Frankenstein

Frame de “Frankenstein”, filme dirigido por Guillermo del Toro/ Divulgação
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Por JOÃO LANARI BO*


Comentário sobre o filme dirigido por Guillermo del Toro, em exibição nos cinemas

Pedi-te eu, Senhor, que ao barro
Por homem me tomasses, roguei-te eu
Das trevas promoção
(Milton, Paraíso Perdido, tradução Daniel Jonas)

É com essa citação que a jovem escocesa de 19 anos, Mary Shelley, abre a narrativa de seu livro Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, publicado em 1818 por uma pequena editora em Londres. Concebido em tardes chuvosas no lago Genebra, na Suíça – ela e os poetas Shelley (marido) e Byron resolveram divertir-se, por sugestão de Byron, inventando histórias de fantasmas – a invenção de Mary veio a ser um dos mais potentes mitos modernos de que se tem notícia, atualizado repetidamente, sobretudo no cinema e na televisão, a mais recente em “Frankenstein”, finalizado em 2025 por Guillermo del Toro.

Não é pouca coisa, sublinhe-se. Na antiguidade os mitos, como se sabe, eram úteis para explicar origens e fenômenos naturais, como o surgimento do tempo no universo, narrados por deuses e heróis. Os mitos modernos continuam expressando desejos e medos – mas, no lugar das imponderáveis divindades, entrou a dura e concreta ciência, essa grande novidade que irrompeu no século 18 e tomou o seguinte, o 19, de assalto. Eletricidade, por exemplo, era um carro-chefe desse movimento – e não é por acaso que está no centro da história original (e no filme de Guillermo del Toro). Uma das melhores sequências, não só pela interpretação dos atores, mas também pela construção cenográfica, é quando Dr. Victor Frankenstein (Oscar Isaac, impecável) tem a ideia luminosa e acerta a pontaria na conexão elétrica que une, enfim, partes dos cadáveres colhidos das guerras napoleônicas, criando…uma criatura, viva e falante.

Este é o nervo central de “Frankenstein”, uma criatura criada por um sopro humano, e não divino. Nessa tacada caíram por terra alguns milênios de metafísica, em particular a que ronda o Ocidente, a judaico-cristã. Uma criatura que inspira terror pela dimensão sobre-natural, ou extra-natural, mas que também experimenta paixões humanas e faz indagações morais. De onde a jovem escocesa tirou essa ideia que colou no imaginário popular, agora brilhantemente reproduzida, mais uma vez, no cinema? Logo no segundo capítulo do livro, Victor revela que ficou assombrado com eletricidade e galvanismo – substantivo derivado de Luigi Galvani, um pioneiro na associação entre eletricidade e fenômenos biológicos, a centelha da vida que os alquimistas perseguiam. Isso foi em fins do século 18, ao mesmo tempo em que a Revolução Francesa massificava o emprego da guilhotina para execuções públicas.

Pouco tempo depois, Giovanni Aldini, sobrinho de Galvani, conduziu experimentos elétricos sensacionais por toda a Europa, em corpos de ovelhas, cães, bois e até de condenados recém executados. Com os olhos se abrindo e os rostos fazendo caretas, cabeças decepadas pareciam ser trazidas à vida novamente por choques. Nesse frenesi dos poderes criadores da ciência, a espetacularização tomou conta do experimento – e foi captada por Mary Shelley. “Frankenstein”, o filme, traz o mito moderno para o centro do espetáculo, transfigurando a jornada épica do (anti) herói em uma jornada romântica. Jacob Elordi, o ator que faz a “criatura”, efetivamente atua e representa: a cunhada de Victor, Elizabeth (Mia Goth, igualmente excelente), apaixona-se pela “criatura”, sem duvidar um segundo de sua consistência ontológica. Ciência na gênese do amor.

Todos esses sobressaltos encaixam-se no roteiro, de autoria do diretor (no IMDb, a autoria é dividida com Mary Shelley). Outro aspecto que concorre para a recepção desse Frankenstein contemporâneo foi a exigência de Guillermo quanto aos cenários: Quero cenários de verdade, não quero digital, não quero IA, não quero simulação. E completou: Quero artesanato à moda antiga: pessoas pintando, construindo, martelando, rebocando. É como se as circunstâncias que forjam a atualização do mito – as paisagens, o figurino, os castelos – tivessem uma aura de autenticidade que valida a narrativa.

Seria Dr. Victor Frankenstein o “novo Prometeu”? Era o que imaginava a jovem escritora, imersa numa inédita era de transformações impulsionadas pela ciência. À época do lançamento, o livro foi visto também como uma ilustração da ideia de Rousseau de que as pessoas nascem inerentemente boas, apenas para se tornarem más por conta da corrupção social.

A epígrafe de John Milton citada acima, por outro lado, sugere mais rastros de inspiração: “Paraíso Perdido”, de acordo com a IA, é um caudaloso poema que que narra a rebelião de Satã contra Deus; a Criação do Mundo; e a Queda do Homem pela desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden.

Mary Shelley, sem dúvida, era um fenômeno.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

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