Em defesa do Estado de Direito

Clara Figueiredo, série_ Brasília_ fungos e simulacros, congresso nacional, 2018
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Por TARSO GENRO*

O STF disse um basta à pilantragem totalitária no caso do deputado Daniel Silveira

Encontro dois amigos num só artigo. Baltazar Garzón cita a menção de Boaventura de Souza, num texto da sua lavra, que os EEUU “nasceram do ato violento da matança dos índios”. Ele mesmo, Garzón, depois agrega no seu artigo “Traição da Democracia”, que grande parte dos eleitores de Trump são vítimas da globalização: “sem um processo de reconversão que os deixou ao desamparo, sendo então presas fáceis deste neofascismo, no qual as minorias negras ou latinas não eram necessárias, mas – ao contrário – são objeto de repulsa”.

Outro amigo, Paulo Sergio Pinheiro em artigo recente mostra “O novo extremismo de Direita” e assevera: o fascismo “não é um problema ideológico ou psicológico, mas um problema extremamente real e político” (…) pois “sua substância falaciosa e mentirosa (é) que obriga aquele movimento a operar através de meios ideológicos”.

E assim caminha a Humanidade, nas costas do desastre social, ambiental, moral e político, que recupera os monstros e solta os demônios que estavam apenas arquivados nos labirintos do liberalismo político esvaziado de princípios. Para entender a crise temos que sair do cardápio normal das suas análises e buscar socorro em Bloch, Benjamim, Horkheimer e Gramsci, desnudando éticas, culturas, novas moralidades e opressões totalitárias, na era do predomínio do capital financeiro sobre os nossos destinos alienados. Fome e peste, racismo e misoginia, mortes e declínio ambiental radical, eis o cenário doentio que nos submete e deprime.

O seu sentido é a guerra e a sua essência íntima é a banalização da morte e a insensibilidade universal perante ela. DCM publica texto de Kiko Nogueira em 18.01.21 no qual informa que uma jovem “pegou o microfone no sábado passado numa manifestação neonazista, convocada pela Juventude Patriota em Madrid e virou celebridade instantânea”. Isabel Peralta, a jovem fascista disse publicamente: “o inimigo será sempre o mesmo, embora com máscaras diferentes, o judeu … (ele) é o culpado.” Trezentas pessoas marcharam pelas ruas de Madrid celebrando a Divisão Azul, cujos voluntários espanhóis participaram da 2ª Guerra, sob o comando de Hitler.

Exemplo das raízes deste cenário político-moral facilitado pela flexibilização dos direitos fundamentais e das garantias civis e políticas: em 24 de junho de 1922, dois oficiais do Exército alemão da extrema-direita assassinaram a tiros de metralhadora o Ministro de Relações Exteriores da República de Weimar, Walter Rathenau. Judeu nascido na Alemanha, o Ministro era especialmente odiado pelos “lúmpens” das milicias fascistas da época, tanto porque era judeu – descendente de uma família de industriais ricos – como porque fora o grande articulador do Tratado de Rapallo.

Rathenau integrava o Governo de Joseph Wirth, Chanceler da República, originário da ala esquerda do “Partido de Centro” que, como governante do Estados em crise, disse – imediatamente – quando lhe informaram do assassinato do seu Ministro: “o inimigo é da direita!” Pelo Tratado, a Alemanha e a Rússia, dois grandes perdedores da 1ª Guerra desistiam das reparações financeiras mútuas decorrentes dos danos de Guerra e reestabeleciam, livremente, as suas relações econômicas e diplomáticas.

Na época desta morte, ainda havia tempo para – através do Poder Judiciário e dos demais aparatos de Estado – a democracia de Weimar reagir com força contra a cabeça principal da Hidra na Alemanha. Mas era “uma escolha difícil”, a socialdemocracia estava infestada de “judeus” internacionalistas, que não queriam a Guerra, mas Justiça, direitos culturais e religiosos e alguns, o socialismo. Ali a concepção da escolha difícil pariu Hitler, aqui está parindo Bolsonaro.

O conteúdo do Tratado de Rapallo, todavia, tanto irritara os vencedores da Guerra como provocara um ódio violento na extrema-direita do país, em cujo solo já fervilhavam as milícias de fascistas (“freikorps”) antecipadoras do clima de violência que favoreceria a ascensão de Hitler. A situação política, no início dos anos 30, já provocava uma leniência temerosa nos Juízes alemães, cuja maioria foi paulatinamente assimilada pela dogmática nazista, com mensagens que defendiam uma Alemanha “pura” de judeus (expurgada dos democratas em geral, dos comunistas, ciganos, homossexuais, socialdemocratas) bem como propunha uma reorganização bélica da nação, para que ela dominasse os seus “espaços vitais”, caros à ideologia do nacional-fascismo.

Bolsonaro dominou aqui os “espaços vitais” da democracia brasileira quando no seu voto pelo “impeachment” da Presidenta Dilma invadiu e controlou o Poder Judiciário e o Ministério Público, relegando-os à inércia, assaltou o Parlamento paralisado pela sua própria vilania e destruiu o imaginário democrático, transformando a tortura na solução final e rápida para todas as crises liberais.

Em 2016, pressionado para responder críticas que recebi quando apontei em 2013 a emergência de um fascismo “novo tipo” no Brasil, embalado pelos Movimentos de Junho daquele ano, escrevi um texto publicado na “Revista de Derecho Social Latinoamérica””, por iniciativa de outro amigo querido, Antonio Baylos. Ali sustentei: “Para Alexy, como os direitos fundamentais devem ser considerados “princípios”, que na vida prática dos Tribunais podem colidir, é necessário praticar uma “ponderação”, para verificar qual o princípio (que identificado como “direito fundamental) é aplicável à situação concreta que os Tribunais enfrentam.”

No caso da prisão do Deputado Daniel Silveira, determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes, em que o criminoso não só pediu a ditadura como também ameaçou fisicamente e atacou de forma radical, moralmente, os Ministros da Corte Suprema, na ponderação dos valores daquele conflito, o STF entendeu que o valor superior e do qual dependia a preservação de todos os demais, era a defesa do Estado de Direito e o funcionamento harmônico dos seus poderes. Brava e digna decisão que pode iniciar o bloqueio, nos Tribunais da República, da aventura fascista no Brasil, cujo início foi instaurado com a suposta “isenção” do Judiciário em relação ao golpe contra o mandato legítimo da Presidenta Dilma.

A transição interna do Poder Judiciário – dentro do regime liberal-democrático alemão – para a adesão à destruição das garantias e liberdades, como ocorreu com a subsunção dos Juízes ao nazifascismo, tem exemplos importantes de comportamentos de Magistrados. Dentre eles é possível recolher episódios de dignidade e auto respeito, mas também (e principalmente) de miséria moral e canina obediência aos poderosos de turno. Talvez nenhuma “transição” seja tão exemplarmente significativa como a da trajetória do Juiz Edwin Bumke (1874-1945), que diversas vezes se lamuriava e ameaçava “renunciar”, quando chegavam a sua mesa judicial as ações bárbaras dos assassinos de dissidentes — judeus e não judeus – notícias que não evitaram que Burke permanecesse fiel, até o fim, na sua traição à democracia.

Refiro-me acima ao termo “transição”, porque as mudanças de regime que implicam em transformações jurídicas no Estado (seja pela interpretação das leis “antigas” ou através de um novo sistema de normas impostas pelo vencedor do conflito político) ocorrem – principalmente – de duas formas: ou como uma acumulação de “mudanças moleculares”, induzidas pelo grupo que busca ser “dirigente”; ou como ruptura brusca, com num golpe de estado clássico, onde a força predomina para depois instalar, se puder, a sua nova hegemonia.

Os dois processos despertam, de diferentes formas – na sua evolução ou na sua ruptura violenta – movimentos internos ao Poder Judiciário (de resistência ou adesão ao novo regime) nos quais se sucedem a pressão da força e o estímulo ao consenso. Na ruptura, predomina a coerção, mas na “acumulação molecular”, adquire supremacia a ideologia formada por um consenso manipulado, que vai sendo lastreado pela força.

