Fascismo latente

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Por GABRIEL COHN*

Reflexões sobre o fascismo histórico e suas manifestações na contemporaneidade

Há, de fato, uma deriva fascista em curso no Brasil? Certamente há poucas dúvidas sobre a tóxica combinação de autoritarismo e irresponsabilidade que vem destruindo as já vulneráveis instituições republicanas entre nós. O que já não é pouco, se considerarmos que o autoritarismo genuíno se empenha em exibir a marca da responsabilidade, de preferência investida em líder bem identificado. Não havendo isso a consequência, como ocorre em nosso caso, é o pior de dois mundos: o mal absoluto porém dissimulado, expresso na morte e na destruição anônimas. Menos nítida é a afinidade desse estado de coisas com o agressivo regime de extrema direita originalmente conhecido como fascismo.

Tudo começa com a dificuldade para definir de que estamos falando quando dizemos “fascista”. Isso já não é fácil quando se trata dos exemplos históricos do período 1922 a 1945 na Itália e na Alemanha, e se transforma num labirinto quando a referência é ao período posterior até o momento presente. Labirinto a ser percorrido, contudo, e com olhos bem abertos, pois ele tem muito a mostrar sobre tendências em andamento e a serem combatidas. A rigor, falar em fascismo é falar do caso italiano, quando se inventou o termo para evocar a grandeza da Roma clássica como inspiração para a construção da grandeza nacional vista como degradada. Foi também quando, junto com a ideia central de grandeza se adotou na Itália o termo “totalitário” para designar uma unidade nacional baseada em um Estado forte o bastante para incorporar a sociedade em sua ação.

Cabe lembrar, de passagem, que há nisso contraste frontal com o projeto socialista, voltado para a reincorporação do Estado na sociedade de que se separara no processo histórico moderno. O caso alemão leva o fascismo ao paroxismo, e nisso acentua também as ambivalências quando não contradições já presentes no caso italiano. Ambos os regimes incorporam uma tensão não resolvida entre o tradicional e o moderno, traduzida na combinação entre valorização positiva do avanço tecnológico e da inovação (também no campo da arte, como no “futurismo” italiano com seu culto da potência e da velocidade) e posição ultraconservadora no tocante a padrões de relações sociais como a família, junto com estritos controles doutrinários na educação e na cultura.

Isso se manifesta em ambos os casos numa concepção do movimento político conforme àquilo que já foi denominado (por Jeffrey Herf) “modernismo reacionário”. Entretanto, quando se fala nesses termos em “reacionário” a referência mais direta seria aquilo que ideólogos alemães (como Hans Freyer) definiam como “revolução pela direita”. Esta, contudo, significa mudança e não mera reação. Convém lembrar que o fascismo utiliza para seus fins meios conservadores, mas nada tem de reacionário, e é dessa ambiguidade que retira parte de sua atração para grupos sociais perdidos e atemorizados entre a mera continuidade e a mudança.

Até aqui ainda podem ser encontradas semelhanças entre aquelas condições europeias e aquilo que se vem configurando aqui. Entretanto, uma diferença patente pode ser detectada. Trata-se da ênfase fascista na nação como referência política e como valor, num nacionalismo extremado. Nada disso se encontra no Brasil presente, com uma agravante básica. Enquanto no fascismo clássico a autonomia nacional é desiderato fundamental, o padrão autoritário brasileiro é marcado pela subordinação a forças externas bem definidas, centradas nos EUA. Isso desde o início complica a aproximação entre os dois padrões. Ainda mais quando o fascismo clássico tem um propósito construtivo, ao seu modo, ao passo que entre nós o arremedo de regime tem efeito destrutivo, ao seu modo também.

Convém, então, examinar melhor a natureza do fascismo europeu clássico. (Aqui a referência ao fascismo engloba tanto a ditadura italiana quanto o nazismo alemão). Para isso dois caminhos se oferecem. O primeiro consiste no exame centrado na dimensão institucional, com ênfase na composição e funcionamento dos aparelhos de Estado, na organização partidária, nos aparelhos de mobilização e repressão mediante terror, nas relações entre forças econômicas e o regime e assim por diante. O exemplo clássico disso é o estudo do caso alemão como “capitalismo monopolista totalitário” por Franz Neumann.

Nele se procede ao exame do modo como o entrelaçamento entre forças econômicas e políticas no regime, longe de formarem uma unidade harmônica correspondem mais a uma espécie de caos organizado com condições limitadas de sobrevivência, bem longe do “Reino milenar” ambicionado por Hitler. Com efeito, a presença simultânea de caos e organização constitui uma das áreas centrais de tensão no funcionamento do regime, quando a organização, objetivo central do mando supremo, se revela somente factível mediante a manutenção dos cúmplices mais próximos e das entidades empresariais a eles associados em estado de constante conflito dependente de arbítrio.

O essencial em Neumann é a explícita referência ao capitalismo, que tende a desaparecer na literatura posterior. A esse respeito ele tem formulação incisiva: “Qual é a força dessa economia [nacional-socialista]: poder, patriotismo ou lucro? Cremos ter demonstrado que é o motivo do lucro que desempenha papel decisivo. Mas num sistema monopolista não se obtêm nem se apropriam lucros sem um poder totalitário, e essa é a característica específica do nacional-socialismo”.

O segundo caminho abre-se no após guerra, em especial a partir dos anos 1960, quando essa busca da especificidade dos casos alemão e italiano a partir do padrão de relações políticas e econômicas moldadas pelo peso dos grandes conglomerados industriais e financeiros foi sendo substituída por uma concepção mais “genérica”, conforme o termo adotado pelos autores envolvidos. O fascismo clássico aparece nisso como caso particular de fenômeno maior, que transcende as fronteiras nacionais, e a dimensão ideológica passa a ocupar posição central. O passo inicial nisso foi dado em 1962 pelo historiador conservador alemão Ernst Nolte, que buscou por esse meio amenizar o caráter específico (e por esse meio a responsabilidade) do regime alemão, com especial ênfase na tese da similaridade entre nazismo e comunismo.

Mais tarde, já nos anos 1980, a preferência por uma análise genérica do fascismo – já livre do “reformismo histórico” de Nolte (que havia suscitado polêmica na qual Habermas participou fortemente) – ganhou o formato de orientação básica da pesquisa, ainda mais quando o colapso da Alemanha Oriental, a RDA, e a purga promovida em suas universidades pelos vencedores da Guerra Fria encerrou o ciclo de pesquisas estritamente marxistas na área.

Isso tudo ganhou impulso quando se formou o que foi denominado novo consenso na pesquisa, em grande medida graças ao trabalho do inglês Roger Griffin. Consiste essa bem sucedida tese em dois pontos. O primeiro concentra-se na defesa daquela visão genérica e não somente pontual e restrita aos casos europeus clássicos, centrados no poder autocrático ditatorial, no Estado policial de terror generalizado, na violência, no racismo e homofobia militantes, na mobilização forçada da população e traços afins. Isso como condição para incluir na análise os casos particulares – de algum modo discrepantes entre si – de manifestação do fenômeno.

O segundo e principal ponto alude àquilo que poderia ser tomado como o núcleo significativo que oferece ao fascismo sua estrutura específica, como concepção do mundo a ele subjacente em todos os casos. Tal núcleo consiste, segundo Griffin, na concepção por ele denominada “palingênica”, ou seja, na ideia de que a sociedade está experimentando algo como um renascimento a partir das ruínas e da desmoralização. Uma regeneração, enfim. Para Griffin, tal ideia, que está muito presente no fascismo italiano e no nacional-socialismo alemão como regimes que se edificam a partir da graves crises após a guerra de 1914 a 1918, constitui o “eixo não eliminável” do conjunto. Neste ponto cabe uma referência comparativa à situação brasileira atual. Aqui, é no sentido inverso: a crise destrutiva não é dada previamente, mas é provocada pelas próprias operações do Estado, coisa a deixar Griffin intrigado.

Faz sentido, com efeito, assinalar essa concepção de saída da crise pela reconstituição do corpo político inteiro (difícil evitar a imagem do soerguer-se do Leviatã prostrado). É uma poderosa figura de retórica política, que entretanto só ganha pleno sentido quando associada a duas outras, às quais Griffine seus seguidores dedicam menos atenção. Dentre essas uma é especialmente poderosa e poderia muito bem ocupar posição central, junto à primeira. Trata-se da ideia de pureza, com seu desdobramento na ideia extremamente aguda de purificação (da nação como “solo e sangue”, da raça, do homem). Cabe registrar, a respeito, que a percepção da importância disso não se deve tanto a análises científicas, mas está mais presente em notável documentário cinematográfico sobre a Alemanha nazista, A arquitetura da destruição.

Esses dois componentes só ganham plena vigência quando impulsionados pela grande força motriz do conjunto, o ódio. Sendo dirigido, de modo geral, ao poluidor, tal ódio ganha tanto em intensidade, ao dirigir-se a qualquer coisa que ameace o duplo movimento da purificação e da regeneração que lhe confere a aura de sagrado, como em flexibilidade, ao multiplicar os casos possíveis de infração. É de se examinar melhor, de resto, a complexa dinâmica do ódio, da qual se valem figuras como Goebbels e ainda hoje os “estrategistas políticos” nele inspirados, como Steve Bannon nos EUA. Como princípio organizador do conjunto todo se encontra a ideia de unidade, à qual se associam aquelas de povo e raça, pensadas como moldagem compacta de um ente harmônico e monolítico. Em registro periférico mas nem por isso insignificante esses temas também são evocados no Brasil, por exemplo quando no auge das investidas contra a então presidente Dilma Roussef surgiam insígnias como “o Brasil passado a limpo”.

Aquele caráter de harmonia monolítica não significa, contudo, conjunto radicalmente indiferenciado. Significa a seleção autoritária daquilo que deve permanecer diferente (por exemplo, as distinções por gênero) em contraste com aquilo que cumpre integrar no conjunto, seja conforme o padrão tradicional, como unidade “orgânica” com laços naturais de tipo comunitário ou “mecânica”, pelo lado moderno, em que prevalece a coordenação (o termo alemão invoca algo como “equalização forçada”) mediante estreitos laços entre os incluídos e rejeição ou, no limite, eliminação dos indesejáveis. Nesse ponto aquilo que há de sombrio no fascismo chega a seu nível mais fundo, quando os critérios tradicional e moderno se mesclam no tema mencionado antes, da pureza pelo ângulo da purificação. Em seu núcleo ideológico mais profundo, portanto, encontra-se a combinação paradigmática entre unidade e pureza. Por isso mesmo, combinada à ideia de regeneração a face oposta da ideia de pureza não se resume naquela de impureza, mas assume a forma da corrupção em sua acepção exata, como desgaste e degeneração, em contraste com a regeneração (e não como simples compra ou troca de favores, como sugere sua versão banalizada).

Neste ponto encontra-se a oposição central nesse complexo ideológico, que é a relação entre degeneração e regeneração. Levando-se ao limite a presente linha de argumentação temos, em suma, que a síntese da organização ideológica fascista, em especial em sua vertente mais elaborada nazista, consiste na ideia de unidade impoluta. Temos aí o núcleo de um complexo ideológico de extraordinária potência, a jamais ser subestimado, não apenas pelo seu caráter sintético e por isso mesmo suscetível de desdobramentos, como pela sua capacidade de penetrar, sob diversas formas, camadas profundas da psique daqueles que se encontram ao seu alcance. Não é fácil encontrar a estratégia adequada à desmontagem de aparato simbólico tão blindado contra quaisquer influências e tão capaz de gerar formas derivadas (basta pensar na polissemia de um termo como “corrupção”).

Em termos sumários podemos identificar dois grandes núcleos ideológicos no período contemporâneo, ambos já se ressentindo do desgaste do tempo, porém robustos o suficiente para ultrapassarem seu momento exato. Pelo lado direito, a regeneração; pelo esquerdo, a revolução. O intrincado jogo entre esses dois polos marcou o século XX até o presente, quando a questão que se põe é a de qual o lado terá força (material e simbólica) e iniciativa para enfrentar antes o imperativo histórico presente, o de repensar o mundo e agir de acordo.

Constitui traço característico daquele regime, rígido nas ideias porém na prática amarrado por fios soltos que permitem em cada momento sua direção em um sentido ou outro pelos mandantes no topo, que a pureza invocada no cerne da amarração ideológica não seja tão obedecida nas relações de dominação efetivas. Assim, o mote “anticapitalista e antiburguês” não impede a estreita e crescente aliança com essas forças, como já mostrava Neumann. Do mesmo modo, na concorrência com as forças à esquerda já estabelecidas em partidos e sindicatos, não hesita em canibalizar nomes e símbolos dos adversários, como a saudação com o braço elevado, a cor de fundo na bandeira e, sobretudo, a referência aos trabalhadores no nome do partido.

A mixórdia doutrinária no nome do partido alemão exprime bem a tática de confusão adotada. Trata-se de “partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães”, designação em que os qualificativos “nacional” e “alemães” são na realidade decisivos, mas vão de carona nas referências nominais, feitas para confundir. É significativo que não se fala de povo, tacitamente representado pelos trabalhadores, até porque a categoria povo não tem referência substantiva naquela construção ideológica, e sim ocupa a posição de mito fundante da unidade compacta da comunidade (termo central) nela invocada, sempre qualificada como alemã. É duvidoso, portanto, falar em “populismo”. Não por acaso o jurista fascista (mais por oportunismo do que por convicção) Carl Schmitt define a democracia com referência à unidade do povo, não só para distingui-la da fragmentação liberal como para cortar sua associação ao poder popular soberano na República.

Claro que essa permeabilidade a interpretações oportunas ajuda a conferir certa flexibilidade às versões da matriz genérica que se vão desenvolvendo no período posterior ao clássico. Nesse ponto mais do que em qualquer outro as variações no modelo genérico são importantes. E é preciso reconhecer, por mais cuidado que se aplique à tese da relevância do modelo fascista ou neofascista ao caso brasileiro atual (que entre nós se encontra com cerrada argumentação em recente artigo em registro marxista de Armando Boito no site A Terra é Redonda) que a sociedade brasileira vem-se revelando fundamente saturada desse impulso destrutivo. Com a agravante de que no seu interior há quem busque com afinco alvos preferenciais para seu exercício, com o que se aproxima do modelo clássico.

Isso se dá na forma de um partido político, o PT (que, de resto, usa em sua bandeira a convidativa cor vermelha) e associações semelhantes. Um evento circunstancial embora significativo envolvendo aquele bode expiatório partidário oferece exemplo desse autoritarismo socialmente arraigado (conforme analistas como Paulo Sérgio Pinheiro vêm apontando há tempo). Trata-se de frase do então senador Konder Bornhausen quando o governo federal petista estava contra as cordas no caso do assim chamado “mensalão”, a partir de 2005. Seria preciso, afirmou ele, “acabar com essa raça” por 30 anos. Acabar com essa raça. Em sociedade como a nossa isso faz parte do vocabulário racista de extração escravista. Não obstante, remete ao mesmo padrão que o vocabulário nazista. Temos nisso constrangedor, porém, eloquente exemplo de afinidades insuportáveis, que nos adverte de algo fundamental. É que esse vocabulário fermenta sem trégua na sociedade.

Nesse ponto cabe assinalar uma distinção importante entre o fascismo clássico e a escorregadia variante autoritária em curso no Brasil. É que em nosso caso não temos a criação de algo novo, e sim a explicitação de algo de fato presente na sociedade, embora não de modo uniforme nela. Já no caso fascista clássico o impulso vai mais no sentido da exacerbação de traços supostamente encontradiços na sociedade, como a ânsia judaica de lucro ou o perigo vermelho. Cabe lembrar que a propaganda fascista, em especial na sua versão nazista, não inventava seus inimigos (judeus, comunistas ou outros), só lhes reservava de antemão e sem chance de contestação qualidades que lhe eram convenientes.

É preciso reconhecer, todavia, que a ideia de explicitação daquilo que já está dado em segundo plano, como no caso brasileiro, aponta para algo especialmente perturbador. Admitindo-se uma formulação drástica, se aqui pudermos falar de variante do fascismo clássico ela será sob vários aspectos pior que a original. Será mais arraigada e mais resistente à identificação e ao combate, devido ao seu caráter intrinsecamente dissimulado e, por isso mesmo, mais dependente de vigorosa atenção e ação no interior da sociedade. Não se recomendaria sem risco de sério embaraço procurar saber quem rotineiramente matou e torturou mais, a polícia política Gestapo e as tropas de choque SS na Alemanha ou órgãos policiais e milícias no Brasil. Melhor agir sem fazer contabilidade de vítimas.

O ponto, aqui, é que se pode falar de um forte traço parafascista entre nós ele não será encontrado diretamente nos aparelhos de Estado como foi na Alemanha, e sim difuso na sociedade. Decisivo nisso é que ele se encontra em estado latente; pronto, assim, a vir à tona desde que condições propícias se apresentem (por exemplo, após as eleições de 2022). É possível, desde agora, ter uma medida daquela piora em relação ao fascismo clássico (que, convenhamos, só não soa ridículo agora por efeito do fato inominável do genocídio explícito). Isso é possível porque já temos como comparar nossa situação atual com a dos vinte anos ditatoriais (pouco menos do que o regime fascista italiano e oito anos além do regime bem mais radical alemão).

O argumento, neste ponto, é que a diferença entre a situação atual e a ditadura aberta anterior é proporcional àquela que se poderia ou poderá verificar entre a plena vigência daquilo que aqui se encontra latente agora e à beira de se tornar manifesto e o fascismo europeu clássico. O momento não é de luta contra o fantasma do antigo fascismo, que já ficou para trás. É de confronto com o outro regime à espreita entre nós, autoritarismo de direita em estado puro que se vai formando, tão brutal na ação quanto viscoso e fugidio na caracterização. Se o princípio prático do fascismo clássico consiste em tornar público e manifesto o regime correspondente, aquilo que se entrevê em nosso caso é uma espécie de jogo de espelhos, fiel ao princípio básico de “faz de conta”.

Nada corresponde ao que se anuncia; tudo é possível em segundo plano, e a mão do poder – pesada ou sorrateira conforme a ocasião – golpeia quem levar demasiado a sério as aparências, elas também ocasionais. Já houve quem previsse o Ascenso ao poder no Brasil de figura tão caricata como destrutiva como Berlusconi na Itália ou mais, mal vislumbrando que para além de episódio acidental isso poderia assinalar a possibilidade de uma tendência a ser contida. O temor não é sem motivo. A figura de Berlusconi, pelo padrão de seu governo, centrado na figura do chefe em benefício dos interesses que lhe sejam afins e sempre equívoca quanto às suas posições –retrata uma tendência internacional que se aprofundou no período seguinte. Ele dá o mote para a extrema direita com relação as já frágeis instituições da democracia liberal representativa, ao mesmo tempo em que se esmera em pulverizar as forças opostas. As diversas experiências em escala global demonstram que os danos assim causados são profundos e de longo prazo e, sobretudo, dependem da mobilização de segmentos da sociedade em apoio a esforços de reconstrução institucional.

Sempre se dirá, e com razão, que o fascismo em sua versão convencional foi vencido. Aqui, contudo, uma distinção já sugerida antes e da maior importância se impõe. Por um lado, temos a dimensão que podemos chamar de “institucional”, relativa ao modo de funcionamento do Estado em suas relações com a sociedade: basicamente, no caso fascista, os órgãos de controle e gestão de interesses, de legitimação pela propaganda e de mobilização contínua mediante terror. Pelo outro, temos a dimensão “ideológica”, que diz respeito à gestão das ideias correntes e das correspondentes modalidades de conduta.

Vamos considerar que a primeira dimensão é mais propriamente política e a segunda tem caráter mais social. É visível ao primeiro relance que é relativamente mais fácil e com efeitos mais rápidos intervir na primeira (reescrever ou anular a Constituição, por exemplo) do que na segunda (eliminar convicções e condutas arraigadas ou criar novas, por exemplo; daí advém, em regimes autoritários, o recurso ao terror). Nos casos europeus clássicos derrotou-se a dimensão política, porém negligenciou-se, após alguns espasmos espetaculosos, o campo social como sede da cultura e da ideologia. No conjunto, o dado novo mais importante é que a dimensão institucional (que poderíamos também pensar como a hardware do regime) vem sofrendo desde meados do século passado mudanças importantes, que aumentam sua eficácia pelo lado soft (especialmente controles de informação e conduta por meios eletrônicos).

Isso permite dispensar parte crescente dos instrumentos pesados de consolidação e continuidade do regime (violência física aberta, substituída pela psíquica ou simbólica, por exemplo). Ao mesmo tempo aumenta a importância da dimensão ideológica, que se beneficia diretamente dos avanços tecnológicos e da pesquisa científica (inteligência artificial, por exemplo) na área leve de operação do regime. Tudo isso abre o caminho, na ausência de tendências contrárias e resistências fortes, para formas sempre novas de autoritarismo profundo de índole fascista, menos espetacular, menos ruidoso e menos sangrento, porém muitas vezes mais eficaz do que nos exemplos históricos. Nessas circunstâncias transferem-se para as áreas mais leves os embates próprios à polarização social e política, transferindo-se a batalha pelo controle das ruas para a disputa pelo acesso e controle da comunicação digital, sempre com vantagem para o lado mais agressivo e capaz de mobilizar os militantes de novo tipo, equipados para assegurar a comunicação própria e obstruir a do adversário.

Isso significa que a referência à derrota dos regimes fascistas clássicos deve ser qualificada. Derrotou-se, sim, o lado institucional do regime. Isso, entretanto, não envolveu sem mais a eliminação de sua vertente social, como de resto as décadas seguintes sugeriram fortemente. A concentração de poder de controle é um fato a ser enfrentado com todos os meios. Isso não se fará só no embate direto com os órgãos estatais e com os quase inexpugnáveis bastiões das megacorporações. Exige igualmente o trabalho de formiguinha de corroer em todos os cantos as cordas que atam as pessoas aos seus “aplicativos” digitais de toda sorte e as tornam sujeitas a todo tipo de abuso.

Uma ordem autoritária de cunho fascista parece à primeira vista algo que posto em marcha instala-se de modo rápido e irresistível. Todavia, a longa marcha pelas instituições abre caminho em meio viscoso, seja qual for sua orientação. O problema não é chegar primeiro, é implantar-se mais fundo, saber enfrentar o desafio do tempo. O fascismo em sua versão alemã voltava seu olhar para a questão do destino, daquilo que define o alvo final e estabelece as condições de seu alcance. Em sua versão italiana o enfoque é outro, com larga tradição visceralmente política desde Maquiavel. Está em jogo a oportunidade propícia à ação, que depende da capacidade de captar o momento certo e saber agir. Fatalismo do destino, oportunismo da vontade. Entre esses dois escolhos há amplo espaço para navegar, desde que o uso da razão permita desenhar a rota em bons mapas.

Fundamental, contudo, é que a resistência à consolidação de formas persistentes de dominação autoritária é possível, desde que se combine o desmonte de seus arcabouços institucionais com a reforma de seu legado obscurantista, com golpes precisos por um lado e persistência tenaz no outro. O caso paradigmático é o alemão (considerando-se, pelo que tem de advertência e de aconselhamento, somente a Alemanha ocidental RFA, com perfil capitalista e liberal-conservador, pois a RDA oriental, socialista e autoritária, exigiria análise à parte). As primeiras e espetaculosas providências para eliminar o nazismo sem deixar traços mal serviram para ocultar a dificuldade para resultado tão radical. Muitos ex-militantes menos salientes do movimento permaneceram em seus cargos públicos (ou ficaram à vontade nas mega organizações empresariais, em especial em suas filiais sul-americanas), até por efeito do acirramento da guerra fria, em que os dois lados se fitavam com olhar paranoide e preferiam fechar os olhos para muita coisa.

O essencial, entretanto, diz respeito ao que de fato foi feito. Contra fortes sinais de indiferença ou mesmo de hostilidade de remanescentes entre os vencidos, um vigoroso movimento de “reelaboração do passado” foi realizado desde os anos 1950 por agrupamentos e partidos da oposição ao conservadorismo da era Konrad Adenauer e por intelectuais eminentes, muitos deles retornados do exílio. Tratava-se de enfrentar com coragem cidadã o que havia sido feito e criar por todos os meios um ambiente de reflexão e reeducação antifascista, em empreendimento modelar. Não houve milagres, claro, e todos os envolvidos no fundo sabiam que estavam desencadeando um processo de longo prazo, de duas gerações no mínimo, e em terreno minado.

É verdade que mesmo os mais engajados entre eles, Theodor Adorno, por exemplo, em várias oportunidades foram tomados por descrença na possibilidade de se lançarem numa sociedade com tantas marcas autoritárias como a alemã os alicerces da efetiva cidadania, sem os quais todos os demais esforços de fato seriam em vão. Na atmosfera daquele período esse sentimento fazia sentido. Entretanto, vistos a um pouco mais de duas gerações torna-se mais fácil reconhecer que, com todas as suas insuficiências, essa tentativa de intervenção em registro democrático não passou em branco e propôs questões e procedimentos a serem levados muito a sério aqui e agora. O que se fez no caso alemão, contudo, não tem similar em outras sociedades e jamais seria feito sem a vigorosa ação desses núcleos combativamente democráticos, que não recuavam nem mesmo diante de exageros de seus aliados.

Esse é um caso exemplar de ação adequada após ocorrer o desastre. Em sociedades menos traumatizadas (por enquanto) o exemplo está dado. O combate efetivo contra o autoritarismo também em suas formas extremas tem como palco a sociedade e como adversárias as formas muitas vezes dissimuladas e fugidias de preconceitos rancorosos. No descuido disso acaba se revelando insuficiente a mudança institucional e mesmo o julgamento de culpados. Essa experiência ensina que ação de cunho democrático não consiste em anular ou esquecer o passado num golpe, mas em levar a sério a realidade da memória, saber enfrenta-la sem medo e sem rancor. A primeira e mais árdua tarefa dos antifascistas alemães foi precisamente honrar a dignidade da memória. Pouco adianta insistir no repúdio ao fascismo italiano ou alemão após sua derrota e em seguida varre-los da memória como tarefa cumprida. Ela mal começou.

O desafio consiste em construir o terreno para a formação de cidadãos no lugar de seguidores de lideranças. O que aqueles democratas sabiam é que o prazo para tanto é longo e que por isso mesmo é preciso começar logo. Nunca mais campos de extermínio tipo Auschwitz, propunha como lema um intelectual fortemente engajado naquele esforço. Talvez aqui logo possamos vir a dizer, contra formas políticas análogas às fascistas ou piores, nunca mais Bolsonaro, com tudo que essa figura representa de explicitação do tão persistente lado sombrio de nossa sociedade.

*Gabriel Cohn é professor emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt. Teoria e pensamento social (Azougue).

Artigo desenvolvido a partir da participação em mesa-redonda com Dylan Riley e Bernardo Ricupero no seminário, “Fascismo: ontem e hoje?”, em 4 de novembro. Disponível em https://youtu.be/1JPQTIxOL1E

 

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