Funções do Estado capitalista

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Por MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*

Não devemos esquecer que o discurso historicamente reacionário de uma fatia da população brasileira está mais forte do que gostaríamos e este é um fator a ser considerado

A discussão sobre as funções do Estado ocupa grande espaço dos debates sociais e políticos no Brasil, concentrando-se em duas posições principais. De um lado, a retórica em prol do Estado mínimo, não intervencionista, típica do pensamento neoliberal. Do outro, a defesa de um Estado de bem estar social, que intervenha na economia e implemente políticas públicas, com o objetivo de amenizar as desigualdades sociais. Este debate, embora seja essencial às lutas atuais, não toca em funções centrais do Estado no capitalismo: a reprodução da ideologia e a criação de um consenso social.

Entre as diferentes teorias sobre o Estado no pensamento marxista, há aquelas que destacam o seu papel repressor e ideológico, desempenhados pelos aparelhos estatais[i]. O Estado teria a função principal de exercer a violência sobre os indivíduos e, além disso, a partir de um verniz ideológico, garantir legitimidade a essa violência, criando um consenso entre os sujeitos.

Desse modo, o Estado não exerce uma violência nua e crua, mas lança mão do seu papel ideológico para legitimar a força física e produzir um consenso entre as classes sociais dominadas em relação à necessidade do domínio político estatal.[ii] Neste ponto, devemos lembrar que a ideologia não se limita ao campo das ideias, mas possui lastro material direto nas condutas individuais, conformando o conjunto das práticas sociais.

Olhando para o concreto da vida social, podemos afirmar que o monopólio da violência não basta para que o Estado possa criminalizar  jovens pobres e negros, é necessário, também, que a subjetividade das pessoas internalize um consentimento – consciente ou inconsciente – sobre a necessidade dessa violência.

Mas o que querem dizer alguns autores marxistas quando falam sobre os aparelhos de Estado? Onde se encontram tais aparelhos? Os aparelhos ideológicos não se limitam aos que possuem caráter eminentemente público, mas também a outros campos, ainda que tenham caráter relativamente privado. Desse modo, podemos incluir como aparelhos ideológicos do Estado a igreja, as escolas, os aparelhos mediáticos, culturais, etc[iii]. Os aparelhos repressivos, por sua vez, possuem como função principal o exercício da violência legítima, tais como o exército, a polícia, os tribunais, promotorias, etc.

A atuação da polícia militar nas periferias – cujo mandado de busca e apreensão é o “pé na porta” -, o genocídio da população negra e pobre no país e o encarceramento em massa facilitado por uma política de drogas que diferencia usuário e traficante segundo o CEP e a cor da pele parece evidenciar a função repressiva desempenhada pelo Estado. Como vemos, a violência estatal não é apenas uma função restrita à teoria, mas antes, uma materialidade que atravessa a vida de milhões de brasileiros. No entanto, este problema parece ter menos relação com a maldade subjetiva de um policial e íntima relação com uma política de Estado estruturante, que induz a reprodução de tais práticas pelos agentes de segurança.

O próprio Direito garante uma contribuição essencial para a reprodução do capitalismo e a prática da violência estatal. Os autos de resistência, por exemplo, servem de instrumento jurídico que institucionaliza e possibilita o genocídio praticado pelas polícias militares. A política de drogas, que não diferencia usuários e traficantes com critérios objetivos, permite que os jovens brancos de classe média frequentemente sejam classificados como usuários e os jovens negros da periferia, com frequência, sejam considerados traficantes. Em outras palavras, para que a paz reine nos bairros de elite, é necessário que a guerra esteja presente nas favelas.

Essa violência se apoia na função ideológica para garantir a sua legitimidade. Não é à toa que raramente vemos a discussão desse genocídio brasileiro transmitido pelos canais de comunicação de massa ou pelos discursos dos líderes religiosos. Quando tais fatos aparecem nos meios de comunicação, são expostos de forma subjetiva e isolada, e nunca como uma política estrutural. Para firmar a ideia, vou correr o risco de ser repetitivo: não basta que o Estado detenha o monopólio da força. É necessário, também, a criação de um consenso entre as classes sociais sobre a legitimidade dessa violência.

