Feios, sujos e malvados

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VALERIO ARCARY*

A burguesia brasileira carrega o peso de um passado terrível. Formou-se durante séculos sobre o genocídio e a escravidão

“A cordialidade…a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro” (Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil).

Ettore Scola, o brilhante cineasta italiano que nos presenteou com a delicadeza afetuosa de Una giornata particolare (Um Dia Muito Especial), a ironia política de La nuit de Varennes (Casanova e a Revolução) e o humor transgressivo de La famiglia (A Família), entre outras obras-primas, fez em 1976 um filme cruel intitulado Brutti, sporchi e cattivi (Feios, sujos e malvados na versão brasileira e Feios, porcos e maus, na portuguesa)

Os protagonistas eram uma imensa família que vivia, promiscuamente, em um barraco, e o centro da trama o envenenamento do patriarca, um monstro de mesquinhez e ignorância. Ettore Scola era um artista de esquerda. Mas não há no filme concessão alguma à idealização da degradação que vegeta na margem do mundo da pobreza.

Simetricamente, a idealização do mundo da riqueza não devia existir na esquerda brasileira. Depois do golpe de 2016, se alguma conclusão estratégica se impõe de forma incontornável é que a classe dominante não está disposta a tolerar um governo de esquerda no poder, mesmo que seja um governo de concertação para reformas graduais.

A lição histórica já vinha do golpe de 1964, quando aterrorizados pelo triunfo da revolução cubana se lançaram na entrega do poder às Forças Armadas. A burguesia só aceita a negociação de reformas em situações in extremis, quando há perigo iminente de revolução. Sem estratégia revolucionária não há qualquer horizonte de transformação da sociedade.

Evidentemente, a burguesia não é uma classe homogênea. Nenhuma classe social é homogênea, em país algum. Quando consideramos a burguesia como classe há que lembrar que são mais de dois milhões de pessoas. Estão divididos em várias frações e subgrupos em conflitos e realinhamentos, permanentemente, uns contra os outros: a fração do agronegócio, a industrial, a financeira, importadores, exportadores, os paulistas, os gaúchos, os nordestinos. E se pensarmos, individualmente, então há de tudo. Mas, individualmente, há todo tipo de gente em todas as classes sociais. Isso não tem a menor importância política.

Muitas diferenças de interesses econômicos imediatos, de localização política e até distinções culturais fraturam a burguesia. Mas a classe dominante no Brasil tem um núcleo duro minúsculo, muito concentrado e prevalecem, estrategicamente, os interesses que os unem na defesa dos seus privilégios sociais: a preservação do capitalismo.

A burguesia brasileira carrega o peso de um passado terrível que os atormenta como um pesadelo. Historicamente, formou-se durante séculos sobre o genocídio e a escravidão. A meritocracia é hoje o seu vocabulário ideológico mais poderoso. Mas, a influência deste critério liberal é relativamente recente e coincide com a urbanização acelerada sobretudo a partir dos anos 1930.

A meritocracia defende a igualdade de oportunidades. Argumenta que processos de seleção devem ser organizados tendo como critério central o esforço ou a aptidão, o empenho ou o valor, portanto, o merecimento. Para qualquer pessoa razoável parece mais justo o critério meritocrático do que o hereditário ou o do favor. Porque é mais equitativo do que o parentesco, mais lícito do que a confiança, e menos aleatório do que o sorteio. Certamente é melhor o critério da capacidade do que a consanguinidade, melhor a destreza do que o compadrio, melhor a dedicação do que o favorecimento. Esse é o limite do liberalismo: a equidade, ou seja, a igualdade de oportunidades.

A burguesia brasileira era tão reacionária até poucas décadas atrás, que ser “liberal” era confundido com ser de esquerda. Sempre é bom frisar que a meritocracia corresponde a uma visão liberal do mundo, portanto, uma ideologia burguesa. O socialismo defende a igualdade social. A igualdade de oportunidades não é a igualdade social. É progressiva quando comparada aos critérios pré-capitalistas que favoreciam o parentesco ou o apadrinhamento. Mas é regressiva quando comparada com o socialismo.

O critério meritocrático é aquele que defende que devem estudar na universidade pública aqueles que foram aprovados nos exames de acesso, portanto, os mais preparados. O critério socialista é que todos devem poder ter acesso ao ensino superior. E enquanto isso não for possível, o critério socialista é a defesa de cotas sociais e raciais para favorecer os mais desfavorecidos compensando a desigualdade. No Brasil arcaico, mesmo até 1950, só podiam fazer curso superior os que pertenciam à classe dos proprietários, quem podia pagar, ou quem “ganhava” o favor de uma vaga.

A meritocracia ganhou hegemonia ideológica no Brasil muito lentamente. Foi lento o processo porque houve resistência. E não nos surpreendamos se ainda há relutância. Prevaleceu durante muitas gerações uma inserção social quase hereditária: os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio dos pais. A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.

A mobilidade social era muito baixa. O Brasil agrário era uma sociedade muito desigual e rígida, quase estamental. Era estamental porque os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de classe e castas que congelava a mobilidade. A ascensão social era somente individual e estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência, portanto, de clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança pessoal.

Sergio Buarque de Holanda foi o primeiro que deu importância ao tema da resistência ideológica ao liberalismo no livro Raízes do Brasil, publicado em 1936. Muitos interpretaram que o conceito de “homem cordial” era uma imagem que remetia à afetuosidade pessoal, uma gentileza humana, uma doçura política, um swing no trato. Mas o tema era o atraso da classe dominante e sua mentalidade pré-capitalista.

Outros concluíram que o conceito da cordialidade buscava capturar as consequências positivas de um tipo de colonização que tolerou a miscigenação racial. Mesmo se baseada na escravidão, teria evitado as formas violentas de discriminação e apartação como nos EUA e na África do Sul, e explicaria a colaboração social pela via individual da busca do favorecimento e clientela.

Nos anos 1930 a sociologia estava ainda prisioneira do paradigma da busca da compreensão do caráter nacional de cada povo e, portanto, se dispersava em construções ideológicas. A visão do Brasil como um país de povo dócil e intensamente emocional correspondia às necessidades da classe dominante. Uma nação em que, apesar das desigualdades econômicas abissais, se manteria uma incomum coesão social.

Sergio Buarque tinha outra preocupação. Percebia que a cordialidade do brasileiro era uma forma cultural de luta pela sobrevivência e de adaptação a um sistema no qual a ascensão social dependia do favorecimento. A cordialidade ocultava a imensa brutalidade das relações sociais, camufladas através de uma intimidade falsa, expressão do controle privado do espaço público.

A cordialidade era expressão dissimulada do medo da miséria e do temor da represália. Ao mesmo tempo, uma manifestação no terreno dos costumes da resistência cultural de um povo. Da cordialidade veio o “jeitinho”, ou seja, a ideologia da improvisação: a consagração do drible das regras universais, do engano da frieza da lei igual para todos. Da cordialidade veio o elogio do “levar vantagem”, a ideologia da conivência com a conveniência, portanto, a legitimação do proveito, a tolerância com a corrupção.

A cordialidade foi a mãe do “jeitinho”. Essa foi a forma histórica encontrada de garantir mobilidade social individual em uma sociedade rígida: através de relações pessoais de compadrio e favor para preservar a paz social e encontrar saídas negociadas e concertadas.

O capitalismo brasileiro tem a cara de sua classe dominante. São dissimulados, porque a defesa do mundo da riqueza exige, publicamente, a representação de um papel político. Mas, no fundo, são feios, brutos e malvados.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado Lincoln Secco Manuel Domingos Neto Bernardo Ricupero Heraldo Campos André Márcio Neves Soares Ricardo Musse Rafael R. Ioris Thomas Piketty João Paulo Ayub Fonseca Tarso Genro Henry Burnett José Micaelson Lacerda Morais Luiz Marques Gilberto Lopes Osvaldo Coggiola Fábio Konder Comparato André Singer Caio Bugiato Slavoj Žižek Alexandre de Lima Castro Tranjan Milton Pinheiro Valerio Arcary Leonardo Avritzer Celso Frederico Flávio R. Kothe José Geraldo Couto Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcus Ianoni Bento Prado Jr. José Machado Moita Neto Marjorie C. Marona Michel Goulart da Silva Luiz Roberto Alves Rubens Pinto Lyra João Sette Whitaker Ferreira Annateresa Fabris Ronald León Núñez Salem Nasser Fernão Pessoa Ramos Kátia Gerab Baggio Yuri Martins-Fontes João Carlos Loebens Vinício Carrilho Martinez Lorenzo Vitral Tadeu Valadares Armando Boito Igor Felippe Santos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Fernandes Ladeira Jorge Branco Boaventura de Sousa Santos Daniel Costa Julian Rodrigues Dênis de Moraes Paulo Fernandes Silveira Rodrigo de Faria Antonio Martins Ricardo Fabbrini Chico Whitaker Afrânio Catani Carla Teixeira Luciano Nascimento Benicio Viero Schmidt Juarez Guimarães Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Guimarães Lima Henri Acselrad Eugênio Trivinho Francisco de Oliveira Barros Júnior Leda Maria Paulani Airton Paschoa Luiz Eduardo Soares Michael Löwy Paulo Martins Antonino Infranca Denilson Cordeiro Eduardo Borges Liszt Vieira Eleutério F. S. Prado Leonardo Sacramento Érico Andrade Luiz Renato Martins João Adolfo Hansen Gerson Almeida Eliziário Andrade Matheus Silveira de Souza José Costa Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Ladislau Dowbor Atilio A. Boron Plínio de Arruda Sampaio Jr. Samuel Kilsztajn Ronaldo Tadeu de Souza Ronald Rocha Eleonora Albano Andrew Korybko Eugênio Bucci Vanderlei Tenório Marcos Silva Sandra Bitencourt Luiz Bernardo Pericás Daniel Brazil Chico Alencar Gabriel Cohn Paulo Nogueira Batista Jr Dennis Oliveira Paulo Capel Narvai Daniel Afonso da Silva Luis Felipe Miguel Jean Pierre Chauvin João Feres Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Mário Maestri Berenice Bento Jean Marc Von Der Weid Fernando Nogueira da Costa Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano Claudio Katz Marcos Aurélio da Silva Marilena Chauí Elias Jabbour José Dirceu José Luís Fiori Jorge Luiz Souto Maior Flávio Aguiar Celso Favaretto Andrés del Río Gilberto Maringoni José Raimundo Trindade Maria Rita Kehl Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Antunes Sergio Amadeu da Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Carlos Tautz Vladimir Safatle Alysson Leandro Mascaro Ari Marcelo Solon Otaviano Helene Ricardo Abramovay Mariarosaria Fabris João Lanari Bo Tales Ab'Sáber Francisco Pereira de Farias Luiz Werneck Vianna Marcelo Módolo Remy José Fontana Manchetômetro Michael Roberts Valerio Arcary Anselm Jappe Leonardo Boff Paulo Sérgio Pinheiro Renato Dagnino Walnice Nogueira Galvão Alexandre Aragão de Albuquerque João Carlos Salles

NOVAS PUBLICAÇÕES