Florestan Fernandes e Celso Furtado

Carlos Zilio, ESTRELA GUIA, 1971, caneta hidrográfica sobre papel, 50x35
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO PEDRO STEDILE*

Comentário sobre o centenário dos dois pensadores

Neste mês de julho, celebramos o centenário de dois dos maiores pensadores do povo brasileiro, Florestan Fernandes (22/07/1920) e Celso Furtado (26/07/1920). Certamente, haverão de se repetir homenagens nas escolas, universidades e nos movimentos populares.

Ambos analisaram com profundidade a realidade brasileira, cada um na sua área. Furtado foi o principal pesquisador da questão da formação econômica do Brasil. Florestan analisou como ninguém o as classes sociais, os problemas da desigualdade, das mazelas do racismo em uma sociedade de origens escravocratas. Furtado olhou o Brasil pelo viés da economia política. Florestan pela ótica da educação e da sociedade de classes. São análises complementares que tornaram suas obras imprescindíveis na formação dos educadores e militantes do povo e na compreensão do Brasil. Pesquisadores e analistas criteriosos, foram mais que cientistas sociais, foram indivíduos comprometidos com nosso povo, atuando nas mais diferentes trincheiras da luta social para mudar a sociedade brasileira, uma estrutura injusta que se caracteriza como uma das mais desiguais do planeta.

Furtado conhecia como poucos as mazelas da região Nordeste, desde sua Paraíba. Foi expedicionário da FEB e, além de atuar na vida universitária, ajudou a organizar a Sudene, foi ministro do Planejamento do presidente João Goulart, e posteriormente da Cultura, na redemocratização pós-ditadura militar.

Como ministro de Jango, foi o autor intelectual da principal proposta de reforma agrária que tivemos até hoje. Partindo das experiências históricas clássicas dos países que se industrializaram, propôs que a reforma agrária constituísse também um instrumento para o desenvolvimento da indústria nacional. Para tanto, propôs a desapropriação de todos os latifúndios com mais de 500 hectares, priorizando os localizados próximo às cidades e ao longo de 10 quilômetros de cada lado das rodovias federais, ferrovias, lagos e açudes. Na sua visão, seria necessário transformar o camponês num partícipe da economia de mercado para produzir alimentos para a cidade e consumir os bens produzidos pela indústria.

Para isso, precisava estar próximo às cidades, com transporte rápido e acesso à luz elétrica. Somente assim sairíamos da crise econômica da época, podendo desenvolver a indústria, com mercado interno e distribuição de renda, melhorando as condições de vida de todo o povo. O projeto foi apresentado ao Congresso em 16 de março de 1964. A resposta da burguesia brasileira, subordinada aos interesses dos Estados Unidos, foi o golpe empresarial-militar.

Florestan nunca esqueceu suas origens de garoto pobre, filho de empregada doméstica migrante de Portugal, que lutou durante toda a sua vida para poder estudar. Ele acreditava que pela via da democratização da educação poderíamos redimir nosso povo, democratizar a sociedade e obter mudanças estruturais. Tampouco conseguiu. Passou por todos os bancos das escolas públicas até ser professor da elitizada USP, de onde foi expurgado pela ditadura militar.

Ambos amargaram o exílio, mas seguiram na luta, até o final dos seus dias. Furtado, ministro da Cultura do governo Sarney, manteve a defesa da necessidade de um projeto para o Brasil, registrando suas propostas em diversos livros. Florestan fez militância partidária na esquerda e se elegeu deputado constituinte, defendendo como ninguém o direito à escola pública e gratuita, em todos os níveis, para todos os brasileiros. Educação, não só como conhecimento, mas como direito universal e instrumento de libertação das pessoas.

Tive o privilégio de cultivar uma amizade de discípulo com ambos, em seus últimos anos de vida. Apreendi muito. Procuramos compartilhar seus ensinamentos, livros, palestras e conselhos com toda a militância do movimento popular e do MST. Seremos sempre gratos.

Procuramos perenizar esse legado, homenageando-os batizando nossas escolas e nossos assentamentos com seus nomes, além de divulgar suas obras e seus exemplos de vida coerente. Todo militante social e todo brasileiro comprometido com o país deve ter acesso ao conhecimento de suas trajetórias de vida e de suas obras. Estudá-los, apreender com eles. Certamente, se a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) adotasse estes autores em seus cursos, não teríamos um governo tão despreparado e irresponsável, no momento em que já contabilizamos mais de 78 mil brasileiros mortos.

Salve salve Celso Furtado e Florestan Fernandes, patrimônios cívicos, culturais e intelectuais do nosso povo!

*João Pedro Stedile é membro da equipe de coordenação do MST

Publicado originalmente no site Poder 360

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Afonso da Silva Afrânio Catani Alexandre de Lima Castro Tranjan Bernardo Ricupero Eleonora Albano Ronaldo Tadeu de Souza Remy José Fontana Francisco Fernandes Ladeira Bento Prado Jr. Paulo Fernandes Silveira Igor Felippe Santos Julian Rodrigues Sandra Bitencourt Luis Felipe Miguel Carlos Tautz Gilberto Lopes Luciano Nascimento José Luís Fiori Thomas Piketty Francisco Pereira de Farias Atilio A. Boron Michael Roberts Liszt Vieira Renato Dagnino Jorge Branco Alexandre Aragão de Albuquerque Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior Milton Pinheiro Chico Alencar Bruno Fabricio Alcebino da Silva Anselm Jappe Paulo Nogueira Batista Jr Lucas Fiaschetti Estevez Gilberto Maringoni Luiz Bernardo Pericás Mário Maestri André Márcio Neves Soares Manuel Domingos Neto Antonino Infranca Daniel Brazil Henry Burnett João Paulo Ayub Fonseca Roberto Bueno Luís Fernando Vitagliano Kátia Gerab Baggio Ronald Rocha Fernando Nogueira da Costa João Carlos Salles Tarso Genro Daniel Costa José Raimundo Trindade Juarez Guimarães Luiz Roberto Alves Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Caio Bugiato Ricardo Abramovay Ari Marcelo Solon Marcos Aurélio da Silva Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior José Machado Moita Neto Priscila Figueiredo Marcus Ianoni Chico Whitaker Samuel Kilsztajn Denilson Cordeiro Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Fabbrini Tadeu Valadares Ricardo Musse Jean Pierre Chauvin Celso Favaretto Marilia Pacheco Fiorillo Gabriel Cohn Mariarosaria Fabris Marcos Silva Matheus Silveira de Souza Michael Löwy Rafael R. Ioris Lincoln Secco Flávio R. Kothe Paulo Capel Narvai Otaviano Helene Luiz Marques Antonio Martins Luiz Eduardo Soares Leonardo Boff João Lanari Bo Eleutério F. S. Prado Boaventura de Sousa Santos Leonardo Avritzer Anderson Alves Esteves Marcelo Módolo Valerio Arcary Gerson Almeida Heraldo Campos João Feres Júnior Manchetômetro Fernão Pessoa Ramos Vanderlei Tenório Slavoj Žižek Eduardo Borges Berenice Bento Rodrigo de Faria Henri Acselrad Valerio Arcary Leda Maria Paulani Ricardo Antunes Lorenzo Vitral Celso Frederico Luiz Werneck Vianna Carla Teixeira Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Elias Jabbour Vinício Carrilho Martinez João Sette Whitaker Ferreira Ronald León Núñez Benicio Viero Schmidt Antônio Sales Rios Neto José Costa Júnior Leonardo Sacramento Everaldo de Oliveira Andrade José Micaelson Lacerda Morais Bruno Machado Dênis de Moraes Claudio Katz Eugênio Bucci Marilena Chauí João Carlos Loebens Marcelo Guimarães Lima Jean Marc Von Der Weid José Dirceu Andrew Korybko Roberto Noritomi Rubens Pinto Lyra Fábio Konder Comparato Osvaldo Coggiola Ladislau Dowbor Luiz Renato Martins Armando Boito Annateresa Fabris Tales Ab'Sáber Alysson Leandro Mascaro Flávio Aguiar Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen Alexandre de Freitas Barbosa Yuri Martins-Fontes Maria Rita Kehl Paulo Martins Dennis Oliveira Vladimir Safatle José Geraldo Couto André Singer Eugênio Trivinho Érico Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada