Fundeb, colonialismo e tecnocracia

Imagem: João Nitsche
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

O Governo não pode, e mesmo que pudesse não deveria estipendiar o ensino particular, que é uma agência do lucro ou de educação privatista

1.

Esperávamos, com esperançamento freireano, que a Escola Pública Brasileira desse o seu grande salto para a equidade e a qualidade social com o novo Fundeb. Ainda corremos o risco de não ser desta vez, porque a Câmara Federal é o nosso calcanhar de Aquiles. Quem sabe o povo brasileiro repense sua história, se encoraje em sua rica cultura e mude tudo em 2022!   Aquela voz dolorosa de Florestan Fernandes, centenário neste 2020, tem motivo para ressoar e ecoar nova e novamente. Como se deu com a Lei 4024/1961, que estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional no tempo pró-golpe civil-militar, o espírito colonial-imperial e conformista de setores significativos do Brasil voltou ao seu normal, embora sob pandemia. O que se vê é que os recursos do Fundeb poderão ser espalhados para aqui, para ali e acolá, para gregos e troianos. Este foi o motivo dos discursos mais duros de Florestan naqueles anos. Vale citar um trecho entre tantos:

Pois bem, o Estado que não pode atender às necessidades das escolas públicas gratuitas, que ele próprio fundou e mantém, vê-se na contingência de ser convertido em Mecenas da escola particular leiga ou confessional, que deve viver dos seus próprios proventos! Já não se trata de simples paradoxos: estamos diante de um assalto criminoso ao erário da Nação, que deveria ser repelido com indignação pelos representantes do povo na Câmara dos Deputados. Tem-se dito que o governo concede poucos recursos à escola particular, que o ensino público e mais oneroso para os cofres oficiais e que as medidas propugnadas são democráticas porque favoreceriam a igualdade de oportunidades educacionais. Todas essas afirmações e outras do mesmo gênero são sofísticas. O Governo não pode, e mesmo que pudesse não deveria estipendiar o ensino particular, que é uma agência do lucro ou de educação privatista. Cabe-lhe somente criar escolas públicas em todos os níveis de ensino, bem como em todas as regiões do País (Fernandes, Educação e Sociedade no Brasil, 1966,  p. 417).

Naquele momento, como se sabe, Florestan liderava, no país, a luta em defesa da escola pública. E seu texto-fala (cito a fala porque privei da amizade de Florestan e aprendi muito nas conversas com ele) é muito atual. No país que prima por fazer mudanças de modo a não mudar nada nas relações de poder e de mando, que é o nosso, muitas falas e escritos aparentemente antigos são atualíssimos.

A mesma escola pública, que necessita de revolução e não reforminha, se a Câmara falhar novamente não poderá cumprir com seu mister transformador, especialmente na consolidação da educação integral universalizada, na profunda e contínua preparação de professores, na construção coletiva e contínua de currículos plenos e na retribuição por meio de salários do magistério iguais a de, por exemplo, procuradores, juízes e profissionais assemelhados. Por que não?

Florestan tem razão: é sofisma dizer que a escola pública não é boa e deve voltar seus olhos para a particular. Também é sofisma igualar o privado ao público em qualquer de seus ângulos de comparação e é sofisma dizer que a escola privada trabalhará irmanada à pública. Pois quando a educação pública precisa arrebentar os poderes que a manietam, controlam e impedem ações autônomas inteligentes, como se comportará o que é privado e confessional, com suas direções, credos, dogmas e interesses?  Se o Estado é laico, seus recursos mantêm, plenamente e em toda a extensão de qualidade de serviços, a laicidade. Simples.  Por que tantos sofismas em nossa história para dividir dinheiro público?

Senado e Câmara precisam debater com a profundidade devida o estabelecimento em tempo breve da educação integral (nada de dois turnos, mas realmente integral!), tratar do salário digno e elevado de todo o magistério nacional (superior ao de toda a escola privada), revolucionar a comunidade educativa em todos os cantos do país em sua construção curricular, incluídas as novas tecnologias de apoio e realizar, de uma vez por todas, a implantação da formação continuada dos educadores e das educadoras, há vários anos escrita pelo Conselho Nacional de Educação depois de seminários, consultas e debates nas várias regiões do país. Tudo o que urge nas mudanças da escola básica brasileira tem preço e não se pode mais fazer o raciocínio antigo, já feito por ocasião da LDB 1961, isto é, dividir os recursos com todo mundo, um pouco para cada um. Este é o grande erro! Um raciocínio comum, embora claramente colonizador e colonizado. Outro sofisma. As inteligências estão colonizadas, até com as raras boas intenções. É necessário que deputados e deputadas saibam que as escolas das florestas, ribeirinhas, quilombolas, dos grupos nômades, das periferias, especiais e de outros grotões ficarão como têm estado, sem condições de educar para a cidadania e os direitos universais. E nós, como Florestan, exigimos o contrário disso.

O Senado merece louvor pela atitude tomada diante do Fundeb. Quem sabe ainda superaremos graves problemas no sistema de representação popular do Brasil: ele é eivado de compromissos e interesses que não são, radicalmente, públicos e sim privados e privatistas. A grande votação que os representantes recebem nas urnas é pública, mas as mediações e relações políticas são privadas e sobrevivem por mérito dos mitos de interesse. Processos e inquéritos a granel indicam esse universo de simulações e simulacros, verdadeiros ainda que a justiça não seja feita ao final desses atos jurídicos.  Além disso, como aprendi quando, em Israel, entrevistava intelectuais e escritores sobre as relações entre a intelectualidade, a vida social e a política nos anos de 1970, os dons e vocações sociais e políticas se distribuem muito assimetricamente na sociedade, formando, então, os nichos vocacionais e de ação da inteligência, bem como seus contrários e problemas decorrentes.

Representante eleito teria de ser especial no seu alinhamento radical em face das necessidades e desejos da gente do país que sofre sistematicamente o descaso para com a saúde, passa fome, é violentada diariamente em seu fazer cultural e simbólico e vê as novas gerações perderem os sentidos do futuro breve.

Por isso, a par das responsabilidades dos congressistas para com a novo regulamento do Fundeb, interessa muito que poderão realizar os movimentos sociais no rumo dos próximos horizontes de mudanças indispensáveis para voltarmos a sorrir com o sorriso cheio de novos sentidos e não para agradar.

2.

No dia em que os secretários estaduais de educação do Brasil e o ministério público declararam desnecessária, injustificável e mesmo inconstitucional a entrada dos jabutis e benesses privatistas na Câmara Federal[i], novos sofismas surgiram em textos bem escritos e da lavra de autoridades do campo educacional, certamente a favor da retirada de quase 13 bilhões de reais do Fundeb para escolas privadas, que também respondem pela nominação de confessionais, comunitárias e filantrópicas.

Ora, os documentos do Consed e do Ministério respondem a um por um dos argumentos privatistas (se esta palavra não for usada é sofisma, já caracterizado por Florestan), como os temos no artigo denominado “Novo Fundeb torna a educação pública mais plural”, de autoria de Regina Esteves, Adriano Naves de Brito e Fernando Schüler (Folha de São Paulo, 14.12.2020, B4).

Cabe, no entanto, elaborar um pouco mais. Do trabalho de Florestan em 1961, o único argumento que sofreu mudanças foi a expansão da rede pelo território brasileiro, o que permite combinar argumentos do Consed e do brilhante sociólogo. Porque a rede escolar foi aos confins, só falta a ela a conquista da plena qualidade social, o que se dará por ela mesma no contexto do Estado, que somos todos nós, inclusive o terceiro setor, composto por pessoas e processos de trabalho. Não obstante, são redes distintas e foram implantadas distintamente, como é evidente o controle privado do sistema S e, da mesma forma, das escolas que confessam determinada fé.  O direito que se reservaa todos os setores privados em construir redes escolares não deve faltar ao Estado, suas leis e suas normas. Exatamente porque a rede pública é espantosa e diversa, todos os recursos não deixam sobras a favor dos pontos já levantados neste artigo, precisamente no quarto parágrafo. Repita-se: educação integral (currículos plenos) em tempo integral, formação de alto nível (e culturalmente diversificada) dos professores e professoras, atualização crescente no poder e no uso das tecnologias e valorização do magistério, que se ombreará às profissões hoje justamente valorizadas. Destarte, todo o dinheiro do Fundeb será necessário e deve crescer anualmente para garantir essa transformação da qualidade. Não restará um tostão para repartir (ao modo antigo) o que não é divisível. Trata-se de uma totalidade em si, na sua hora e na sua vez histórica.

Qualquer ilação referente ao texto constitucional, que se expressa com o “podendo ser dirigidos” (recursos públicos aos setores privados) receberá, desta feita, a boa resposta: pode mas não deve neste ponto da história, depois do sofrimento atroz da educação pública brasileira, de fato dividida, fragmentada, esfacelada em seus recursos há muito tempo. Consed e Juristas dão a mão contemporânea de que Florestan necessitava nos libelos dos anos de 1960, bem como na sua luta constituinte de 1988.

Todos os demais pontos do texto são respondidos na combinação dos escritos do líder da Sociologia brasileira e o apoio de hoje. Para quem se esqueceu de Florestan, trata-sedaquele menino pobre que, em razão de sua inteligência e esforço, reencaminha o campo dos estudos da sociedade do Brasil e no Brasil, por obra da genialidade empírico-teórica. A tudo isso somou o amor à educação pública, que lhe valeu também sofrimento e perseguição, mas que manteve até o último dia de vida. Quem não conhece os textos da Campanha de Defesa da Escola Pública? Enfim, pouco adiantará colar na testa do homem extraordinário a alcunha de marxista, comunista e qualquer outro ista, pois já nos cansamos dessas bobagens que só serviram como valhacouto para ações menores e pouco cidadãs de parte dos coladores de alcunhas.

As últimas afirmações nada têm a ver com o texto publicado no jornal diário. A defesa do privado e suas variantes pode ser feita; basta que estejamos garantidos para a oposição até o limite de 100% dos seus significados. É o caso desse, que já revela um grande problema no título, que trata da educação “mais plural”. Plural, mas não caótico, é a natureza e a construção cultural do país. Caótico é o governo e certos momentos das representações populares. Enquanto plural, o sistema educacional carece de um rumo radicalizado, econômica e politicamente, para que a pluralidade não se transforme em um pouco de tudo a se fazer uma geleia geral. Investimento plural é aquele que se concentra no plural público para atingir os grandes objetivos já postos no início deste texto e repetidos. Não um plural fragmentado desnecessariamente, distribuído como o Mecenas de Florestan em nome de argumentos supostamente igualitários. Por que dividir para todo mundo se temos uma rede continental e pública? Cabe ao Estado brasileiro, sim, a obrigação de, em primeiro lugar, fazer dessa rede a morada da qualidade educacional, de modo claro e indisfarçável. Tão profundamente que mova o IDH brasileiro para muitos pontos adiante. E se alguém disser que não há massa crítica para isso, mente! Ou fala inverdade ou não pesquisou como estão a estudar, a fazer mestrado e doutorado os educadores da escola pública brasileira. Faltam, precisamente, grandes investimentos para a valorização desses profissionais, a partir dos quais, e com participação comunitária, os demais objetivos serão concretizados.

3.

É difícil afastar-se do debate em tempos e situações desencaminhadas. Parece existir um semideus que apaga a história todos os dias ou tenta sistematicamente obnubilar sentidos a fim de inviabilizar acúmulos, construções simbólicas garantidoras do valor da educação como operação sistematizadora da cultura, ou mesmo o construto de seus mais belos valores.

