Entre a ficção e o fetiche

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Eleutério Prado*

A política econômica não pode ignorar as classes sociais, assim como a disputa constante pela repartição do valor criado na produção de mercadorias.

Nouriel Roubini vem sendo considerado, na esquerda e na direita, como um mago: eis que, ao contrário de seus colegas mais premiados, previu a crise de 2007-08. Mas Michael Roberts, o blogueiro marxista mais conhecido atualmente, também previu essa grande crise, mas nem por isso tem sido tomado um mago. É evidente, o primeiro tem uma grande empresa de consultoria e sabe fazer um marketing bem feito para transmitir a ideia de que é capaz de fazer previsões cruciais, o que evidentemente interessa aos grandes investidores. Assim, é certo, ganha mais e mais dinheiro, ao contrário do economista de esquerda que o perde porque nunca para de criticar.

Roubini, recentemente, escreveu um artigo para prever que a crise em curso será igual ou pior do que a de 1929. Esta última foi seguida de um estado depressivo da economia capitalista, em especial nos Estados Unidos, a qual durou até o começo da Segunda Guerra Mundial. Ele está apavorado e, por isso, recomenda uma grande distribuição de dinheiro para os desempregados e para os pobres nos Estados Unidos e na Europa. O que será que ele teme?

Um parágrafo em seu texto chama a atenção: “Essas intervenções financiadas pelo déficit devem ser totalmente monetizadas. Se elas forem financiadas por meio da dívida pública padrão, as taxas de juros vão subir acentuadamente e a recuperação será sufocada no ninho. Dadas as circunstâncias, as intervenções propostas há tempos pelos economistas de esquerda, da escola da Teoria Monetária Moderna, incluindo a distribuição de dinheiro, precisam fazer parte do mainstream”.

Ora, é possível ser favorável ao apoio aos precários e precarizados de todos os tipos, sem aderir à Teoria Monetária Moderna. Ela deveria ser feita por meio da criação de um salário social – renda básica universal – financiado com base em uma maior taxação das rendas e das riquezas dos capitalistas e seus associados.

A rejeição à essa teoria vulgar e agora amplamente vulgarizada deve ser teórica. Ela tem sido difundida inclusive por um mago brasileiro que, para fugir dos pobres e da barbárie que prospera na “pátria amada Brasil”, foi morar em Portugal.

É evidente que sem trabalho não há criação de valor. Mas isto ainda não valida a teoria do valor trabalho. Mostra, no entanto, que a geração de valor se reduz quando se reduz a quantidade de trabalho empregada na produção de mercadorias. O que fundamenta a teoria do valor trabalho é o fato ineludível de que o trabalho se torna uma relação social assim que uns passam a trabalhar para os outros. E que, no capitalismo, em que se generaliza esse modo de sociabilidade, essa relação toma a forma de uma relação de coisas, ou seja, de mercadorias. Tais coisas, assim, se tornam muito animadas, dançam loucamente nos mercados.

De onde vem, pois, o caráter fetichista da mercadoria. Decorre simplesmente do fato de que na vida cotidiana o valor passa a ser atribuído às próprias coisas; advém, pois, de uma confusão “natural” da forma de valor com o suporte dessa forma, ou seja, o valor de uso. Assim se pensa, por exemplo, que o ouro é dinheiro, que a máquina é capital etc. O fetichismo “não é mais nada” – diz Marx – “que determinada relação social entre os próprios homens que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”.

Pois bem, parafraseando Ruy Fausto, agora é preciso dizer que há duas ilusões reais simétricas implicadas na sociabilidade mercantil: o fetichismo da mercadoria e a ficção do valor de troca como um significante em si mesmo (para ele, uma convenção). E a crítica dialética, como aponta, tem de ser crítica dessas duas ilusões opostas. Como se sabe, Marx mostra que a contradição interna à mercadoria, valor de uso e valor, desdobra-se numa contradição externa entre a forma relativa de valor e a forma equivalente. É preciso partir daí.

Como a forma equivalente oculta a relação social, ela é o lugar próprio do fetichismo. Como a primeira, de modo contrário, indica haver uma relação social, a qual figura como relação de troca, ela é o lugar próprio da ficção. Julga-se, assim, que o valor de troca decorre de um acordo entre indivíduos, que resulta de uma interação regulada transindividualmente. Mas não, evidentemente, por uma objetividade de valor. É, pois, a partir dessa segunda ilusão real que se desenvolveram as teorias do valor subjetivo que prosperaram na Economia Política por meio das teorias neoclássicas e austríacas.

Ora, quando o dinheiro é o ouro, ele se apresenta por excelência como o lugar do fetichismo da mercadoria. No entanto, como se sabe há muito tempo, o ouro como dinheiro pode ser substituído, especialmente (mas não só) na esfera da circulação, pelo dinheiro papel. Marx, diz, então, que o dinheiro papel figura meramente como um signo do ouro.

Ora, com a superação, primeiro, do padrão ouro na década dos anos 1930 e, depois, do dólar ouro na década dos anos 1970, o dinheiro papel ganhou vida própria e passou a ter o estatuto de criação ex-nihilo. À medida que auferiu assim um caráter de mera convenção social, passou também a figurar como uma ficção. Tornou-se, de fato, dinheiro fictício. Mesmo que não seja em si mesmo valor, ele figura como representação de valor, um valor, aliás, que nunca mais cessou de se desvalorizar desde então (como prova o gráfico abaixo).

Suponha-se agora que todo o dinheiro é fiduciário e que, como um todo, representa um determinado montante de valor. Com base na teoria do valor trabalho, num contexto simplificado, pode-se dizer que a quantidade de dinheiro requerida para realizar o valor produzido em dado período é igual ao montante desse valor dividido pela velocidade de circulação do dinheiro. Caso, por qualquer razão, mais dinheiro seja injetado no sistema econômico, o excesso se transformara em inflação.

Um problema surge quando se nota que a injeção dinheiro na forma de gastos autônomos do governo ou na forma do crédito ao setor privado pode alimentar a realização do valor das mercadorias já produzidas e, assim, estimular a produção. Eis que a supressão do padrão ouro e do dólar ouro no curso do século XX visou em última análise enfrentar as tendências estagnacionistas das economias capitalistas. Esse objetivo, entretanto, foi contrariado até certo ponto justamente pelo viés inflacionário que foi introduzido no sistema. Note-se que a inflação cria a indexação e esta última tende a realimentar a inflação, criando uma inércia inflacionária.

Assim, a política monetária, combinada com a política fiscal, passou a agir para pôr essas economias em marcha forçada. Mas por que esse novo regime de política econômica se tornou necessário na história do capitalismo? Ora, desde Marx se sabe teoricamente que a Lei de Say, segundo a qual a oferta cria a sua própria procura, não é válida. E não vale no mundo real simplesmente porque as vendas (M – D) podem não ser seguidas de compras (D – M), mas por entesouramento do dinheiro.

Keynes também se opôs a Lei de Say, inventando um novo termo para esse mesmo fenômeno que, aliás, é intrínseco ao modo de funcionar do capitalismo: preferência pela liquidez. Ora, quando cai a taxa de lucro, quando há superprodução, os capitalistas deixam de investir na produção, passando acumular dinheiro como dinheiro e a investir preferencialmente no mercado financeiro, na roda da especulação. Se, pois, o capitalismo passa a tender à estagnação num certo momento da história, o dinheiro papel já não pode continuar sendo signo do ouro, não pode estar a ele atrelado, pois, agora, tem de figurar como dinheiro puramente fiduciário.

Na década dos anos 1930, como se sabe, prevaleceu a estagnação. Ela foi vencida, em parte, pelas políticas keynesianas e, em parte, pela própria Segunda Guerra Mundial, que possibilitou a desvalorização e a destruição maciça de capitais. À medida que a estagnação se impôs novamente – e isto ocorreu já no fim da década dos anos 1960 e por toda década dos anos 1970, o capital passou a se valorizar em medida crescente na esfera financeira, na forma de capital fictício. Ora, isso já mostra que não adianta deblaterar meramente contra a financeirização, sonhando com um “capitalismo bom”, com a volta da socialdemocracia. Pois, a financeirização, que não é um fenômeno inteiramente novo, torna-se uma forma privilegiada de circulação do capital quando o capitalismo entra já em seu ocaso.

Como John Keynes nunca deixou de ser um herdeiro, ainda que rebelde, da teoria neoclássica que aprendera com Alfred Marshall, ele nunca aceitou a teoria do valor trabalho e, por isso, nunca quis ver a importância crucial da produção na criação de valor e, assim, na criação das condições da demanda. Se é certo que a oferta não cria imediatamente a sua própria demanda, é certo também que ela – e somente ela – cria a possibilidade da demanda. Ora, na contramão da boa teoria, Keynes inverteu a Lei de Say e criou a Lei de Keynes: a demanda cria a sua própria oferta.

Para Keynes e todos os keynesianos, o dinheiro é uma convenção criada pelo Estado para tornar possível uma economia de trocas generalizadas. Caem desse modo na ilusão proporcionada pelo dinheiro fictício, uma forma do dinheiro que não expressa valor-trabalho em si mesma, mas o representa socialmente. E se o representa tem de ter uma relação, agora oculta e mistificada, com o dinheiro-mercadoria, com o dinheiro-ouro – que agora reside apenas nos cofres dos bancos centrais das potências econômicas, dos Estados Unidos sobretudo.

Nessa toada, denominam o capitalismo, ou seja, o sistema da relação de capital, de economia monetária de produção, afirmando que a meta inerente do sistema é a produção de valores de uso – e não, portanto, a valorização do valor. Para eles, o capital não é valor que se valoriza mediante a exploração dos trabalhadores, mas meios de produção. Caem desse modo no fetiche da forma mercadoria, pois confundem essa forma com o seu suporte material, ou seja, com o valor de uso.

É a partir dessas duas premissas – a Lei de Keynes e a ficção que consiste em tomar o dinheiro fictício como o verdadeiro dinheiro – que surge a teoria monetária moderna. Essa teoria sustenta que o Estado pode financiar os seus déficits orçamentários por meio da emissão monetária já que não tem restrição orçamentária tal como os agentes do setor privado. Por causa disso, ele pode fazer o milagre da multiplicação do emprego; ou seja, o Estado pode e deve se tornar o empregador em última instância, visando levar a economia capitalista ao pleno-emprego. Para tanto, ao invés de derivar teoricamente a forma dinheiro da forma mercadoria tal como ocorre em O capital, ela se vale de uma interpretação peculiar da história do dinheiro.

A teoria monetária moderna minimiza as limitações do Estado para expandir os seus gastos sem a devida cobertura de impostos ou empréstimos tomados principalmente junto aos capitalistas financeiros. Como se mostrou, ela no fundo ignora a natureza do capitalismo. Ora, a política econômica não pode ignorar as classes sociais, assim como a disputa constante pela repartição do valor criado na produção de mercadorias.

Ela não vê que a oferta de mercadorias está limitada pela grandeza da taxa de lucro que poderá ser obtida no futuro, e não pelo pleno-emprego. Ademais, ela minimiza a incerteza que será introduzida pela aceleração da inflação. Ela também não parece ver que agora a produção está limitada pelas restrições postas pelas quebras das cadeias de produção e que, por isso, a criação e ampliação do salário social sem cobertura de impostos ou empréstimos vai gerar inflação.

E a inflação não é desejada pelos trabalhadores porque eles veem os salários nominais aumentarem, mas os salários reais se manterem ou mesmo diminuírem. Além disso, a inflação tem um custo psicológico – expressão de economista – enorme; ela não deixa a cabeça econômica descansar.

Nesse momento crucial, a esquerda não deveria confiar nem na teoria monetária moderna nem nos magos que agora querem criar emprego e renda ex-nihilo. Ela tem a seu dispor uma teoria consistente do capital e do capitalismo. Ela, em minha opinião, deve defender, sim, a criação do salário social, mas com base numa mudança radical da repartição da renda. Em caso contrário, mais à frente será novamente chamada de irresponsável pelos políticos e economistas neoliberais. E, de fato, aí eles terão, sim, alguma razão!

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior da FEA-USP.

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