Por LUIZ RENATO MARTINS*
A noção de forma objetiva apresentou-se diretamente ligada ao juízo histórico reflexivo, integrando o conjunto de respostas críticas ao novo ciclo de modernização capitalista no Brasil
1.
Que caminhos levam à arte épica? Como passar da pressão bruta dos fatos históricos para a sua forma estética? Como converter o tempo estético em conhecimento objetivo e crítico do mundo?
A noção de “forma objetiva”, que discutiremos, visava enfrentar tais desafios, redesenhando o nexo entre formas estéticas e sócio-históricas em novos termos. Formulada em 1979 por Roberto Schwarz, surgiu no debate literário e crítico brasileiro contra o modelo de modernização rápida desdobrado do golpe empresarial-militar de 1964.
Nos campi anglo-americanos, prevalecia então o chamado linguistic turn (virada linguística), enquanto na França a voga estruturalista vigorava, seguida de perto pela onda pós-estruturalista. O denominador comum de tais tendências era dado pela segregação da esfera do julgamento histórico, apartada do domínio das formas estéticas.
Em contraste, a noção de forma objetiva apresentou-se diretamente ligada ao juízo histórico reflexivo, integrando o conjunto de respostas críticas ao novo ciclo de modernização capitalista no Brasil, derivado do golpe de 1964.[i] Desse modo, o debate estético implicado na noção de forma objetiva e, anteriormente, embutido no seu primeiro e prototípico constructo – a ideia de forma materialista – traz afinidades histórico-cronológicas com a versão ocidental do maoismo tardio, do final dos anos 1960, nascida da crise do ciclo de expansão capitalista pós-1945, os assim chamados “Trinta [Anos] Gloriosos”.[ii]
Mas, além de uma inquietação concreta e compartilhada ante o modelo socioeconômico, havia uma diferença crucial: os esquemas discursivos do maoismo ocidental baseavam-se na importação das fórmulas da revolução cultural chinesa, e tanto aquele quanto esta última tinham muito pouco a ver com a vida mental nas economias centrais. Assim, carente de fluência real e comunicabilidade, esse movimento estava fadado a morrer enquanto razão crítica, tal como, noutro plano, extinguiu-se o foquismo cubano quer na América Latina, quer na Alemanha ou na Itália. Logo, a despeito de alguma estridência e de certos lampejos, tais movimentos se dissiparam rapidamente.[iii]
Em contrapartida, as noções de forma materialista e de forma objetiva – a primeira, formulada por Antonio Candido (1918-2017), que foi professor de Roberto Schwarz – baseavam-se, ambas, no nexo entre forma estética e relações histórico-sociais. Firmemente enraizadas no tecido crítico e na experiência coletiva da vida cotidiana latino-americana, de tragédia permanente, elas floresceram e multiplicaram-se, de fato, no vernáculo artístico, como veremos.
2.
Deixarei de lado aqui as fontes históricas remotas desse debate. Isso nos levaria aos romances tardios de Machado de Assis (1839-1908), tal como foram lidos por Roberto Schwarz,[iv] e também às notas de Trotsky, em 1912 e 1922, sobre a dialética cultural entre nações “atrasadas” e “avançadas”.[v] Em troca, priorizarei o momento genético da forma objetiva, incluindo, como dito, a sua fonte: a concepção de forma materialista.
3.
Em 1970, Antonio Candido estabeleceu a forma materialista enquanto “redução estrutural e uma condensação formal dos ritmos sociais”.[vi] Segundo Roberto Schwarz, então professor-assistente e membro da equipe de pesquisa de Candido, “tratava-se de explicar como configurações externas, pertencentes à vida extra-artística, podiam passar para dentro da fantasia, onde se tornavam forças de estruturação e mostravam algo de si que não estivera à vista. Tratava-se também de explicar como a crítica podia refazer esse percurso por sua vez e chegar a um âmbito através do outro, com ganho de conhecimento em relação a ambos”.[vii]
Mas por que e como tal objetivo surgiu? Em meados dos anos 1960 e 1970 ocorreram convulsões desiguais, mas combinadas, inerentes ao fim do ciclo expansivo pós-1945.[viii] É crucial ter em mente tais raízes, uma vez que a longa crise capitalista em disputa ainda não concluiu seus ajustes. De todo modo, em muitos países está se tornando rapidamente evidente que a democracia é desnecessária à nova ordem do capital. Em descompasso com o individualismo aberrante e a pulverização das relações sociais, na nova era do narcisismo de massa e de novos modos de ganho e dominação, a democracia aparece cada vez mais como um protocolo vetusto ante os imperativos capitalistas crescentemente focados em ganhos por desapossamento.
No entanto, o poder crítico corrosivo da forma objetiva permanece agudo e em progresso. Constitui uma espécie de “fio de Ariadne”, nutrido pela atividade reflexiva e pela força crítica objetiva da verdade das relações sociais, quando confrontado com o estado atual do mundo, não simples, mas labiríntico; porque o mundo atual aparece – ou, melhor, oculta-se – sob os efeitos de pulverização e transfiguração operados pelo “capital fictício”.
4.
Em 1970, como parte de um seminário que revisava teorias críticas modernas,[ix] Antonio Candido desenvolveu a sua reflexão sobre a dialética histórica entre forma literária e subdesenvolvimento semicolonial, e, mais tarde, sobre a concepção de forma materialista.[x] O seminário de Antonio Candido não surgiu do nada. Anos antes, na torrente crítica que fluía em resposta ao golpe de 1964, obras de música, arquitetura, artes visuais, cinema, teatro, ciências sociais, jornalismo e assim por diante entremeavam-se sistematicamente aos protestos nas ruas.[xi]
Em suma, um vivo contraste emergiu no debate estético internacional quando o processo de reestruturação capitalista decolou (em ritmos desiguais em cada país após 1968).[xii] Exceto pelo jovem e vibrante cinema europeu,[xiii] a maior parte dos discursos artísticos visuais gerados nas economias hegemônicas – embora analiticamente avançados – debilitou-se pelo autoconfinamento no domínio das formas puras (isentas de contatos com formas não estéticas, grosso modo, histórico-sociais).[xiv] Por outro lado, em certos países periféricos, respostas estéticas críticas e combativas foram forjadas.[xv] Tal arte incluía os avanços analíticos dos países “adiantados”, mas os subsumia numa reflexão atualizada sobre a reestruturação capitalista em curso. Resta ver como.
No Brasil, o processo de reconstrução do realismo, contra a reestruturação capitalista após 1964, confrontou a voga puramente analítica nos países centrais.[xvi] Assim, o trabalho do então jovem artista Antonio Dias (1944-2018) realizou operações de apropriação e deslocamento.[xvii] De fato, em 1965, na mostra de abertura do movimento da Nova Figuração, as obras de Dias se apossaram de clichês da Pop Art, voltando-os contra o imperialismo e a ditadura empresarial-militar brasileira. A afasia da abstração geométrica antes do golpe foi assim superada.
Antonio Dias elaborou as noções de “arte negativa” e de “pintura como crítica de arte” em uma nota de 1967.[xviii] Ambas evocavam as operações de apropriação e deslocamento de formas apreendidas seja da arte minimalista, seja da arte conceitual.[xix] Em agosto de 1969, uma nova série de trabalhos de Hélio Oiticica (1937-1980) e Antonio Dias, Project-book,[xx] alegava a porosidade permanente da obra de arte ante a realidade circundante, incluindo também estruturas históricas – tal como leis, mal tangíveis no espaço artístico. Estas últimas vinham referidas alusivamente mediante subtítulos irônicos.
Além das peculiaridades autorais, tais formulações responderam amplamente ao movimento de debate coletivo nas artes. Mais cedo, em 1967, o ensaio-programa de Oiticica “Esquema Geral da Nova Objetividade” manifestou a vontade geral de objetividade crítica e totalização reflexiva.[xxi] Articulou assim, nas artes visuais, o horizonte estratégico da forma materialista de “condensação estética dos ritmos sociais”.[xxii]
Essa objetividade transmissível entre estruturas históricas e formas estéticas constitui o núcleo da forma materialista e da forma objetiva. Claro, a objetividade dos ritmos sociais altera-se incessantemente ao longo do tempo, mas nem por isso acha-se menos estruturada objetivamente, pelas relações de classe, por exemplo – que, como os ritmos sociais, também se encontram sujeitas à condensação estética.
5.
Em 1979, Roberto Schwarz designou a forma objetiva como articulação dinâmica que liga os domínios estético e histórico-social;[xxiii] em 1991, ele também a definiu como uma forma dotada de “substância prático-histórica”; [xxiv] e, em 1997, como “o nervo social da forma de arte”. [xxv] Porém, a conceituação e a descrição não são suficientes para apresentar a forma objetiva. De fato, apenas enquanto forma artística concreta é que a forma objetiva fornece inteligibilidade à matéria histórico-social objetiva, como um modo de condensação crítica desta, que revela o seu próprio funcionamento como um vaivém entre os dois domínios, mantidos sob escrutínio simultaneamente.
Para isso, o exercício da intuição estética e crítica é essencial à síntese com a matéria sócio-histórica – de outro modo inapreensível. Em suma, há vínculos entre a parte e o todo, quanto à subjetividade, à objetividade e às dinâmicas históricas, que só na arte vêm à tona.
Embora Roberto Schwarz e Antonio Candido tenham concebido os seus constructos críticos pensando na literatura do século XIX, escolherei aqui exemplos do ambiente histórico de ambos para exemplificar a sua formulação crítica. As operações negativas da Nova Figuração, por Antonio Dias, que expropriaram a Pop Art em 1965, objetivaram visualmente o clichê do desejo das classes alta e média, ou seja, a voragem do consumo.[xxvi]
Assim, a operação de apropriação e deslocamento, que infletiu com ironia as fórmulas da Pop Art, condensou dialeticamente o projeto político de classe que impulsionou o golpe, em dois sentidos: primeiro, a torção irônica apontou para o consumo como fetiche; segundo, enquanto ridicularizava duramente tal objetivo, ela objetivou os protestos contra o novo regime, que na altura haviam se convertido num conflito social e político aberto. Nesses termos, entre 1965 e 1967, as artes prepararam o acervo genético para a forma materialista e a forma objetiva.
Analogamente, em 1968, mirando desta vez a arte minimalista mediante a obra Faça Você Mesmo: Território Liberdade (Do it Yourself: Freedom Territory,título original em inglês, 1968, fita adesiva e tipografia sobre pavimento, 400 x 600 cm), Antonio Dias traçou e marcou o terreno com fita adesiva.[xxvii] Completou o trabalho com pedras evocando peças de pavimento da rua, que traziam uma plaqueta, ao modo da identificação militar pendurada ao pescoço, com a indicação “To the Police”. Assim, ao explicitar o processo de resistência referindo-o aos confrontos nas ruas da cidade, e com as legendas nas pedras instigando à luta, Antonio Dias objetivou visualmente os protestos sociais e políticos, explicitando o cisma ideológico e visceral entre as classes no Brasil.
Pouco depois, ele desenvolveu uma série no exílio, que começou por Anywhere Is My Land (1968). Além de aludir à expatriação, à militarização e ao encarceramento em massa, esses trabalhos trouxeram estruturas poéticas em conflito com os seus motivos. Desse modo, ao invés de criar, segundo é usual na arte, uma forma única e adequada para o motivo, os trabalhos recorriam a formas hostis ou inóspitas, expropriadas da arte minimalista ou conceitual, retrabalhando-as e adulterando-as a contrapelo.
Assim, com tal antítese objetivada como contradição, os conflitos inerentes à realidade alcançaram, além do objeto aludido, a própria forma e a estrutura dialética da prática artística. Constituíram-se nesses termos enquanto a forma objetiva da negatividade, ou seja, do poder de negar e lutar convertido num cogito e em modo autônomo ou para si.[xxviii]
6.
Essa estratégia plástica, que toma relações concretas de dependência e as reverte em práticas criativas, sistêmico-cognitivas e críticas, alcançou disseminação notável. Na arquitetura de Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), a forma objetiva, gerada como perspectiva e experiência do pedestre, instilou tal elemento, de modo constante e molecular, em projetos decididamente urbanos. Tomo a arquitetura do Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE) como exemplo visual, mas a primazia do pedestre e a lógica da cidade – como uma pólis igualitária e como ambiente para “encontros imprevisíveis” – estendem-se ao todo da obra de Mendes da Rocha.[xxix] Esta última foi desenvolvida, na verdade, contra o curso da arquitetura moderna brasileira, cujo éthos monumental e contemplativo derivou, não por acaso, das casas de campo rurais, como em Brasília.[xxx]
Para Amilcar de Castro (1920-2002) – um expoente da arte geométrica e neoconcreta brasileira e participante já da II Bienal de S. Paulo (1953) –, a síntese histórica com o entorno enquanto forma objetiva ocorreu em 1978, numa obra de grande escala para a Praça da Sé (em São Paulo), o local de manifestações políticas contra a ditadura, na época. Assim, condensou novos ritmos sociais, abrangendo a produção coletiva da temporalidade e da espacialidade pelas massas, que haviam tomado em protesto as ruas e os pátios das fábricas.[xxxi] Da mesma forma, ao utilizar em seus desenhos de grandes formatos os vassourões e trinchas usados pelos varredores de rua e pintores de parede, Amilcar de Castro sintetizou formas gestuais objetivas do trabalho vivo anônimo.
Em 2019, a instalação Roda Gigante, de Carmela Gross,[xxxii] tornou visível, em escala épica, o dramático e pungente momento nacional, sob o mando oficial da ultradireita. Roda Gigante trouxe formas objetivas, de clareza trágica, por meio de um constructo arquitetônico negativo, instalado no interior de um palacete neoclássico, originalmente concebido como sede de banco.[xxxiii] Para isso, 250 peças (coletadas de ferros-velhos) foram distribuídas no solo do salão principal do palácio, emblemático da arquitetura eclética herdada do Império (1822-1889) pela oligarquia da República Velha (1889-1930). Distribuídos pelo chão, ferramentas e utensílios antigos, peças desgastadas de máquinas, todas tecnologicamente ultrapassadas, evocavam empreendimentos, por uma razão ou outra, obsoletos.[xxxiv]
Assim, à arquitetura suntuária do prédio (presidida por uma colunata neoclássica, coroada por vitrais franceses) contrapunham-se objetos facilmente encontráveis em áreas urbanas degradadas. Uma teia intrincada de cordas atuava como um sistema unificador, ou elo dialético entre esses dois conjuntos antitéticos, conferindo ao agrupamento díspar o teor instigante de uma totalidade incongruente. Os feixes de cordas (por si diversos na cor, na textura e na espessura) talhavam o espaço de diversos modos, amarrando em zigue-zague os objetos aos capitéis das colunas, feito recurso aparentemente improvisado e contrastante com a ostentatória retórica cênica de agência matriz.
Entretanto, não era preciso ir longe para se encontrar a origem do cordame (ao contrário dos capitéis neoclássicos da colunata…). Com efeito, bastava observar o entorno do centro cultural para se deparar um ajuntamento de tendas, carrinhos e barracas de comércio de rua, apinhando a calçada na praça (da Alfândega, de Porto Alegre) em frente ao prédio. Cordas são materiais emblemáticos do comércio de rua, que desempenham duas funções básicas: durante o dia, fixam as lonas transparentes sobre suas vitrines mambembes; à noite, mantêm tudo embrulhado.
Migrantes que fugiram da fome e da miséria – primeiro, em sua maioria, oriundos de áreas rurais do Brasil, mas, agora, também dos países vizinhos – são aqueles que fazem tal comércio nas cidades. Resta para todos subsistir precariamente, rondados e ameaçados, noite e dia, pela polícia e demais predadores sociais. Segundo Carmela Gross, Roda Gigante nasceu de uma caminhada naquela praça. Trazida para o interior do palacete, a prática construtiva do modelo de resistência e sobrevivência de retirantes e “severinos”, no dizer da poesia de João Cabral de Melo Neto,[xxxv] traduziu-se na trama díspar do cordame.[xxxvi]
Lá, a mesma matriz genética, engendrada na miséria das ruas, germinou e expandiu-se, reflorestando o espaço do banco; ao irromper no salão nobre, na contramão dos privilégios de classe e propriedade, evidenciou o teor amargo, e desigual, da formação social brasileira. Erupção súbita, mas, de fato, concebida como forma objetiva, reconstruída pela montagem, como estratégia de choque, que contrastou criticamente – à colunata farsesca – a arquitetura nua e improvisada, originalmente inventada para a luta diária pela ocupação e pela vida.
7.
Para concluir: ao questionar e desafiar o observador (segundo esquema próprio à tradição crítica e reflexiva do romantismo alemão), a forma objetiva convida o público a consumar o seu sentido mediante um vaivém dialético entre os domínios heterogêneos da forma estética e das formas impuras, enraizadas na totalidade histórico-social. Mas isso só ocorrerá se o observador – para culminar o jogo crítico-reflexivo – se dispuser a combinar, de modo simultâneo, à sensação estética a consideração negativa da totalidade histórico-social, instância fundamental da forma objetiva. [xxxvii]
*Luiz Renato Martins é professor-orientador do PPG em Artes Visuais (ECA-USP); autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS).
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Vv. Aa. Tucumán Arde (Tucuman is Burning). 1968, instalação multimídia, Rosario, Confederación General del Trabajo de los Argentinos.
Notas
[i] Ver Schwarz,1992, pp.61-92. Devido à ditadura, o ensaio foi publicado inicialmente só em Les Temps Modernes (Schwarz, 1970, pp. 37-73); republicado como “Cultura e Política: 1964-1969: Alguns Esquemas” (Schwarz, 1992, pp. 61-92).
[ii] Ver FourastiÉ, 1979.
[iii] O fenômeno foi agudamente sintetizado por Godard (1930-2022), em La Chinoise (1967): jargão e trejeitos mao aparecem como estilemas da Pop Art,e simultaneamente como jingles e spots
publicitários, vale dizer, como fórmulas meramente reiterativas que giram em falso, ao sabor da moda. Ver Martins, 2021b.
[iv] Ver Schwarz, 2000; Schwarz,1989a, pp. 115-125; Schwarz,1990; Schwarz, 1997a, pp. 7-41; Schwarz, 2012b, pp. 9-43; e SchwarZ, 2010a, pp. 247-79.
[v] Na observação de 1912 (acerca da literatura búlgara), Trótski apontou a incapacidade de “todos os países atrasados (…) desenvolverem sua própria continuidade (cultural) interna”, sendo, pois, “obrigados a assimilar os produtos culturais prontos que a civilização europeia desenvolveu no curso da sua história” (Trotsky, 1980, p. 49). Na segunda nota, de 1922, Trótski observou que, em alguns casos, “países atrasados com um certo grau de desenvolvimento cultural”, ao se apropriarem das realizações dos “países avançados”, “refletem tais realizações com maior claridade e força” (Trotsky, 2015, p. 285; Trotsky, 2005, pp. 135-68).
[vi] Cf. Schwarz, 1989c, p. 132. Ver também, para o desenvolvimento da noção de forma materialista, Candido, 2004b, pp. 17-46; Candido, 2004a, pp. 105-29. Sobre os extratos publicados antes, de “De Cortiço a Cortiço” – cuja publicação integral ocorreu apenas em 1991, mas cuja redação data originalmente de 1973 [logo, em continuidade direta de preocupações com o ensaio precedente, de 1970, “Literatura e subdesenvolvimento” (Candido, 1987b)] – ver “Nota sobre os Ensaios (Item 4)”, in Candido, 2004c, p. 282.
[vii] Cf. Schwarz, 2012c, p. 48.
[viii] Em dez anos (1974-1984), uma série de governos e antigas lideranças social-democratas (enraizadas no antinazismo e formadas politicamente na construção do welfare state contra o pauperismo) capitularam na Europa; assim, desmoronaram sucessivamente: em Bonn (1974), Willy Brandt (1913-1992); em Londres (1976), Harold Wilson (1916-1995); em Paris (1984), Pierre Mauroy (1928-2013). Caíram todos via manobras intramuros do próprio partido ou de círculos próximos, para dar lugar a políticas de primado do mercado, baseadas em austeridade fiscal e desemprego estrutural.
[ix] “Os seminários discutiam, entre outros, textos do formalismo russo, dos estruturalistas, de Adorno, o Literatura e Revolução, de Trotsky”, recorda Schwarz. Para detalhes, ver Schwarz, 2019, pp. 410.
[x] À sua vez, tais reflexões sobre a concepção de forma remontam à interrelação entre “estrutura literária” e “função histórica ou social da obra”, trabalhada desde 1961 por Candido. Ver Candido, 2006, pp. 177-99. O tema da “função histórica” retornará como uma constante em vários outros escritos de Candido. Ver, por exemplo, o diálogo com Beatriz Sarlo, publicado originalmente em Punto de Vista (Buenos Aires, n. 8, mar.-jun. 1980), e em português em Candido, 2002, pp. 93-107; ver também idem, tópico “II”, pp. 98-107, originalmente publicado como “Literatura e história na América Latina (do ângulo brasileiro)”, ver Candido, 1987a.
[xi] Formou-se então um inédito sistema crítico brasileiro. Para detalhes e discussão, ver Martins, 2019e, pp. 73-113. Os protestos foram interditados após 13.12.1968, pelo AI-5 (Ato Institucional n. 5), seguido de prisões, tortura, censura e expurgos.
[xii] Só mais tarde essa reestruturação, na era de Thatcher (1978) e Reagan (1980), emergiu em termos próprios às economias hegemônicas. Assim, a reestruturação capitalista – mediante o desemprego estrutural, a violência institucionalizada e a assimilação de gangues às estruturas dos Estados – ocorreu bem antes na periferia e, desse ângulo, antecipou a atual tendência estrutural ao divórcio entre o capitalismo e a democracia.
[xiii] Em grande medida, A Clockwork Orange [1971], de Stanley Kubrick (1928-1999), anteviu o fim do welfare state e aspectos do novo ciclo capitalista, inclusive quanto à fusão do Estado com organizações criminais. Para uma discussão a esse respeito, ver Martins, 2021c. De fato, o cinema europeu – possivelmente pelo seu teor de arte necessariamente industrial e coletiva – não padeceu, no período, da mesma afasia que as artes de arraigada tradição artesanal e usualmente nutridas do isolamento individual – logo, mais vulneráveis ao dogma da autonomia da linguagem ante o processo histórico-social e, consequentemente, às especulações da linguística.
[xiv] Pasolini (1922-1975) foi um dos poucos a tratar, em filmes e artigos, do que estava em curso (tanto no comportamento juvenil quanto no plano macro), ao indicar uma mudança estrutural no capitalismo (que implicava a ciência), associada a uma revolução global de direita baseada na unificação mundial dos mercados e na assimilação do consumo (inclusive de si e do outro) como valor – tendo o genocídio por rotina. Pasolini tratava por “genocídio” a “assimilação ao modo e à qualidade de vida da burguesia” de “amplos estratos” (subproletários e populações de origem colonial) “que tinham permanecido […] fora da história” (Pasolini, 1975a, pp. 281-2). Ver igualmente Pasolini, 1975b. Ver também, a propósito, Martins, 2021f e Martins, 2021g.
[xv] Quanto ao estado crítico das artes e a conjunção de demandas histórico-sociais específicas do momento, a resposta pode ser encontrada no ensaio de Schwarz, de 1970, “Cultura e Política: 1964-1969: Alguns Esquemas”. Ver Schwarz, 1992, pp. 61-92. Devido à ditadura, esse ensaio foi inicialmente publicado em Les Temps Modernes, em julho de 1970. Ver Schwarz, 1970, pp. 37-73. Em paralelo, na Argentina, ver de Solanas e Getino La Hora de los Hornos (1968), um filme produzido clandestinamente e premiado no IV Festival Internacional do Novo Cinema (Nuovo Cinema), Pesaro, 1968. Ver Solanas, Fernando E. e Octavio Getino, 1968. Ver também Longoni e Mestman, 2010, sobre a série de intervenções Tucumán Arde (1968), instalação multimídia, em Rosario, na Confederación General del Trabajo (CGT) de los Argentinos, produzida por um grupo de cerca de 20 artistas e sociólogos associados a um combativo grupo sindical dissidente. Ver também Katzenstein, 2004, pp. 319-26, e Longoni, 2014. Agradeço a Gustavo Motta as referências acima, acerca do teor sintético e totalizador da arte argentina do período.
[xvi] Sobre a virada combativa das artes e o movimento de construção de um novo realismo em resposta ao golpe empresarial-militar de 1964, ver Martins, 2019d, pp. 73-113. Sobre a prevalência da abstração geométrica no período anterior, ecoando favoravelmente o ciclo desenvolvimentista na América do Sul, ver (sobre o caso brasileiro) Martins, 2019a, pp. 44-72.
[xvii] Ver Martins, 2019e, pp. 75-84.
[xviii] Ver Dias, 1967-69. Para a reprodução em fac-símile das páginas do caderno, com as anotações sobre “arte negativa” e “pintura como crítica de arte”, ver Miyada, 2019, pp. 24-7.
[xix] Sobre as operações ofensivas de Dias, uma vez instalado na Europa, ver Martins, 2019b, pp. 174-201.
[xx] Em inglês no original. O programa compreendia 10 proposições de trabalhos segundo estruturas abertas especificadas. Para detalhes do projeto, ver Dias, 2015, pp. 94-7; ver também Motta, 2011, pp. 169-81.
[xxi] Ver Oiticica, 1967. Para a vontade geral de objetividade crítica, ver Oiticica, 1996c, p. 116. Para outras reflexões de Oiticica, empenhadas também na reconstrução do realismo nas artes brasileiras, ver Oiticica, 1996b, pp. 103-04; ver também Oiticica, 1996a, pp. 127-30.
[xxii] Para o estabelecimento por Candido, em “Dialética da malandragem”, das bases da forma estética materialista, segundo Schwarz, como “redução estrutural e condensação formal de ritmos sociais”, ver Schwarz,1989b, pp. 129-55. Ver também Candido, 2004b, pp. 17-46, e Candido, 2004a, pp. 105-29.
[xxiii] Ver Schwarz, 1989b, pp. 129-55.
[xxiv] Cf. Schwarz, 1999, p. 31. Para os dados das duas publicações iniciais, em 1991 e 1992, que antecedem a publicação em livro em 1999, ver idem, p. 247.
[xxv] Cf. Schwarz, 1997b, p. 62.
[xxvi] Ver Martins, 2019d, pp. 74-84. Ver também Martins, 2007, pp. 62-71.
[xxvii] A estrutura quadriculada, traçada com fita adesiva, foi montada pela primeira vez em 1969, no Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio, no quadro da mostra Contemporary Art. Dialogue Between the East and the West. Nesta e em montagens subsequentes, a obra ganhou como complemento um outro trabalho: To the Police, a seguir descrito.
[xxviii] Ver Martins, 2020.
[xxix] Sobre a forma objetiva na arquitetura de Mendes da Rocha, ver Martins, 2021d, e Martins, 2021e. Está em curso o processo editorial para a publicação desse texto em livro: Paulo Mendes da Rocha e Amilcar de Castro: A Força do Negativo (denominação provisória, org. LRM, São Paulo, MuBE/ WMF Martins Fontes, 2025).
[xxx] Ver Martins, 2019c, pp. 27-43.
[xxxi] Para análise de tais operações cujo detalhamento não cabe aqui, ver Martins, 2021d, e Martins, 2021e, referido à nota 29, acima.
[xxxii] Gross, 2019.
[xxxiii] Iniciado em 1927 e concluído em 1931, o edifício serviu de sede, sucessivamente, para os bancos da Província, Nacional do Comércio, Sul Brasileiro e Meridional, antes de adquirir em 2001 a designação atual como Farol Santander.
[xxxiv] Ver Gross e Martins, 2021.
[xxxv] “CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA – Desde que estou retirando/ só a morte vejo ativa,/ só a morte deparei/ e às vezes até festiva; só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/ foi de vida severina/ (aquela vida que é menos/ vivida que defendida,/ e é ainda mais severina/ para o homem que retira)” [itálicos meus, caixa alta e parêntesis, do original]. Cf. Melo Neto, 1999, p. 178.
[xxxvi] Ver Gross e Martins, 2021, pp. 53-62.
[xxxvii] Texto publicado no “Dossiê: artes visuais, imaginários de esquerda e capitalismo na América Latina, in revista Art & Sensorium, vol. 11 (2024), disponível no link: https://periodicos.unespar.edu.br/sensorium/issue/view/421, segundo trabalho apresentado no painel “Marxism and form in the praxis of art criticism [Marxismo e forma na praxis da crítica de arte]”, no encontro HISTORICAL MATERIALISM 2022 – 19th Annual Conference, Facing the abyss: An epoch of permanent war and counterrevolution, London, School of Oriental and African Studies – SOAS, University of London, 10-13 November 2022 (agradeço a Bruna Della Torre, Gustavo Motta, Nicholas Brown e Roberto Schwarz pelos comentários e sugestões). Agradeço também a revisão de Regina Araki da presente versão em português. Este trabalho constitui a versão abreviada do ensaio, mais abrangente e detalhado, “Do it yourself: objective form, territory of a critical struggle” (trad. para o inglês de Nicholas Brown), a ser publicado, no início de 2025, na coletânea The Routledge Companion to Marxims in Art History, ed. Tijen Tunali and Brian Winkenweder (Routledge, 2025).
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