Esperançar

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CHICO ALENCAR*

A passividade é sequela de séculos da hegemonia da escravização da maioria da nossa gente

Mestre Paulo Freire (1921-1997), que sabia que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, criou o verbo “esperançar”. Ele queria se contrapor à noção, largamente difundida, da mera espera, que pode ser até menos que expectativa: uma certa passividade, a imposição ideológica da cultura da vassalagem, da submissão, da inação.

É certo que toda sociedade tem suas forças de adaptação, de autorreprodução. Mas a formação social brasileira, ao longo da história, foi cristalizando algo além: a passividade. É sequela de séculos da hegemonia da escravização da maioria da nossa gente, na Colônia, no Império e mesmo na República – dos coronéis, das oligarquias.

Esse é o Brasil que chega a 2021. De continuada e crescente desigualdade social, de degradação política jamais vista. Os valores republicanos mais básicos estão corrompidos. Nessa quadra dramática da nossa vida como Nação, experimentamos uma combinação tóxica do ultraneoliberalismo econômico com formas políticas autoritárias, regressistas, fisiológicas, com setores que mal disfarçam um neofascismo tosco. A pequena política tornou-se a grande, a dominante. O negacionismo da ciência avassala o senso comum. E isso custa vidas.

Chegamos a um novo ano com velhos conhecidos nossos, pilares estruturais do nosso atraso: há 14,1 de brasileir@s procurando trabalho; acumulamos, nos últimos 12 meses, uma inflação de 15,9%; a queda no rendimento das famílias prevista é de 5,3%, sem auxílio emergencial e outros benefícios.

Chegamos a mais um ano sob o signo da morte. A pandemia recrudesce favorecida por uma inacreditável postura criminosa do governo federal: em etapas, a política do necroestado vertebrou, de início, a minimização da doença e, depois, o desprezo pelas mortes – que se aproximam das 200 mil! Em seguida a vergonhosa “guerra da vacina”, agora as insuficiências do Plano Nacional da Vacinação e a postura egoísta, sombria, atrasada de Bolsonaro, que alardeia que não se vacinará.

No início do século passado, no alvorecer da República, aconteceu algo parecido. Mas não vindo do governo Rodrigues Alves (1902-1906) e sim de seus opositores. Havia grande desconsideração pelo Instituto Soroterápico, precursor da Fiocruz, na então capital federal, e pelo Instituto Vital Brasil, em São Paulo, precursor do Butantan. O diretor nacional da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, era demonizado: Oswaldo “Cruz Credo”, “Nero da Higiene”. A culminância da crise deu-se em 1904, com a Revolta da Vacina, que foi um estuário de muitos descontentamentos, inclusive com aspectos da “modernização urbana” no Rio – que desconsiderava os mais pobres no seu direito à cidade.

As doenças endêmicas faziam abundante colheita. Morria-se de peste bubônica, de varíola, de febre amarela, do cólera, de difteria, de tuberculose, escarlatina e sarampo. Como sempre, os mais desvalidos. Que reconheceram, poucos anos depois, a importância das medidas de saneamento. Nosso grande sanitarista passou a ser reconhecido como “Mestre Oswaldo” e “Messias da Higiene”…

Citei a passividade de grupos e classes na nossa história. Mas registro também as lutas: onde há opressão, há resistência. Temos uma trajetória luminosa de defesa dos nativos por suas terras e culturas, conhecemos a força quilombola, as batalhas dos trabalhadores e trabalhadoras, a afirmação das mulheres por sua dignidade aviltada secularmente pelo patriarcalismo.

Assim gira a roda da História, em meio à boca devoradora do tempo, que não para. O mundo é permanente mudança, as sociedades avançam e recuam, dialeticamente. As épocas sombrias não duram sempre, ainda que tudo esteja “demorando em ser tão ruim”. A invenção do calendário também tem essa eficácia simbólica: exortação ao recomeço, convite à renovação, à retomada. Somos desafiados a vivenciar o escrito e praticado por Paulo Freire: “esperançar é se levantar, é ir atrás, é construir, não desistir”.  Assim seja e sejamos!

*Chico Alencar é professor, escritor e vereador eleito (PSOL/Rio).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A corrosão da cultura acadêmica
Por MARCIO LUIZ MIOTTO: A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica
O Papa na obra de Machado de Assis
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: A Igreja está em crise há séculos, mas insiste em ditar moral. Machado de Assis zombava disso no XIX; hoje, o legado de Francisco revela: o problema não é o papa, mas o papado
Um papa urbanista?
Por LÚCIA LEITÃO: Sixto V, papa entre os anos 1585 a 1590, entrou na história da arquitetura, de modo surpreendente, como o primeiro urbanista da Era Moderna
Dialética da marginalidade
Por RODRIGO MENDES: Considerações sobre o conceito de João Cesar de Castro Rocha
Para que servem os economistas?
Por MANFRED BACK & LUIZ GONZAGA BELLUZZO: Ao longo do século XIX a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII
Ode a Leão XIII, o Papa dos Papas
Por HECTOR BENOIT: Leão XIII salvou Deus, e Deus deu no que deu: a igreja universal e todas essas igrejas novas que andam pelo mundo em crise econômica, ecológica, epidemiológica total
O banqueiro keynesiano
Por LINCOLN SECCO: Em 1930, sem querer, um banqueiro liberal salvou o Brasil do fundamentalismo de mercado. Hoje, com Haddad e Galípolo, ideologias morrem, mas o interesse nacional deveria sobreviver
A PUC-São Paulo e a liberdade acadêmica
Por MARIA RITA LOUREIRO & BERNARDO RICUPERO: Ao atacar Reginaldo Nasser e Bruno Huberman, a universidade que resistiu à ditadura agora capitula ao autoritarismo sionista, e golpeia a liberdade acadêmica no Brasil
Refúgios para bilionários
Por NAOMI KLEIN & ASTRA TAYLOR: Steve Bannon: o mundo está indo para o inferno, os infiéis estão rompendo as barricadas e uma batalha final está chegando
A situação atual da Guerra na Ucrânia
Por ALEX VERSHININ: Desgaste, drones e desespero. A Ucrânia perde a guerra de números e a Rússia prepara o xeque-mate geopolítico
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES