Fogo e faísca

Imagem: Gonzalo Mendiola
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por DYLAN RILEY*

Um dos pequenos prazeres dialéticos ainda acessíveis às inteligências não incorporadas é observar, neste momento, o quanto os capitalistas odeiam o capitalismo, com todas as suas leis e contradições invioláveis

Ao longo da década de 2010, Larry Summers insistiu repetidamente que as leis do progresso tecnológico haviam neutralizado o problema do excesso de investimento. Como sua suposta inspiração, ele citava a ideia de Hansen de que as empresas estavam sobrecarregadas com enormes investimentos fixos, incapazes de se desfazer de seus ativos e, portanto, no longo prazo, estariam atoladas no pântano da estagnação.

Agora, seguia o conto de fadas de Larry Summers, os smartphones, os aplicativos, as chamadas pelo Zoom e os escritórios alugados por hora haviam mudado essa equação, de modo que um escritório de advocacia poderia ser administrado a partir do porão de alguém. Nessa inversão perfeita e paradoxal da fórmula original de Hansen, a estagnação secular do período contemporâneo se devia ao fato de que iniciar um empreendimento era tão fácil e exigia tão pouco capital. O capital não estava preso; ele simplesmente havia se tornado desnecessário.

Ah, como alguns anos fazem diferença. Quando a DeepSeek tirou 600 bilhões de dólares da capitalização de mercado da Nvidia, disparou um sinal que os gigantes da Inteligência artificial – todos aqueles data centers e chips adquiridos a grande custo – corriam o risco de perder seu valor. Se ao menos os senhores do Vale do Silício tivessem lido Albert Aftalion, que comparou o ritmo do investimento a pessoas empilhando toras em uma fogueira em um quarto frio até que, de repente, transformam o ambiente em uma sauna sufocante. A única solução? Correr para as saídas – isto é, reduzir seus investimentos e defender o valor do que já possuem.

Mas não, eles nunca haviam encontrado, ou entendido, ou, se entenderam, então esqueceram, a metáfora do francês. E assim, simplesmente recorreram à xenofobia. Os chineses, insistiram eles, não poderiam ser tão “criativos” quanto os californianos. Sua tecnologia era falsa; os testes eram fraudulentos; eles haviam sido favorecidos por seu governo, cuja propaganda ajudavam a disseminar. (Presumivelmente, esperavam que ninguém investigasse muito a fundo sua própria posição comprometida nesse quesito).

Um dos pequenos prazeres dialéticos ainda acessíveis às inteligências não incorporadas é observar, neste momento, o quanto os capitalistas odeiam o capitalismo, com todas as suas leis e contradições invioláveis. E assim, em mais uma demonstração da não linearidade da relevância, voltamos mais uma vez ao Sr. Ulyanov, com sua conversa sobre os estágios mais altos e a transmutação da luta econômica em uma luta diretamente política; aguardamos a faísca, caro camarada, aguardamos a faísca!

*Dylan Riley é professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor, entre outros livros, de Microverses: observations from a shattered present (Verso).

Tradução: Julio Tude d’Avila.

Publicado originalmente no blog Sidecar, da New Left Review.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES