Por CLÁUDIO R. SOUSA*
Comentário sobre o livro de Rui Rocha
1.
As várias versões de Escato de Rui Rocha expõem um início difícil, marcadas pelas seguidas correções ao longo de seis anos, mas que parece ser o caso em que o autor teria intuído primeiro e com mais firmeza o fim da obra. Sabemos também que o título inicial seria Cólon, seguindo certa lógica pós-moderna de não usar nome próprio como título de romances. Depois Scato, a latinização como verniz atemporal?
Porém, o mais curioso é que se a obra não emplacou um nome próprio no título, fez melhor e mudou o nome do autor, que antes era Rui S. (atualmente assina Rui Rocha). Não se pode ignorar que os nomes próprios quando compõem o título dos romances assumem, de certa forma, a centralidade do problema do ser na estrutura da narrativa, então, parece-nos coerente a opção por um substantivo comum, pois nesse caso veremos o desfibramento e a reificação do sujeito, diante do real, levado à cisão/duplicação/fragmentação em personagem, narrador e autor sobrepostos em uma mesma voz narrativa que vai se deteriorando mas sobrevive ao decaimento do corpo até o fim do romance.
Esse romance de fato não carece de nome próprio. Em princípio, o significado de escato (escatológico) nos remete apenas ao fim inescapável, mais além, à impossibilidade de definir ou qualificar por possuir um sentido negativo, mas especialmente ao que se teme, pois está inserido em uma existência muito baixa para receber uma distinção qualquer. Em linguagem vulgar escato pode ser usado, por exemplo, para se referir a um crime bárbaro ou a um acontecimento vil do ponto de vista ético ou moral.
A anomia deste raciocínio torna-se mais clara quando o narrador/personagem não consegue sequer nomear as criaturas que fizeram parte de seu passado: a mulher, o músico, os companheiros de prisão. O ser vivo mais referido afetuosamente seriam os fungos dentro de um processo de identificação, sobretudo por que remetem ao estágio de formação inicial de qualquer forma de vida, bem como são aqueles que sobrevivem à morte de todos.
Nessa perspectiva, lembra o destino do corpo, a morte, último signo, seria um prêmio frente a um suicídio fracassado e à petrificação do sujeito começando pelo tratamento com barro no pé contra a picada de um bicho, recuperando o sentido de destruição final presente no título.
Esse narrador/personagem trata a nomeação como um gesto arbitrário, atribuindo a esta arbitrariedade uma certa indiferença, que se enquadra como caso especial de ódio, ao retratar todos os personagens anonimamente e evidenciar o problema da linguagem e do ser divorciados do mundo.
Abolir o nome próprio nesse caso significa abrir mão da salvação ou da condenação eterna de uma vida particular em todos os níveis, por isso talvez não devamos descartar completamente o sentido da palavra escato no romance de rui r., que, além de conservar a ideia de último, final, daquilo que não se pode escapar por ser demasiadamente ruim ou horrível, ou ainda, em determinado sentido, odioso.
2.
No caso da anomia no romance de Rui Rocha é fraco inferir que o ambiente infernal, ainda que seja um inferno ventilado de um hospício, de onde se deduz a fragilidade de um diabo derrotado, aponte somente para o ser e não a tudo aquilo que é atravessado pela linguagem.
A decisão do autor de substituir o título Cólon por escato pode remeter justamente a uma mudança da problemática central do romance – não podemos olvidar que o processo literário organiza-se em torno da escolha do tema e de sua elaboração – durante seu processo de escrita: o deslocamento do sofrimento corpóreo – o foco no sofrimento físico ainda é uma espécie de autopreservação do sujeito perante a realidade – para o sofrimento psíquico (nas palavras do personagem, “aqui se mata a alma com o corpo”), e partindo do indivíduo para o coletivo.
A questão do ser, que ocupa boa parte da narrativa, é cruzada neste romance pelo problema da linguagem. Esse deslocamento pode ser identificado inclusive na organização da narrativa.
As primeiras páginas são dedicadas a situar o narrador/personagem, cuja voz deveria soar mais fúnebre que propriamente estressada, num reino diferente e impreciso, aquele em que não é mais possível dizer quem fala, nem onde fala, nem quando fala e isso se nos revela uma perspectiva quase individual, porém de um sujeito vazio como resíduo descartável do sistema, ou como ele mesmo se define só um resto que virou lixo, mas ao mesmo tempo como marca profunda da história de nosso tempo.
A inclinação linguística de escato representa um desvio da paródia explícita de O inominável, de Beckett, com não sei quê de Rubem Fonseca, para certa espécie de paródia sem afeto, alcançando o sentido de uma retórica da contradição que se caracteriza pela pretensão do personagem em seguir ou por aporia ou por meio de pensamentos evasivos que são invalidados à medida que são retificados infinitamente. Ao longo do romance, o leitor perceberá que não há alternativa, a consequência dos bloqueios são justamente as sucessivas invalidações de indagações, afirmações e negações.
Das perguntas que brotam sem filtro, como o próprio narrador diz: “não é como se eu estivesse afim”, segue a disposição ou a decisão de não questionar profundamente. Além disso, as perguntas iniciais em nenhum momento serão de fato respondidas ou sequer o narrador/personagem tem interesse verdadeiro nisso, uma vez que a ausência de respostas sustenta o jogo de hesitar, afirmar e negar.
3.
Esta retórica da contradição orienta a abordagem das categorias fundamentais da narrativa questionadas logo na abertura. Todas as afirmações relativas a espaço – o ambiente principal parece ser a sala de tortura de um sanatório – tempo e personagem são provisórias e indeterminadas, seguidas de imediata retificação.
O que fica claro ao final é que a retórica da contradição obedece a uma lógica, na qual a linguagem só pode ser pensada como algo separado da realidade, uma vez que o pensamento em voz alta, nessa circunstância mais para instável que agressiva, destrói, mediado pelo sentimento de ódio, todos os pressupostos que levantou sobre si mesmo e sobre aquilo que o cerca, isto é, há um certo repúdio, originário de um narrador/personagem narcisista, ao mundo externo por meio de seu extravasamento que pode ser materializado no ódio despertado pela delicadeza do som da flauta do músico, que é uma espécie de Pã ou Fauno negro destituído de mitologia, que arrecada moedas em um parque.
Isso é suficiente para liberar de uma só vez todos os demônios que habitam a memória do personagem. Ele odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir, tudo que constitui uma sensação desagradável e faz isso para encobrir uma futura frustração da satisfação das necessidades autopreservativas para, em seguida, retomar o jogo de indagações, afirmações e negações que orienta inclusive a continuidade do livro, uma vez que o fim é a negação ou suspensão de tudo o que foi afirmado anteriormente.
A narrativa inicia-se com um imenso monólogo, constituído por 68 capítulos, dedicados às “meias lembranças” do narrador/personagem que se declara um morto-vivo. O personagem central pretende desenvolver tudo o que não sabe sobre o que denomina economicamente como eu, um sujeito insone que fala desesperadamente na tentativa de efetivar algo: muita explicação, nenhuma ideia, e a estratégia discursiva, no fim, envelopa o nada.
Esse movimento aparentemente colocaria escato na esteira dos romances voltados à problematização do ser. Mas o diferencial aqui é que a despersonalização do eu decorre da problemática da linguagem. Isso significa que o narrador/personagem coloca em questão ele mesmo e assevera que “o mistério deve ser eu”, sem olvidar os outros elementos que indagou desde o início.
A principal justificativa para o personagem ignorar tudo o que foi dito anteriormente, para iniciar uma nova incursão sobre o ser, o lugar e o tempo que o cercam, é uma radical percepção dos limites da linguagem empobrecida em virtude da parca experiência de vida de um indivíduo infantilizado.
O que resta no monólogo é a constatação final de que as criaturas são produtos da interpretação, signos da linguagem; sem eles, existe apenas o vazio formalizado em uma ficção sem trama (a fábula, o que aconteceu ao narrador/personagem, não sobe para o nível da trama, porque ele não consegue narrar os fatos ocorridos), afeita a um sujeito escancaradamente fascista, um fascismo de matiz tropical, cuja subjetividade foi tragada por uma sociedade banal e moribunda.
4.
Dos estratos da narrativa não se pode esperar outra coisa que não a recusa de categorias como divino, humanidade ou até pensamento, pois a recusa é a grande responsável pela superação da estrutura paródica tradicional e, por consequência, da instauração daquela paródia sem afetos, que opera sobre o eixo da despersonalização.
Todavia é tanto uma paródia fria do ser quanto dos romancistas dos séculos XVIII e XIX. Ao atribuir fases de sua vida à convivência com uma mulher que o criou à base de um certo leite negro, mas que o personagem gostaria de ter tostado no forno da casa, uma misteriosa chaminé quadrada, levemente inspirada no poema A fuga da Morte (Paul Celan).
Ele tenta resgatar algo, entretanto não consegue, pois o relacionamento incestuoso que mantém com a mulher, no fundo uma alegoria da morte, é a relação do mesmo com o mesmo, ele admite que a carne dele não era lá muito diferente da dela. Mas enquanto fala de si para passar o tempo, já que não pode fazer nada, também conta histórias paralelas. Ele não as conta como se fossem vividas, mas conta as histórias que acha que aconteceram, como o ataque aéreo sobre a cidade que deixou inúmeros mortos.
Essa relação implica que o acesso ao “ser” só pode ser intermediado pela linguagem em vista do caráter retificador e oscilante do discurso, tudo o que foi dito pode ser negado, uma vez que se explicita que o personagem não possui consciência de uma existência real, bem como admite que a própria existência seja apenas hipotética.
Mas é necessário advertir que o grande risco de se enveredar por uma abordagem de temática filosófica da obra de Rui Rocha surge nos poucos, mas bons momentos, em que o pensador se sobrepõe ao escritor. Sob nosso ponto de vista, a tarefa crítica, enquanto intervenção da razão histórica, precisa evitar esse caminho sedutor e superar aquilo que seria efeito da imagem de um escritor pretensamente universalista, uma vez que não se faz menção direta à nacionalidade do personagem – mas caberia perfeitamente à identidade do brasileiro a opinião que o narrador tem de si próprio: um trouxa no cu do mundo – aqui a barbárie encontra solo fértil – dedicado a descrever uma sociedade pós-capitalista.
No entanto, o problema não parece estar em descrever Rui Rocha dentro desta ou daquela tradição, mas em realizar uma abordagem que desloque sua obra, que claramente dialoga com temas caros à filosofia e com a conjuntura histórico-social. Antes de censurar algum tipo de universalismo a rui r., seria preciso analisar em um outro trabalho de mais fôlego, em um balanço geracional, o quanto isso ainda é comum entre autores dentro da situação específica do século XXI.
Esta insistência do autor, melhor dizer da estratégia autoral, na abordagem reflexiva que gera a si mesma não demorará a alertar sobre os limites da percepção humana, que orienta as dúvidas acerca de tudo que envolve o narrador/personagem em seu processo de desumanização ou, de outra perspectiva, em determinada subjetivação fascista. Contudo, mais que estabelecer estas relações, precisamos questionar por que este tema sempre ressurge.
No entanto, a constatação da arbitrariedade do signo linguístico, que aparece em escato, não é de forma alguma uma mera divagação, pois surge das relações imanentes no seio da cultura pós-moderna/neoliberal. Ainda que reticente a uma abordagem universalista de Rui Rocha, é preciso atentar para um elemento muito óbvio que orienta sua representação: a ideia de ruína.
5.
É a lógica da ruína que norteia sua escrita, ruína física, o personagem é desprezado por qualquer um que desejasse “currá-lo” e até mesmo pelos cães que poderiam devorá-lo; ruína ética e moral, na relação incestuosa, bem como explicitada em preconceito racial, xenofobia, sadismo/masoquismo, feminicídio, de modo que é possível interpretar suas incursões não como uma tentativa frustrada de chegar à representação do mundo pós-capitalismo, mas como uma alegoria da ruína por meio da qual seria possível interpretar a obra como sintoma das contradições que acometem o homem contemporâneo nos últimos estertores do capitalismo, além de apresentar escato como a realização de um projeto estético malogrado que parte dessas mesmas contradições, orientado pela hipótese de que ser escritor fora do mainstream, ou do mercado da literatura, necessariamente significa arruinar-se.
Na obra de Rui Rocha é possível reconhecer a consigna do escritor que se arruína, bem como a imagem estorvada de um leitor abandonado esforçando-se em detectar alguma leitura esquematizada e crível do romance. Por isso o autor aborda também um tema característico de nosso tempo: a impossibilidade do conhecimento mediado pela razão instrumental, pois a partir de um personagem destituído de subjetividade ou no limite constituído por uma subjetividade frágil, surge na obra uma mimese difusa.
Rui Rocha identifica dois tipos de impedimentos: primeiro em relação ao mundo sequestrado, que não pode ser representado por que sua forma é enganosa, ou melhor, é representação; segundo em relação ao personagem, este não pode evitar que o mundo seja interpretado, uma vez que só pode ver a partir da própria limitação.
Isso posto, inferimos que, na visão de Rui Rocha, a real condição do escritor é a de alguém que interpreta o mundo, é um ser de intenção destinada ao fracasso. Esta condição resulta no afastamento definitivo do mundo, ao invés de pegá-lo pelo avesso, pois jamais pode ser descrito em si mesmo, quanto menos quando a matéria narrada vem embebida em ódio potente contra qualquer princípio de realidade.
Essas reflexões sugeridas pela obra reafirmam a impossibilidade de toda e qualquer forma de expressão artística de um tempo como o nosso estar colada à aparência ordenada do real.
Rui Rocha não só exalta como também assume o risco da impossibilidade da expressão por reconhecer que não pode escrever sobre algo, estando completamente livre das noções clássicas de tempo e espaço. Em decorrência disso, ele escreve sem a vaidade do triunfo nem a necessidade de sustentar um diálogo protocolar minimamente interessado.
Esta defesa da inviabilidade de conhecimento por meio da razão instrumental burguesa reverbera não só a ideia de ruptura, e a resolução de superar os enganos dos sentidos, de afastar-se dos pressupostos da cultura e da história, como também deveria ser o gesto fundador de uma consciência primária, mas que acaba fornecendo uma representação da consciência e da subjetividade capturadas e destruídas pelo sistema que produz um vazio intelectual, do qual surge a indiferenciação entre personagens e coisas do mundo.
6.
São esses elementos fundantes do sujeito esvaziado que aparecem na obra de rui r., porém não mais como uma referência intelectual. Não é difícil relacionar as representações do narrador/personagem de escato com as inúmeras representações oferecidas pela reflexão. A sua característica fundamental seria a ausência de qualquer tipo de individualidade.
Como consequência, o personagem emergente é gerado fora do mundo objetivo, representado somente numa pura extensão homogênea. Entretanto, todas as coisas que estão no mundo são resultados de um processo histórico mediado pela representação dos sentidos.
A descrição desse estado de coisas é o que sustenta escato. A incapacidade de nomear o ser, ao mesmo tempo em que não pode recorrer a ele sem fazer uso da linguagem, sublinha o aspecto inalcançável de uma realidade inapreensível.
Esta lógica está presente na ironia do personagem em atribuir a si mesmo uma espécie de corpo em processo de petrificação, que deixa os órgãos dos sentidos parcialmente expostos, mas fragilizados e sensíveis diante de quaisquer variações, a começar pelo aparelho digestivo, o único sinal vital vai da boca ao ânus, e ambos numa equivalência feminina estranha ao comportamento misógino/homofóbico constantemente referenciado pelo narrador/personagem.
Esta profusão dos sentidos não confere maior percepção do real. De acordo com esta indistinção entre personagem e coisas, poderíamos esperar que um geraria o outro ao falar sobre si mesmo. A solução encontrada foi superar a razão, cujo sinônimo como pensar seria insuficiente. Em outros termos, o personagem narrador faz uma separação profunda entre pensar e existir.
Rui Rocha aproxima a reflexão à ideia de representação, que abrangeria a forma como o mundo se reorganiza a partir da condição de sujeito percebido, como se a percepção fosse um modo de tomar posse daquilo que há no mundo.
No entanto, esta representação refere-se a um modo de representar de maneira específica, sequer pode-se mergulhar no domínio do subjetivismo, uma vez que ainda que as coisas não existam anteriormente, sob a forma como o mundo é percebido, ele nunca pode ser reduzido a uma compreensão subjetiva, uma vez que o mundo em perspectiva não é mera ficção de uma psique doentia, mas sim uma entre outras representações de uma realidade por si só difusa também, embora revestida de aparência ordenada.
Seja o que for que se entenda por realidade, na perspectiva do personagem de Escato, ela não pode ser denominada, definida, nem mesmo representada mimeticamente, pois o mundo não passa de uma hipótese e permanece em posição aleatória diante dos sentidos. Esta visão inclusive seria determinante para a descrição do escritor como aquele que se arruína.
Seria mera repetição inútil dizer que após Escato não haveria retorno para as convenções do romance. Tais convenções são oferecidas de bandeja após as questões iniciais. O imenso monólogo coloca a radicalização das estruturas narrativas contra o próprio personagem, um sepultado vivo, cuja identidade deslizante transforma o romance numa profusão de palavras e ideias que intentam gerar a si mesmas, num movimento circular, em que o suposto fim não encerra a narrativa.
A incapacidade do narrador de se definir ou de apresentar os outros personagens, particularmente o músico, que é seu antípoda, devido ao triângulo amoroso que os envolvia – personagem, mulher e músico- situando suas ações em indeterminados tempo e espaço, transforma a narrativa numa reflexão cíclica sobre como narrar.
7.
Então chegamos ao lugar comum da literatura pós-moderna: a reflexão estética torna-se parte da matéria narrada em virtude da pretensão de verdade do escritor, que identifica a indistinção entre ficção e reflexão, e cuja dissolução, numa subjetividade vaga, revela a desconfiança do relato, ao mesmo tempo em que o monólogo interior expõe o rompimento com a ordem externa.
Numa linha que lembra aquilo que rui r. opera em Escato, ocorre um rompimento da relação entre personagem e mundo, bem como denuncia-se o engodo da representação, colocando o narrador, dono de uma racionalidade excessiva tanto quanto fantasiosa, mas insuficiente, que não escapa ao conhecimento enciclopédico, contra a possibilidade de uma verdade histórica.
Se antes, no chamado realismo formal, as reflexões do narrador eram de ordem moral, limitadas a tomar partido ante as ações de seus personagens, nesse momento elas abalam a relação do romance com o mundo empírico, no sentido que impõem a necessidade de marcar a diferença entre o universo da literatura e o universo real, principalmente por espelhar uma sociedade sem o trabalho, sobra apenas a figuração literária como elemento imprescindível à simulação difusa de uma certa realidade desfigurada. A categoria clássica da verossimilhança depende agora da problematização do caráter de aparência ou de ilusão da literatura.
Sob tal perspectiva, o antirrealismo ou a abstração que acompanha a gênese de Escato seria consequência da tentativa de negar o realismo imanente atribuído ao romance. Em função deste realismo constitutivo do gênero, o romancista seria impelido à narração da objetividade e da experiência de mundo. Contudo, o estado de coisas formalizado em Escato barra o ímpeto do romancista, que se vê destinado a narrar sua própria ruína. Seu recuo face à objetividade decorreria primeiro da consciência sobre o desenvolvimento técnico da indústria da cultura.
Outro fator seria a forma da experiência que sempre nutriu o gênero épico – aquela experiência contínua de vida, que produz conhecimento sobre o mundo, mas que termina por ser anulada. Este modo de vida foi interditado pela mesmice da sociedade administrada e pode ser ilustrado pitorescamente por uma espécie de Prometeu atado a um pau-de-arara, que seria o narrador/personagem de Escato tentando se apropriar da vela do prisioneiro vizinho, sem chances reais de conseguir.
Há pelo menos um século é dito que a crise do romance se configura como um sintoma da crise da experiência. Todavia, o antirrealismo muito difundido após as vanguardas históricas paradoxalmente seria um índice de sua fidelidade ao realismo, ao retratar o enfrentamento do indivíduo em uma sociedade contra a qual ele pouco pode. Desse modo, o óbice de rui r. reflete também as interdições singulares que acometeram a forma romanesca na situação específica de nossos dias.
Nesse sentido, a autorreflexão, expressão da crise da experiência e da representação dentro dos parâmetros do realismo formal, técnica já presente em prosa como elemento fundamental para a indiferenciação entre teoria e ficção, continua sendo um recurso importante, apesar de repisada, na obra de rui r., ao funcionar como reconhecimento da materialidade da obra.
8.
O romance, portanto, resgata certa tradição de insubordinação e leva adiante a ruptura decisiva que Rui Rocha sustenta em relação às convenções dos gêneros literários. A ocorrência da primeira pessoa em Escato reforça o processo de erosão das convenções do romance burguês por acentuar a instabilidade da voz narrativa que perpassa as camadas do personagem, do narrador e do autor revelando não só seu repertório, bem como seu universo cultural.
A mesma perspectiva antiburguesa predomina na ausência de ação, que rompe com a fruição estética de um leitor enganado que consumiria o romance para seu próprio deleite. Aliás, por falar em leitor, o máximo sofrimento decorrente da página impressa nas costas do personagem não é nada se comparado às páginas torturantes inscritas na memória do leitor de Escato.
Esse leitor tem de enfrentar um percurso narrativo acidentado – o próprio narrador/personagem se questiona sobre quem estaria enganando – como por exemplo a questão da fragmentação da consciência ou até certo ponto da insciência de quem narra, que encontra sempre novos desdobramentos.
O personagem central é atormentado por um passado que não parece compor, mas sim fragmentar ainda mais sua identidade – a temporalidade afastada não gera capacidade reflexiva sobre os fatos vividos – e assim multiplicar as possibilidades de ruptura com as convenções literárias, mas também com a definição burguesa de indivíduo e com suas concepções de tempo e espaço.