Vale lembrar que o Estado, ao colocar os indivíduos como sujeitos de direito, titulares de uma igualdade formal, cria um estranhamento entre as diferentes posições econômicas. Em suma, os indivíduos se enxergam como cidadãos, e não como membros de diferentes classes sociais.

Segundo Poulantzas, não há uma linha divisória tão clara entre os aparelhos ideológicos e repressores, pois tais funções são intercambiáveis, a depender do contexto material que estão interagindo.

Um exemplo disso é o papel do exército nas ditaduras militares, que não desempenha apenas a repressão, mas também a função ideológico-organizadora, como partido político da classe dominante. A ditadura brasileira ilustra bem este ponto. De modo similar, é evidente o papel ideológico exercido por aparelhos inicialmente repressores, como a polícia e os tribunais. A ascensão do Lawfare no Brasil escancara essa dupla função dos juízes, tanto repressora como ideológica. Se as palavras possuem algum poder simbólico, lembremos que parte das decisões judiciais não são proferidas por qualquer tribunal, mas sim, pelo tribunal de “justiça”.

Os passos de Bolsonaro, trazendo para dentro do governo militares da reserva e da ativa, demonstra bem o papel que as Forças Armadas podem desempenhar no nível organizacional do Executivo. Além da função de (des)organização que o exército vem desempenhando no momento atual, reflexivamente, sobra sempre aquela impressão de que, se algo der muito errado e as tensões se intensificarem, uma parte dos donos das armas estará dentro do governo.

O discurso de eliminação do adversário – tão enraizado no bolsonarismo e herdado do fascismo de Mussolini – que coloca a esquerda, as instituições políticas e o marxismo como fonte de todo mau da sociedade brasileira é um prato cheio para o discurso de ódio. Se o ser humano têm uma necessidade de violência inerente na sua formação psíquica[iv] – internalizada ou externalizada – unificar essa violência e deslocá-la para um grupo social específico parece ser uma boa estratégia de união das pessoas. Dito de outro modo: se a violência é própria do ser humano, descarregá-la em um grupo amaldiçoado é uma boa forma de exorcizar os próprios demônios. Afinal de contas, quando há um inimigo em comum, é mais fácil criar consenso entre os divergentes.

Um impeachment, a cassação da chapa ou as eleições de 2022 podem colocar um fim no governo Bolsonaro. Entretanto, há um fator presente na sociedade brasileira que não têm prazo de validade certo e deve perdurar durante algum tempo. Estamos falando do bolsonarismo. Ainda que os 30% que apoiam o governo diminuam drasticamente nos próximos meses, é improvável que parte desses eleitores migrem para campos progressistas, pois haverá uma variedade de movimentos e líderes conservadores disponíveis: Mbl, lavajatismo, Dória, Janaína Paschoal, PSL, etc. Todas essas frentes, embora estejam momentaneamente contra o governo, terão suas pautas em comum nos próximos anos. Pautas essas que se unificam pelo discurso de criminalização da pobreza e segurança pública de classe, ou seja, as práticas que garantem o verniz de legitimidade para o extermínio das populações negras e periféricas.

É evidente que os movimentos antiracistas dos EUA e do Brasil, somados às atuais manifestações em prol da democracia, são uma esperança para a criação de novos tipos de sociabilidade. Entretanto, não devemos esquecer que o discurso historicamente reacionário de uma fatia da população brasileira está mais forte do que gostaríamos e este é um fator a ser considerado na construção de estratégias de luta e mobilização.

*Matheus Silveira de Souza é mestre em direito do Estado pela Universidade de São Paulo.

 

Referências

[1] ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal

[2] POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015.,

[3] FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2011.

 

Notas

[i] ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal

[ii] POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

[iii] POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

[iv] FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2011.

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