Estagnação e gastos militares

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Gastos militares têm uma dimensão destrutiva: eles podem ser necessários para a defesa, mas desperdiçam recursos para incremento do bem-estar social

Eis uma pergunta interessante feita por Michael Roberts: “podem os gastos militares despertar as economias que estão presas numa depressão tal como se encontram as economias europeias desde 2009?”.[i] Muitos economistas acreditam que sim, em especial os keynesianos que raciocinam centralmente sobre o nível da atividade econômica a partir da demanda agregada. Para eles, um estado estagnação pode ser superado por meio de gastos deficitários do Estado.

Para discutir esse tema com foco na atualidade é preciso examinar a situação da economia alemã nos últimos anos que, como se pode ver na figura acima, está estagnada: o PIB grosso modo parou de crescer a partir do choque do novo coronavírus em 2020. Na verdade, a economia encolheu um pouco tanto em 2023 quanto em 2024; ademais, os indicadores de crescimento anunciam que esse desempenho vai se repetir provavelmente em 2025.

Diante dessa situação, as forças políticas na Alemanha, que estão no poder e querem mantê-lo, passaram a procurar uma política econômica que fosse capaz de superar essa situação que lhes parece desastrosa. E a oportunidade surgiu com a nova conjunta internacional criada pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos; eis que, diante de novas prioridades, em particular, o enfrentamento da China, a potência hegemônica decidiu abdicar da reponsabilidade pela segurança da Europa.

Diante da necessidade de garantir a segurança com meios próprios, o rearmamento despontou para essas forças não só como uma imposição das circunstâncias, mas também como uma oportunidade de encetar uma nova política econômica que viesse superar a estagnação.

Como se sabe, a Alemanha, em virtude de sua aversão à inflação, adotou por muitos anos uma regra constitucional de austeridade fiscal que ficou conhecida como “breque da dívida”. Agora, entretanto, essa regra se transformou num entrave. Como restringia o gasto público de ir muito além do montante de impostos recolhidos, impedia assim o Estado de financiar o seu investimento por meio de empréstimos do setor privado. Nas novas condições, ela precisava ser abolida.

E isso foi feito: o parlamento alemão aprovou em março de 2025 uma emenda constitucional que permite uma elevação substantiva dos gastos para além do limite dado pelo recolhimento de impostos. Foi criado um fundo de 500 bilhões de euros para investimento em infraestrutura, proteção climática e transformação verde; foi dada permissão para que os estados – além do governo federal – possam ter um orçamento deficitário (até o limite de 0,35 por cento do PIB); foi autorizado um dispêndio em defesa nacional para além de 1% do PIB a ser financiado por empréstimos sem restrição.

Como mostra o artigo de Michael Roberts essa quebra da tradição orçamentaria foi saudada por muitos políticos e analistas como uma fórmula para elevar a proteção militar da Europa e, ao mesmo tempo, incentivar o crescimento econômico, tirando a economia da região da estagnação.

Eis um exemplo colhido no site Social Europe: “Por muitos anos, o breque da dívida constrangeu a economia alemã”. Contudo, agora a situação mudou: “A Alemanha passou agora por uma mudança de paradigma que, até recentemente, parecia inimaginável. Essa transformação apresenta uma oportunidade significativa, não apenas para a Alemanha, mas para a Europa como um todo, para fortalecer a segurança, promover a inovação e avançar a política climática — sem necessitar de cortes severos nos gastos sociais”.[ii]

Voltando agora para a questão com que se iniciou esse artigo, vale perguntar se os gastos estatais, em particular, os gastos militares podem realmente despertar as economias deprimidas. Mas antes veja-se que a dívida pública da Alemanha, pouco elevada, facilita a adoção dessa política:

Ora, a resposta a essa pergunta não é simples; não é suficiente dizer sim ou não, mesmo aduzindo algumas razões. Eis que é preciso ver com essa política econômica afeta a lucratividade, não a obtida no passado, mas aquela possível a ser obtida no futuro.

Em primeiro lugar, é evidente que o gasto estatal deficitário acrescenta demanda agregada; ora, esse impulso, dependendo das condições, pode se transformar em mais inflação ou em mais crescimento econômico. Se a economia se encontra estagnada, com um baixo uso da capacidade de produção, é provável que os investimentos públicos tenham um efeito positivo no crescimento da produção. Eis que esse crescimento aumenta o volume dos lucros e, assim, a taxa de lucro pelo menos no curto prazo.

Contudo, não basta examinar apenas o efeito macroeconômico. Os investimentos públicos em infraestrutura, por exemplo, podem abrir perspectivas para o investimento privado, contribuindo assim para a reprodução do capital. Já os gastos militares, mesmo se não contribuem diretamente para essa reprodução, podem contribuir para a introdução de novas tecnologias, as quais podem abrir espaço para o investimento privado. De qualquer modo, esses gastos não podem alterar de maneira decisiva a condição depressiva porque não são capazes de alterar radicalmente a lucratividade do capital.

Michael Roberts também sustenta essa tese, argumentando que a crise de superacumulação – origem de toda crise no capitalismo – requer necessariamente a destruição de parte significativa do capital acumulado no passado.  Por isso mesmo, ele acrescenta que o efeito destrutivo das guerras pode criar eventualmente, depois que terminam, as condições para um grande surto de investimento: “Em geral, os gastos com armas podem não ser decisivos para a saúde da economia capitalista. Por outro lado, a guerra total pode ajudar o capitalismo a sair da depressão e da recessão. (…) [Como bem se sabe] as economias capitalistas só podem se recuperar de forma sustentada se a lucratividade média dos setores produtivos da economia aumentar significativamente. E isso exigiria destruição suficiente no valor do “capital morto” (acumulação passada) cujo emprego não é mais suficientemente lucrativo”.

É preciso observar nesse ponto que a produção de armamentos por empresas privadas ou públicas é uma atividade reprodutora de capital. Por meio do circuito correspondente, é produzido valor adicional, ou seja, valor necessário (pagamento daqueles que trabalham nessa atividade) e valor excedente que assume a forma aparente de lucro, aquela parte que remunera os proprietários. Contudo, os gastos militares têm uma dimensão destrutiva: eles podem ser necessários para a defesa e ambição territorial dos países, mas desperdiçam recursos da sociedade que poderiam ser melhor gastados no incremento do bem-estar social.

Para completar o argumento é preciso ver que os gastos do Estado, seja com infraestrutura seja com armas em geral, ajudam na realização do capital que está na forma de mercadorias; contudo, eles não entram diretamente no circuito da reprodução do capital, tal como acontece com os dispêndios em máquinas, equipamentos e instalações. Vale observar também que há uma diferença entre os gastos militares e os gastos com estradas, pontes etc.

Os primeiros são semelhantes aos dispêndios com bens de luxo, ou seja, consomem destrutivamente parte do excedente gerado na produção; já os segundos, tal como os gastos provindos dos salários, criam condições para a continuidade do processo produtivo.

Para concluir vale lembrar o caso do Japão cujo “milagre” se inicia alguns anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial e termina aproximadamente no fim dos anos 1990. A partir daí a economia japonesa entra em estagnação: se antes o crescimento atingia patamares próximos de 10% ao ano, depois passou a oscilar em torno de 2% ao ano. A guerra devastou a economia japonesa, mas abriu espaço para uma política de investimento extremamente eficiente na geração de aumentos do PIB.

Quando sobreveio a estagnação, esta foi enfrentada por meio de políticas econômicas agressivas de elevação dos gastos do governo para compensar a parcimônia do povo japonês e a carência de oportunidades lucrativas de investimento; é por isso que a dívida pública, como mostra o gráfico anterior, atingiu 238% do PIB, em 2024, quando era 50% em 1990. Mesmo que isso tenha sido possível por causa das baixas taxas de juros pagas pelos títulos do governo japonês, esse esforço gastador não conseguiu superar a estagnação que já dura 30 anos aproximadamente. O caso atual da economia alemã será diferente?

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Notas


[i] Roberts, Michael. “From welfare to warfare: military Keynesianism”. The next recession blog, 22/03/2025. Endereço na internet: neste link

[ii] Bofinger, Peter. “Germany ditches debt brake: a fiscal revolutions begin”. Social Europe, 21/03/2025. Endereço na internet: neste link

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O anti-humanismo contemporâneo
Por MARCEL ALENTEJO DA BOA MORTE & LÁZARO VASCONCELOS OLIVEIRA: A escravidão moderna é basilar para a formação da identidade do sujeito na alteridade do escravizado
Discurso filosófico da acumulação primitiva
Por NATÁLIA T. RODRIGUES: Comentário sobre o livro de Pedro Rocha de Oliveira
Desnacionalização do ensino superior privado
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Quando a educação deixa de ser um direito para se tornar commodity financeira, 80% dos universitários brasileiros ficam reféns de decisões tomadas em Wall Street, não em salas de aula
Cientistas que escreveram ficção
Por URARIANO MOTA: Cientistas-escritores esquecidos (Freud, Galileu, Primo Levi) e escritores-cientistas (Proust, Tolstói), num manifesto contra a separação artificial entre razão e sensibilidade
Oposição frontal ao governo Lula é ultra-esquerdismo
Por VALERIO ARCARY: A oposição frontal ao governo Lula, neste momento, não é vanguarda — é miopia. Enquanto o PSol oscila abaixo dos 5% e o bolsonarismo mantém 30% do país, a esquerda anticapitalista não pode se dar ao luxo de ser 'a mais radical da sala'
Guerra nuclear?
Por RUBEN BAUER NAVEIRA: Putin declarou os EUA "patrocinadores de terrorismo", e agora duas superpotências nucleares dançam na beira do abismo enquanto Trump ainda se vê como pacificador
O sentido na história
Por KARL LÖWITH: Prefácio e trecho da Introdução do livro recém-editado
Gaza - o intolerável
Por GEORGES DIDI-HUBERMAN: Quando Didi-Huberman afirma que a situação de Gaza constitui "o insulto supremo que o atual governo do Estado judaico inflige àquilo que deveria continuar sendo seu próprio fundamento", expõe a contradição central do sionismo contemporâneo
A situação futura da Rússia
Por EMMANUEL TODD: O historiador francês revela como previu "retorno da Rússia" em 2002 baseado em queda da mortalidade infantil (1993-1999) e conhecimento da estrutura familiar comunitária que sobreviveu ao comunismo como "pano de fundo cultural estável"
Os desencontros da macroeconomia
Por MANFRED BACK & LUIZ GONZAGA BELLUZZO: Enquanto os 'mídiamacro' insistirem em sepultar a dinâmica financeira sob equações lineares e dicotomias obsoletas, a economia real seguirá refém de um fetichismo que ignora o crédito endógeno, a volatilidade dos fluxos especulativos e a própria história
Romper com Israel já!
Por FRANCISCO FOOT HARDMAN: O Brasil deve fazer valer sua tradição altamente meritória de política externa independente rompendo com o Estado genocida que exterminou 55 mil palestinos em Gaza
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES