Facundo Jones Huala

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Por SILVIA BEATRIZ ADOUE*

O terrorismo não está na Resistência Ancestral Mapuche, mas nos tapumes de ferro erguidos sobre terras roubadas. Liberdade para Facundo: que a antipoesia incendiária queime as grades da barbárie

Tem militantes que são poetas e poetas que são militantes. Muitos deles são perseguidos e o Estado os coloca na prisão. Este é um caso excepcional em que as provas de acusação são os poemas e suas falas no lançamento do livro Entre rejas: antipoesía incendiaria. Em meio ao frio e a névoa da noite de 8 de junho, foi detido o lonko[i] mapuche Facundo Jones Huala, na rodoviária da localidade de El Bolson, pela Polícia Federal Argentina, sem ordem judicial, que apenas foi apresentada aos advogados do lonko 40 horas depois. A condenação a 6 anos de prisão e inelegibilidade para Cristina Fernández de Kirchner eclipsou esse processo prenhe de irregularidades.

Facundo Jones Huala, o mais velho de 6 irmãos, nasceu em Furiloche,[ii] localidade do Puelmapu,[iii] há 38 anos. Como weichafe,[iv], participou de lutas pela recuperação de terras ancestrais de um lado e de outro da cordilheira dos Andes. No Ngulumapu[v], participou da luta contra a instalação de uma hidrelétrica no rio Pilmaiken, no setor do Wenuleufu[vi], por uma empresa escandinava.

Foi, preso junto com a machi[vii] Millaray Huichalaf, que cumpriu sua pena em liberdade. Durante o julgamento, Facundo Jones Huala se deslocou a Puelmapu y fue condenado in absentia. Como lonko e membro da Resistência Ancestral Mapuche (RAM) recuperou terras usurpadas pelo Estado argentino, já ocupadas pela transnacional Benetton, que, apenas na região do rio Chubut, apropriou-se de 356 mil hectares, onde explora gado ovino, planta pinhos e tem concessões minerais.

Foi preso pelo Estado argentino e deportado ao Chile, onde foi julgado e cumpriu parte da condenação. Fugiu novamente para o Puelmapu, onde foi preso mais uma vez e deportado. Foi mantido preso para além do tempo da pena que lhe foi imposta, realizando diversas greves de fome junto com outros presos políticos mapuche no cárcere de Temuco e de forma individual.

Durante esse último período, seu irmão Fausto, também combatente, tirou a própria vida. Saindo da prisão e expulso pelo governo de Chile, voltou ao Puelmapu, onde, no dia 2 de fevereiro deste ano, lançou Entre rejas: aintipoesia incendiaria, com textos em grande parte escritos na prisão.

Durante o lançamento[viii], na pequena Biblioteca Aimé Paine, em Furiloche, província de Rio Negro, o lonko fez uma exposição sobre seu livro e respondeu perguntas sobre a cultura e a luta mapuche.

Discorreu sobre o colonialismo; as coincidências com o militante e escritor martinicano Frantz Fanon; o autonomismo mapuche; a usurpação das terras pelos Estados argentino e chileno primeiro e a entrega dessas terras a latifundiários e transnacionais depois; as sabotagens à infraestrutura do capital e as formas de luta anticolonial. O encontro foi filmado.

O lançamento do livro coincidiu com episódios de grandes queimadas em todo o Puelmapu, resultantes da mudança climática e da ação criminosa para favorecer o negócio imobiliário, florestal e mineiro, que pretende mudar o uso da terra. As políticas de ajuste, com a consequente retirada de recursos públicos para a prevenção e combate a incêndios também contribuiu com a expansão de focos incontroláveis.

As comunidades mapuche e os demais habitantes da região auto-organizaram-se em brigadas para frear os incêndios. A ministra de Segurança Patricia Bullrich, responsável pela prevenção e combate às queimadas, assim como o governador da província patagônica de Chubut Ignacio Torres, se apressaram a apontar mapuches e brigadistas em geral como incendiários. Justamente aqueles que estavam apagando os focos!

A ocasião bastou para que o oportunismo da ministra Patricia Bullrich e do governador Ignacio Torres acusaram o lonko de apologia do delito, sem qualquer denúncia formal, ao mesmo tempo em que o governador fazia batidas barbarizando lof[ix] mapuches em Chubut.

Seis dias depois do lançamento do livro, o porta-voz presidencial, hoje prefeito eleito da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Manuel Adorni, deu a conhecer a inclusão da RAM na lista das organizações terroristas como uma decisão do poder executivo, quando o procedimento legal exige uma posição do poder legislativo. No entanto, nenhum processo judicial foi aberto contra seu militante mais público, Facundo Jones Huala.

Ante a preocupação manifestada por seus advogados, o governo confirmou que não havia qualquer processo aberto contra ele. Porém, um mês atrás, o lonko foi convocado para uma audiência judicial na qual foi informado que estava sendo investigado após uma acusação feita em abril, mas que o caso seria mantido em sigilo enquanto durasse a investigação, e que haveria uma nova audiência no dia 12 de junho.

Não apenas ele, mas também sua mãe foi objeto de trabalho de inteligência do Estado. E, na noite do dia 8, sem acusação formal, 4 dias antes da anunciada audiência, Facundo Jones Huala foi detido para sua surpresa, quando estava se preparando para voltar ao campo, onde está seu domicílio. Foi transladado a Furiloche, para uma sede policial cercada com tapumes de ferro, frente os quais se postou sua mãe.

Foi realizada a audiência que devia ser pública e não foi. Nela foram expostas as acusações de “intimidação pública, incitação à violência coletiva, apologia do crime e associação criminosa”, segundo a denúncia da ministra Patricia Bullrich. O juiz de Bariloche Ezequiel Andreani ditou a prisão preventiva de 90 dias, para a que o lonko será transladado para o cárcere de Rawson, localizado a mais de mil quilómetros de onde mora sua família.

Ontem, durante a mobilização em Furiloche contra a proscrição e encarceramento da ex-presidenta, uma senhora idosa foi entrevistada na rua pela TV C5N. Ela disse: “a situação é muito grave, prenderam o lonko Facundo Jones Huala, de aqui, e sabe por quê?”. Não esperou a resposta da entrevistadora. “Ele escreveu um livro”. Essa senhora entendeu o tamanho da barbárie do Estado argentino. As poesias não apenas foram tratadas como prova, senão que são, em si mesmas, crime perpetrado pelo lutador.

Sabemos que o Estado argentino, assim como o chileno, usurpara o território mapuche, para colocá-lo a disposição para extração de matérias primas de exportação. Entregou essas terras para latifundiários e transnacionais. Para isso, exterminou e escravizou os moradores. Os mapuche como Jones Huala, conscientes de suas responsabilidades para com essa terra, combatem contra aqueles que a destroem, com todos os meios de que dispõe… inclusive com poemas.

Longa vida ao povo mapuche! Liberdade ao lonko Facundo Jones Huala! Longa vida à poesia revolucionária!

*Silvia Beatriz Adoue é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).


[i] Autoridade política e social mapuche.

[ii] Conhecida como Bariloche.

[iii] Território mapuche ao Leste da cordilheira dos Andes.

[iv] Combatente.

[v] Território mapuche ao Oeste da cordilheira dos Andes.

[vi] Literalmente, Rio do Céu, que os colonizadores batizaram como Río Bueno.

[vii] Autoridade espiritual mapuche.

[viii] Para quem quiser conferir o que foi falado nesse encontro, aqui está o vídeo completo: https://www.youtube.com/watch?v=r2lhA0983mw

[ix] Unidades territoriais habitadas por famílias ampliadas.


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