Florestan Fernandes’ critical sociology

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Por LUCAS TRINDADE*

Comentário sobre o livro de Diogo Valença de Azevedo Costa & Eliane Veras Soares

1.

A obra aqui resenhada, que integra a série “Classic and Contemporary Latin American Social Theory”, editada por Adrian Scribano, leva devidamente a sério proposições avançadas já nos anos 1950 e 1960 por autores como o próprio Florestan Fernandes e Luiz de Aguiar Costa Pinto sobre a decisiva importância da teoria social (re) elaborada nas (semi) periferias do sistema mundo capitalista para a produção sócio-científica internacional.

Acompanha, igualmente, a agenda delineada por uma miríade de autores – a exemplo de Brandão (2010), Maia (2011), Lynch (2013), Tavolaro (2014), Botelho (2019), Ribeiro, Dutra e Martins (2022), Rios e Klein (2022), Oliveira e Alves (2023) – de não apenas questionar a divisão entre teoria social (ao Norte) e pensamento social (ao Sul), mas de evidenciar que aqui também se faz Teoria Social, com maiúsculas deliberadas, ofertando instrumentos para a compreensão global do mundo moderno e contemporâneo que não se limitam à compreensão de uma singularidade formativa regional ou nacional como, respectivamente, a latino-americana ou brasileira.

Como sugerido em evento de lançamento[i] pela coautora do livro Eliane Veras Soares, a publicação contribui para dois importantes movimentos: (a) oferecer para leitores da língua inglesa uma abordagem sintética, fundamentada e que, principalmente, evidencia a contribuição de Florestan Fernandes para a teoria social tomada de modo global; (b) pelo reconhecimento que a língua inglesa tem na dinâmica acadêmica internacional, o livro chama a atenção da comunidade científica brasileira para a relevância supranacional da obra de Florestan Fernandes e sua vigência.

No sentido de evidenciar o alcance da teoria social de Florestan Fernandes – seu trabalho de síntese teórica e a sua inventividade ao se apropriar e dialogar com diferentes vertentes das ciências sociais do século XIX e XX – a obra se coloca no lastro de importantes trabalhos em torno das contribuições de Fernandes, como os de Octavio Ianni, Gabriel Cohn, Miriam Limoeiro Cardoso, Elide Rugai Bastos, Antonio Brasil Jr., entre outras e outros.

A longa trajetória de pesquisa dos autores em torno da obra de Fernandes permite um trabalho rigoroso que alia a reconstrução da trajetória biográfica e intelectual do sociólogo uspiano, sobretudo a partir de uma interpretação de suas narrativas autobiográficas, e a apresentação simultaneamente profunda e clara de suas contribuições centrais para uma teoria social crítica.

No livro, o conjunto da obra de Florestan Fernandes publicada entre os anos 1940 e 1990 é abordada diacronicamente, em suas continuidades e descontinuidades, trabalho que se vale da íntima relação dos autores com o arquivo e biblioteca pessoais do sociólogo, abrigados na UFSCar.

O livro é estruturado em três partes, além da introdução, da conclusão e do index (índice remissivo). A primeira parte (“From the Lumpen social environment to the University of São Paulo”), fortemente inspirada na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, propõe a noção de “estilo de pensamento lumpen” que funciona, na economia do texto, em um duplo sentido: (i) evidencia as complexas mediações que ligam o pensamento do autor à sua existência em um tempo-espaço particular; (ii) singulariza, em contraste com outras teorias sociais, um “modo” próprio de pensar e, logo, de conceber e organizar a experiência social e individual.

A tese do “estilo de pensamento lumpen” atravessa não só a primeira parte e a interpretação da trajetória intelectual de Florestan Florestan, mas todo o livro. Assim, a segunda parte (“The construction of Florestan Fernandes’ critical sociology: From Brazilian ‘social dilemmas’ to the category of ‘dependent capitalism’ in Latin America”) aborda o conjunto de sua obra e reconstrói os seus conceitos centrais tendo sempre em mente a saturação destes por aquele estilo, o que desemboca, a partir dos anos 1970, na proposição de um marxismo latino-americano original e da “sociologia crítica e militante”.

A terceira parte (“Brazil and Latin America in a socialist perspective: racial dilemma, dependent capitalism and bourgeois autocracy”) analisa o recorte que vai do exílio no Canadá (1969-1972) aos mandatos como parlamentar de 1987 a 1995 e reconstrói a interdependência entre as reflexões de Florestan Florestan sobre o dilema racial brasileiro, o capitalismo dependente e a autocracia burguesa, assim como entre a prática teórica e a prática política do autor.

Na caracterização do “estilo de pensamento lumpen” de Florestan Fernandes, os autores, baseados em depoimentos e esboços autobiográficos, salientam como a origem social do sociólogo[ii] o permitiu, posteriormente, uma compreensão não só interpretativa, mas empática ou endopática às dificuldades vividas pelos indivíduos e grupos subalternizados da sociedade brasileira. Destacam também o caráter ativo de um Florestan em formação que, ao viver o contraste entre “dois mundos”[iii], “will remain faithful to his social provenance” (p. 14).

Lealdade lumpen que permitiu, inclusive, uma reelaboração crítica e criativa do “typically European pattern of class analysis” (p. 14), considerando sempre, em suas elaborações, segmentos populacionais excluídos, explorados e não-integrados ininteligíveis a partir de uma noção restrita e eurocentrada de classe trabalhadora.

Sua “socialização política indireta” lumpen, ou “socialização plebeia” (expressão do próprio Florestan destacada pelos autores), seria a base de uma formação ética, no sentido da incorporação de concepções de solidariedade e compromisso coletivo forjadas na vivência da camaradagem com aqueles que pôde contar ao longo da sua difícil trajetória, valores antitéticos ao ultra-individualismo antissocial da “ordem social competitiva”.

Tal ethos plebeu condicionaria, novamente através da carne do vivido, a percepção dos impasses insolúveis do capitalismo, em geral, e do capitalismo dependente, em particular, para a consolidação de padrões civilizatórios aceitáveis de igualdade (material e simbólica) e participação política das maiorias.

A tese do estilo de pensamento lumpen, para pensar a teoria social de Florestan Fernandes, permite falar em uma perspectiva de conhecimento capaz de lançar luz não só às contradições do mundo do trabalho tipicamente capitalista, como o faz o ponto de vista que fundamentou a crítica da economia política no contexto da revolução industrial europeia.

Um estilo de pensamento lumpen, quando emerge como perspectiva frutífera de produção de conhecimento teórico-científico, permite fazer ver (explicar e compreender) o mundo do não-trabalho, no sentido dos setores não incluídos em padrões típicos da chamada força de trabalho livre assalariada, veio central de suas principais obras, a exemplo de A Integração do Negro na Sociedade de Classes e A Revolução Burguesa no Brasil.

2.

Nos limites de uma resenha, importa destacar a originalidade dos autores em estabelecer as mediações entre esse estilo de pensamento lumpen e a formação interdependente dos conceitos nucleares de dilema racial brasileiro, capitalismo dependente e autocracia burguesa, aspecto particular do livro desenvolvido na segunda parte, na qual se busca evidenciar: (a) por um lado, a rede que liga aqueles conceitos, formulados nas décadas de 1960 e 1970, com os trabalhos das décadas anteriores (1940 e 1950); (b) por outro lado, as redes da teoria social de Florestan com outros autores latino-americanos, marxistas ou não, e com as apropriações e críticas das teorias da modernização e do desenvolvimento.

No que se refere a este último aspecto, que abre toda uma agenda de pesquisa para aqueles interessados na obra de Florestan Fernandes e como o autor “became part of a more general moviment towards the social sciences’ Latin Americanization” (p. 78), é destacada a interlocução, mais ou menos explícita, com os trabalhos de instituições como a CEPAL, a FLACSO, a CLAPCS e autores como Costa Pinto, Celso Furtado, Fals Borda, Torres Restrepo, Guerreiro Ramos, Stavenhagen, Pablo Casanova, Eliseo Verón, Theotonio dos Santos, Aldo Solari, Sergio Bagú, Prado Jr., Orlando Albornoz, Gino Germani, Mendieta y Nuñez, Isaac Ganón, Louis Swenson, Manuel Diégues Jr., Medina Echavarría, F. H. Cardoso, Octavio Ianni, José Nun, Roger Vekemans, Domingo Rivarola, Jorge Graciarena, Gérard Pierre-Charles, Julio Le Riverend, Roberto Retamar, Armando Dávolos, entre outros.

Os autores, ao seguirem as redes intelectuais de Florestan Fernandes na América Latina, sugerem uma periodização dessa relação político-intelectual: (1) do início dos anos 1960 até a sua aposentadoria compulsória, período das pesquisas no CESIT e interlocução sobre as possibilidades de superação do subdesenvolvimento e da dependência na América Latina; (2) do período na Universidade de Toronto (1969-1972) até fins dos anos 1970, quando lê a América Latina “through the prism of anti-colonial, anti-imperialist and Marxist critical thinking” (p. 122); (3) o período de participação na Associação Cultural José Martí de São Paulo e no movimento de Solidariedade a Cuba até meados dos anos 1980.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, que rigorosamente traz à vista o fio vermelho que liga os trabalhos produzidos entre os anos 1940 e 1970, aponto, de partida, para a rica sugestão dos autores de que desde os seus primeiros escritos em torno do folclore, Florestan já exprimia um esforço de reavaliar uma cognição dualista ao pensar as relações mutáveis entre tradicional e moderno: “one of his conclusions is that folklore in the urban social environment continues to play constructive roles in adjusting family groups and individuals within a highly competitive society” (p. 61).[iv]

Dos seus estudos sobre as relações raciais no Brasil, Florestan conclui, de modo análogo, que “[t]he mere development of class society would not eliminate colour prejudice and racial discrimination” (p. 75). Nos anos 1970, sempre atento aos “limits to the realization of an authentic democracy, imposed by Brazilian racial discrimination” (p. 77), Florestan escreve sobre os processos de “modernização do arcaico” e “arcaização do moderno” (Fernandes, 2009, p. 48) que caracterizam o capitalismo dependente.

Este conceito, “based on a dialectical interaction between imperialism, dependency and underdeveplopment” (p. 88), representa o cume de uma crítica à razão dualista (Oliveira, 2003) na obra de Florestan Fernandes, “deconstructing the boundaries between social systems in the form of opposing conceptual pairs: advanced and backward, modern and archaic, central and peripheral, autonomous and dependent, developed and underdeveloped” (p. 88).

Tal crítica, que se faz por meio de uma síntese criativa das teorias sociais clássicas e contemporâneas a Florestan Fernandes e oferece contribuições teóricas originais “to the sociological study of capitalism and the world capitalist system” (p. 86), relaciona-se diretamente, defendem os autores, com “his position of marginality as a politically active sociologist in a peripheral, underdeveloped and dependent society of colonial origin” (p. 85).

Salientar isso também significa trazer para o presente, como um desafio “for social scientists located in the multiples peripheries of world system” (p. 90), o modo de trabalho de Florestan, que desde as suas sistematizações teóricas dos anos 1950 buscava localizar “the epistemological reflection in the concrete backgrounds” (p. 90) da sua produção intelectual.

3.

Sobre os estudos teóricos e metodológicos de Florestan nos anos 1950, bem antes portanto do afamado “novo movimento teórico” (Alexander, 1987) dos anos 1970 e 1980, os autores destacam como Florestan buscou sintetizar as contribuições dos clássicos da sociologia (Marx, Weber e Durkheim) não a partir de uma postura eclética.

Em contraste, seu trabalho de síntese faz-se por meio da cuidadosa proposição de complementaridades teóricas possíveis baseadas no claro destaque das diferenças entre os contextos, tradições, autores e, sobretudo, das distintas formas de construção de tipos (tipo ideal, tipo médio e tipo extremo) fornecidas, respectivamente, pelo método compreensivo (Weber), pelo método genético-comparativo ou objetivo (Durkheim) e pelo método dialético (Marx), salientando como cada um desses abriga uma concepção peculiar de tempo histórico e margens próprias de abstração/concreção para o sujeito do conhecimento.

Se nos ensaios escritos nos anos 1950, principalmente os compilados em Fundamentos empíricos da explicação sociológica, a síntese teórica dá-se em um elevado nível de abstração, a partir do ensaio de 1959 (no texto “Atitudes e motivações desfavoráveis ao desenvolvimento”), conforme a datação precisa dos autores, o trabalho é realizado visando lançar luz sobre uma problemática concreta: “the research problems of Third World nations committed to overcoming underdevelopment” (p. 95).

Forma de síntese teórica que também opera em textos basilares para a formulação do conceito de capitalismo dependente, tais como Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1967) e a intervenção no Seminário sobre os problemas de conceituação das classes sociais na América Latina (1971). Há, portanto, uma relação intricada e de enriquecimento mútuo entre a síntese teórica e a sociologia da dependência de Florestan, relação que deve ser aprofundada para pensar a vigência da sua obra.

O conceito de capitalismo dependente não só caracteriza uma forma original e produtiva – teórica e politicamente – de pensar a integração de alguns países latino-americanos, sendo o Brasil um tipo extremo (p. 121), ao sistema mundial tomado em termos abrangentes (econômicos, sociais, políticos e culturais). Representa, igualmente, uma forma nova de pensar os modos de articulação daquelas esferas ou instâncias no interior das formações sociais (ver Silva, 2022a).

A emergência dessa forma nova de pensar evidencia-se na passagem, destacada pelos autores, da noção de demora cultural (conceito proposto por William Ogburn e de uso corrente na teoria da modernização) para a noção de dilema. Aquela ainda ligada a um imaginário etapista, progressivo e unilinear dos processos de modernização; esta apontando, decisivamente, “to the structural impossibilities of transforming the social order towards realising its mores or consecrated ideal values” (p. 120).

Logo, no último caso, a compatibilidade entre arcaico e moderno na articulação entre as e no interior das esferas societais não é vista como um conflito entre passado e presente, como resquícios da tradição, mas como um modo de articulação estrutural passível de (re)produção e transformação por meio da agência coletiva, orientada por valores. Aqui, a modernidade e os processos de modernização podem ser concebidos em suas contradições e ambivalências fundamentais – no nível das múltiplas formas de articulação estrutural e perpetuação de formas de opressão, dominação e exploração – e como estoque de valores utópicos capaz de desencadear e sustentar movimentos de transformação reformistas ou revolucionários, dentro ou contra a ordem. Em Florestan, a modernidade não acabou nem é um projeto inacabado, ela é tanto o que é como o que promete.

Ao rejeitarem a tese de uma ruptura epistemológica que cindiria Florestan em uma fase “acadêmico-reformista” e outra “político-revolucionária” e ao buscarem apresentar o político presente no cientista e o cientista presente no político em uma trajetória marcada por continuidades e descontinuidades, os autores caracterizam o Florestan dos anos 1970 “as a Brazilian and Latin American Marxist” (p. 132). Caracterização que, paradoxalmente, ganhou contornos fundamentais em seu exílio “in a university from one of the central capitalist and hegemonic countries of the Global North” (p. 136), a Universidade de Toronto[v].

4.

Interessa-me pontuar, ao tratar dos capítulos finais do texto (que focalizam a atuação política e intelectual de Florestan nos anos 1970, 1980 e 1990), as contribuições trazidas pela obra para a compreensão do conceito de autocracia burguesa.

Conceito este que, certamente, guarda íntima relação com a radicalização teórico-política do autor nos anos 1970, quando o socialista marxista e o sociólogo se interpenetram sem qualquer ambivalência na busca de “interpretation, negation and alteration” (p. 144) dos dilemas brasileiros e latino-americanos. Os autores salientam elementos decisivos para compreender aquele conceito.

Primeiramente, trata-se de um desenvolvimento conceitual diretamente atrelado às suas teses anteriores e simultâneas “on dependent capitalism and bourgeois counterrevolutions in the peripheries of the world capitalist system” (p. 147). Em segundo lugar, como explicitado em seus Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo” (curso dado na PUC-SP em 1977 e publicado em 1979), o conceito é desdobrado em claro contraste com as raízes liberais na noção de autoritarismo, que, para Florestan, “naturalises the institutionalised violence inherent to the bourgeois State without questioning its historical and structural roots in civil society” (p. 147).

Em terceiro lugar, não pode ser pensado independentemente da reconfiguração das funções do Estado na consolidação do capitalismo monopolista, do desenvolvimento desigual e combinado de novo tipo por este engendrado e das tensões com o campo socialista, que tanto reforçou o caráter repressivo do Estado burguês como criou desafios profundos e novos para pensar “the ‘transition to socialism’” (p. 148).

Em quarto lugar, o conceito de autocracia burguesa, embora fortemente atrelado a uma reflexão sistemática sobre a implantação e consolidação da ditadura empresarial-militar brasileira a partir de 1964 (ver especialmente p. 171-172), não tem vigência limitada àquela conjuntura, sendo fundamental para compreender tanto a República anterior ao golpe como, de 1985 em diante, “the passage from an open bourgeois autocracy to a restricted democracy” (p. 150), como é evidente nas intervenções de Florestan a partir de meados dos anos 1980 e a sua tese “that the dictatorship prolonged itself by other means and became institutionalised” (p. 150). Tese que oferece importantes elementos para pensar a força da extrema direita e de grupos fascistas no Brasil contemporâneo.

Em quinto lugar, os autores destacam como Florestan claramente indica a possibilidade de generalização dos atributos do capitalismo dependente e, logo, da autocracia burguesa a nível mundial (p. 151), sem tomá-la como um desvio ou singularidade periférica do Estado burguês clássico (ver Silva, 2022b).

Em sexto e último lugar, a reflexão sobre a autocracia burguesa não pode estar dissociada do estudo sistemático de Florestan, desde os anos 1950, sobre “|the historical forms of combination between capitalist exploitation, racial division of labour and racism” (p. 154). Como reforçado algumas vezes ao longo do texto, se Florestan toma “the history of the negro as the true history of the emergence of the people in Brazilian society”, isso permite afirmar que “studying race relations was his gateway to understanding the dilemmas of dependent capitalism” (p. 154).

Diferente de se identificar a regimes de governo particulares, o conceito de autocracia burguesa lança luz, ao pensar o capitalismo dependente, sobre as formas de poder e dominação (institucionais e extra-institucionais) capazes de reproduzir uma sociedade capitalista moderna estruturalmente fechada para as classes trabalhadores e os amplos segmentos subalternos em termos econômicos, políticos e sócioculturais. Numa formulação precisa e inteiramente baseada na letra de Florestan, os autores escrevem: “bourgeois autocracy constitutes the historical starting point for consolidating distorted forms of democracy in peripherical and dependent capitalism” (p. 172).

Quando o aparato analítico apresentado é mobilizado para pensar o tempo presente, os autores sugerem não só a atualidade do conceito de autocracia burguesa, mas a sua vigência para além das formações sociais subdesenvolvidas e dependentes: “Highlighting the specific class domination of the system’s periphery in the era of imperialism and monopoly capitalism, the category of ‘bourgeois autocracy’ precisely captures a structural characteristic of capitalist societies on an international scale and which today perhaps tends to become generalised. Class domination is exercised autocratically in the face of the hegemony of parasitic fractions of financial capital in the centres and peripheries of the capitalist world system” (p. 174).

A interdependência entre capitalismo dependente, autocracia burguesa e dilema racial na teoria social de Florestan Fernandes permite retornar a um dos motivos condutores de todo o livro: o estilo lumpen de pensamento do autor. Afinal, uma das teses fundamentais do clássico A Integração do Negro na Sociedade de Classes versa exatamente sobre a incapacidade da chamada ordem social competitiva, em um país de passado escravista e colonial como o Brasil, integrar negras e negros aos atributos típicos da sociedade de classes e do trabalho assalariado moderno.

Isso implica reconhecer que negras e negros formaram e formam o grosso do lumpen – Lélia Gonzalez (2020), baseada em José Nun, prefere a noção de massa marginal – do qual dona Maria e o seu filho, Florestan, vieram e lutaram. Com a formulação do conceito de capitalismo dependente e de autocracia burguesa, há um refinamento teórico sobre os mecanismos que tornam a superexploração, a exclusão e a não-integração (em termos de renda, prestígio e poder) expedientes normais e mesmo necessários dos dinamismos de uma formação social.

Logo, do ponto de vista de uma sociologia do conhecimento, há um triângulo de posições espaço-temporais que condicionariam as contribuições de Florestan para a teoria social: a periferia dependente no sistema mundial (lugar privilegiado para analisar as ambivalências da modernização e os entrelaçamentos entre arcaico e moderno); o continuum temporal de frustração dos populismos desenvolvimentistas e as múltiplas modernizações autocráticas na América Latina; a sua condição social lumpen.

O estilo de pensamento lumpen oferece elementos não só para pensar as contribuições teóricas de Florestan, mas, igualmente, as suas tomadas de posição no interior da prática política, sobretudo a partir dos anos 1970, quando uma concepção de socialismo democrático, antagônica a todos os atributos das formas autocráticas explícitas ou sutis de dominação, emerge a partir de uma análise aprofundada da experiência cubana – em Da Guerrilha ao Socialismo: a revolução cubana, de 1979 (ver p. 175-179) – e de suas intervenções político-intelectuais nos anos 1980 e 1990.

Nesses escritos, destacam os autores, “emerge his first efforts to characterise the ‘Brazilian revolution’ as a union between the working classes and the dispossessed masses. Florestan Fernandes did not despise the role of lumpen social strata in democratic transformations” (p. 150). Caracterização que orienta a sua militância no Partido dos Trabalhadores e a sua concepção de partido revolucionário, “capable of agglutinating the distinct flags of ecology, women, indigenous peoples, blacks, workers and youth social struggles with the participation of the various dissident groups sidelined by peripheral capitalism” (p. 153).

Para os autores, um dos maiores exemplos da força prática das ideias de Florestan está em sua influência no MST, cuja principal escola de formação, a Escola Nacional Florestan Fernandes (fundada em 2005), leva seu nome: “|a symbol of the return of Florestan Fernandes to his lumpen and peasant origins” (p. 184).

5.

Concluo com duas últimas observações. Por um lado, o livro resenhado suscita uma reflexão sistemática e coletiva sobre como a obra de Florestan Fernandes pensa e dá respostas às questões tomadas como centrais por uma definição já canônica (e eurocentrada) de teoria social, a saber: “‘O que é ação?’; ‘O que é ordem social?’; e ‘O que determina a mudança social?’” (Joas e Knöbl, 2017, p. 33); assim como o desdobramento dessas respostas em diagnósticos de época.

A resposta a essas questões e os diagnósticos de época presentes na obra de Fernandes estão indissociavelmente ligados – e essa ligação só se intensifica ao longo da sua trajetória política-intelectual – a um compromisso de transformação radical das formas de vida social, logo, como uma “teoria social crítica” (Collins, 2022).

Por outro lado, a obra nos leva a pensar sobre as limitações das definições consagradas e eurocentradas de teoria social e a tatear uma definição desta a partir dos esforços de autores que, como Florestan, pensaram sistematicamente os dilemas latino-americanos a partir de uma perspectiva totalizante, levando a sério as implicações que o estudo das relações raciais, dos problemas do subdesenvolvimento, da dependência e da dominação autocrática teriam na definição de uma teoria social que não só reflete, mas deliberadamente anseia ser instrumento de reflexividade e luta ao lado dos condenados de um sistema global.

*Lucas Trindade é professor do Instituto Humanitas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Publicado originalmente na revista Sociologias, v. 27, n. 64, p. e138453, 2025. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-0337/e138453

Referência


Diogo Valença de Azevedo Costa & Eliane Veras Soares. Florestan Fernandes’ critical sociology: a social theory of Brazil and Latin America. Oxon and New York, Routledge, 2024, 194 págs. [https://amzn.to/4kdPKjG]

Bibliografia


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BOTELHO, André. O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2019.

BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. 2. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2010.

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YOUTUBE. Lançamento de livro: Florestan Fernandes’ Critical Sociology. 30 nov. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/live/sWyvgslXyvA?si=_Q6wnkXqH9BEu4bA.

Notas


[i] O evento pode ser visto no link em YouTube (2023).

[ii] Filho de Dona Maria, mãe solo, trabalhadora doméstica; “a child launched precociously into the world of work” (p. 19), engraxate e garçom na juventude.

[iii] O mundo lumpen de Dona Maria e o mundo de opulência de Dona Hermínia, patroa da primeira e madrinha de Florestan.

[iv] Ainda sobre as primeiras monografias de Florestan, ao apreciarem os estudos deste sobre os Tupinambá, os autores apontam como estes põem em suspeição “the etnocentric views of the 16th-and 17th-century authors” e “comes close to a counter-history of the ‘vanquished’ original people subjected to a violent process of detribalisation” (p. 65).

[v] O livro traz ricos documentos e depoimentos que lançam luz sobre o curto período de Florestan no Canadá e seu retorno para o Brasil (ver especialmente o capítulo 7, p. 135-143), assim como reproduz as primeiras páginas dos programas dos cursos oferecidos em Toronto (ver as figuras nas p. 139-141).


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