Então, em Escato, o romance parece incorporar aqueles desdobramentos que rui r. encontrou. A fragmentação do personagem reverbera no modo como a intercalação de vozes internas no monólogo parece convertê-lo numa espécie de diálogo polifônico. No texto, a problematização do lugar do personagem na narrativa retorna com novos contornos que remetem a essa fragmentação. A ambiguidade posta entre falante e ouvinte produz a indeterminação quanto à origem do enunciado.
O questionamento da oscilação desta voz narrativa, que não perde o fôlego, nem a entonação, sendo articulada a partir de um corpo imóvel que definha ou até mesmo desprovida dele, converte-se em tema narrativo, no qual a criação literária parecer estar condenada a voltar-se sobre si mesma, para discutir seu próprio processo de criação a partir da prisão infernal do personagem central e de suas referências literárias.
Nesse romance a constatação de que a linguagem não contempla as coisas, pelo contrário, as encobre, se manifesta na redução da palavra à sua materialidade. Essa lógica se expressa pela pontuação, pelo formante inicial dos capítulos, pela simplificação das frases, bem como pelo uso do pretérito imperfeito e do futuro do pretérito como tempos verbais dominantes. Além da linguagem, como dissemos antes, parece-nos que o princípio da redução se aplica também à representação do mundo.
Assim, a circularidade temática em Rui Rocha – como a fragmentação, o empobrecimento do mundo interior, o isolamento do sujeito representado na tentativa fracassada de construir um pombo-pássaro de papel, a insuficiência da linguagem, a vida monótona – a falta é o objeto estruturante do desejo do narrador (a pulsão de morte e a tentativa de apagar ou corrigir o passado) – implica numa revivescência da paralisia deixada pelo universo de escato, ainda que, por descompasso, os procedimentos artísticos se diversifiquem.
A circularidade da obra de Rui Rocha torna-se índice da tradição pós-moderna, e, ao mesmo tempo, seria aquilo que ajudaria a distingui-lo. Sem a liberdade dos antigos pós-modernos, que possuíam fortes referências e se viam na obrigação de perpetuar a destruição dos gêneros estabelecidos, Rui Rocha é o escritor herdeiro de um modelo de ruptura, o qual temporariamente está condenado a repetir enquanto ato reflexivo.
Entretanto, a circularidade na obra de Rui Rocha assumiria uma condição alegórica da sua própria situação histórica como repetição, uma espécie de dívida impagável. A forma da obra não só possui o modelo consagrado do romance de costumes, como também o próprio modelo para promover a ruptura e gerar a reflexão. O romance fatídico de Rui Rocha seria, como já dissemos, uma repetição crítica desta ruptura.
Nesta situação específica da contemporaneidade, o romance estaria condenado à sua própria tematização, sem condições de extrair a forma artística do contato direto com o mundo, uma vez que a estrutura da forma já é conhecida e, por que não dizer, desgastada, ou seja, quanto mais o livro busca uma saída negativa por meio da destruição, da ruína e do fracasso, mais deixa rastros na trilha ideológica do fascismo de seu narrador/personagem.
É justo reconhecer que escato não é apenas uma recriação do pós-modernismo neoliberal, entretanto não pode escapar à sua condição de ser uma forma e uma mercadoria de consumo alternativo. Mas a repetição também esclarece o que seria fundamental a uma obra autônoma, isto é, a exclusão do conteúdo. Na redução da experiência ao elementar e no retorno da obra sobre si mesma, através da discussão de seus próprios procedimentos artísticos, Rui Rocha substituiria o conteúdo social pelas autonomias estéticas, muito mais modestas, e cujas soluções instáveis, no entanto, são mais propícias ao surgimento de novas formas literárias.
Por fim, Escato não surge como mais um anúncio do fim do romance, nem como uma solução para sua instabilidade na situação de emergência da cultura de massas gerada pela indústria da cultura. O romance é uma solução instável e precária que impõe a necessidade de se discutir a relação contingente da forma romanesca com as transformações que circundam sua realização. Nesse sentido, a qualidade da leitura que se fizer da obra aproxima-se ou afasta-se da correção do projeto inicial do autor.
*Cláudio R. Sousa é pós-doutorado em Teoria e História Literária pela Unicamp.
Referência

Rui Rocha. Escato. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 2021, 324 págs. [https://amzn.to/4m9alHv]
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