; o domínio financeiro e a superioridade militar; e uma iniciativa política mais ativa permitiram, apesar de uma tendência de debilitamento, manter a supremacia no sistema de Estados.

Nenhum Estado da periferia passou a ser aceito no centro do sistema de Estados nos últimos vinte e cinco anos. Rússia e China são Estados que preservaram a independência política, embora tenham restaurado o capitalismo exercem papel subimperialista em suas regiões de influência. A dinâmica da China ameaça a hegemonia norte-americana.

Mas mudanças ocorreram na inserção dos Estados da periferia. São muitas as “formas transitórias de dependência estatal”, nas palavras de Lênin.[i] Alguns têm uma situação de dependência maior, e outros uma dependência menor. O que predominou, depois dos anos oitenta, foi um processo de recolonização, ainda que com oscilações. Há uma dinâmica histórico-social em curso desde os anos noventa do século XX. E ela é inversa daquela que predominou depois da derrota do nazi-fascismo, quando a maior parte das antigas colônias na periferia conquistou, parcialmente, independência política, ainda que no contexto de uma condição semicolonial.

A maioria dos Estados que conquistaram independência política na onda de revoluções anti-imperialistas que se seguiram à vitória da revolução chinesa e cubana perdeu esta conquista: Argélia e Egito, na África, Nicarágua, na América Central são exemplos, entre outros, desta regressão histórica, posterior a 1991.

Ainda existem, porém, governos independentes. Venezuela, Coreia do Norte, Vietnam, ou Irã são exemplos, cada um com suas especificidades.

Mas nenhuma nação independente desperta solidariedade como Cuba. A próxima onda revolucionária no continente irá resgatá-la de seu isolamento. O internacionalismo é a bandeira mais bonita.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

Nota


[i] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Imperialismo, estágio supremo do capitalismo, cap.VI “Sobre países dependents”. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap6.htm

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