Ambicioso, inteligente – rico e conservador – o juiz Bumke faz seu percurso desde a sua nomeação à Corte Provincial de Essen, passando pelo exercício da jurisdição na Terceira Sala Penal da Prússia em 1932, na qual ele toma uma decisão que “legaliza” – pouco antes de Hitler chegar ao poder – a remoção forçada do Governo eleito Socialdemocrata, ordenada de forma arbitrária pelo Chanceler Von Papen. A carreira de Bumke prospera desde Essen, como Magistrado de um Estado de Direito em crise, até a sua nomeação à Corte Suprema do Reich, em 1939. Em 20 de abril de 1945, todavia, quando o exército americano entra em Leipizg, o Juiz Bumke, que fora covarde e servil ao nazismo, suicida-se.

A maior parte do Poder Judiciário alemão durante o ascenso de Hitler, até este chegar à condição de Chanceler em 1939, sofreu uma série de mutações, algumas abertas, outras recônditas. Elas vão dando sentido novo ao conceito de “ordem”, até o momento em que livre de quaisquer amarras constitucionais (que foram “derrogadas” pela ação prática da política nazi) Hitler instala o Estado Total e passa ditar o direito, através do “discurso” que desenha uma nova ordem composta pelo ditador e seu grupo hegemônico.

O conceito de “ordem”, que era baseado em valores expressos normativamente – com estabilidade e previsibilidade – passa a se assumir como conceito de “ordem” que é contingenciado pelos valores do grupo político no poder, por fora da ordem constitucional formal do país. A Polícia, os cargos da administração, as estruturas de controle social e ambiental, as estruturas empresariais do Estado – nesta ordem- passam a responder diretamente ao pensamento arbitrado pelo Líder, até que o Estado se “privatize” totalmente, apanhado “por dentro” pelo grupo dirigente orgânico do ditador e “por fora” pelas suas milicias privadas, que vão ampliando sua interferência até às Formas Armadas tradicionais.

A prisão do deputado Daniel Silveira (PSC) pelo Supremo Tribunal Federal, confirmada por uma larga margem de votos na Câmara Federal, marca um outro compasso na crise política do país. A crise fora pautada, até então – sem qualquer reação dos Poderes Judiciário e Legislativo – pelas ofensivas da extrema direita do Governo. Sua forma foi esboçada nos Movimentos de junho de 2013, passou pelo impeachment da Presidenta Dilma e foi acrescida de ameaças de morte aos petistas e à esquerda, atentado à vida do Presidente Lula (até hoje não esclarecido) recebido com total leniência do Sistema de Justiça.

A crise engorda na política negacionista do Presidente, contra a ciência e a vacinação, cheia de momentos culminantes de desacato à democracia, instigação a homicídios, posturas genocidas, movimentações golpistas na frente do STF e dos quartéis. Esta decisão do STF, ao contrário do que dizem alguns respeitáveis juristas do nosso país, pode ter a capacidade de afirmar o Supremo como verdadeiro Guardião da Constituição, se não for tarde demais para que a sociedade deixe apenas de temê-lo, mas também possa contar com ele para bloquear a mentira e o ódio ao Estado de Direito, que este Governo exala por todos os poros.

Colocado para escolher entre os valores que sustentam as prerrogativas e os valores que são pilares da democracia, logo das próprias prerrogativas, o STF – desta feita – não faltou ao país: disse um basta à pilantragem totalitária. Disse que escolhia precisamente aquele sistema de valores do Estado de Direito, únicos que podem dar estabilidade e permanência às próprias prerrogativas do Parlamento, as mesmas que o pilantra usava – naquele momento selvagem – para destruí-las através da ditadura. Esta decisão do STF ficará na História, ao contrário do paradigma do Juiz Bumke, que perdeu primeiro a dignidade e depois a vida, a partir de uma única escolha feita entre civilização e barbárie.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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