Seria desejável que já tivéssemos assente que os defeitos das operações educacionais não significam, necessariamente, que eles se vinculam estritamente às leis e normas de sua indução. A leitura do texto escrito por Maria Helena Guimarães de Castro, Rafael Lucchesi e Rossieli Soares (Fundeb é oportunidade de trabalho para os jovens, Folha de São Paulo, 06.12.2020, A3) sugere duas frentes de interrogação: ou o texto é incompleto no seu mister em razão do número de caracteres exigido pelo jornal diário ou as autoridades que o escreveram se rendem à tecnocracia. Se vale a primeira frente, cabem desculpas pela sequência. Se não, justifica-se o debate. A ver.

Ressalte-se que tecnocracia, aqui, é pensada a par do texto de Durmeval T. Mendes, à página 12 do belo livro Filosofia da Educação Brasileira, 2. ed., 1985, coordenado por ele. Cite-se: “Outro tipo de intelectuais são os tecnocratas, articulando o poder e o saber, e substituindo a compreensão da totalidade através da lógica reflexiva e operativa por uma lógica linear e meramente técnica”.

O texto citado tem o mesmo pecado venial do artigo já analisado. Noutras palavras, todo o conjunto de parágrafos até o tratamento da regulamentação do Fundeb pela lei 4372/2020 é um arremedo da ideia de um novo modelo, constituído pela Reforma do Ensino Médio, Lei 13.415, de fevereiro de 2017, assinada por Michel Temer e Mendonça Filho. Em verdade, o texto corre para chegar ao principal, isto é, na regulamentação provedora da palavra-panaceia parcerias, que Florestan Fernandes, se vivo, hoje, chamaria de benesses do público ao privado. Interessa dizer, no texto, que o capital privado tem grande competência adquirida e que, parceiros, Estado e, por exemplo, Sistema S e outras organizações, permitiriam a “redução do investimento na infraestrutura necessária ao desenvolvimento de competências que atendam à diversidade de expectativas do mercado na profissionalização dos estudantes”. Segue-se o convite às parcerias, muito bem-vindas.

Trabalhemos por partes. A primeira pergunta é: qual modelo deriva de uma lei mal iniciada e mal debatida? Além disso, o que se lê no texto legal é um exercício de linguagem sobre o fenômeno curricular que deveria ser de fato iniciado por estados e municípios neste ano de pandemia. Sugerem os saberes linguísticos e das humanidades que modelos e paradigmas são formulações conceituais resultantes de muitas operações de estudo, pesquisa, experimentação, acúmulo tempo-espacial e construção simbólica.  A linguagem da lei do presidente Temer, que faz um zigue-zague na LDB e produz um desenho só compreensível para quem conhece as Diretrizes Curriculares Nacionais do CNE, aciona a expectativa de investimento, amplia o tempo de formação, o que é bom, e sugere escolhas do jovem estudante. A par dos quatro eixos tradicionais de itinerários, fincados na BNCC, junta-se o de formação técnico-profissional, sobre o qual a lei é esquemática. De fato, no texto legal se lê: V formação técnica e profissional. Pior, não só falta o caráter de modelo, ou paradigma, como a formulação linguística da lei13.415 põe nos braços dos sistemas estaduais de ensino o grande peso das realizações preliminares e sequenciais, o que cria uma difusão e um processo de iniciação que eliminam, de pronto, a ideia de modelo. O artigo 12 da lei mostra o movimento dos anos em que a experiência se inicia e algumas mediações necessárias, como a aprovação da BNCC do Ensino Médio, 2018.

Uma palavra sobre os três pontos ziguezagueados da LDB. Não há nada a citar de acúmulo, pois está por começar e os sistemas terão de responder aos jovens pela sua precariedade, pela escola única da pequena cidade ou do sertão, bem como pelas escolas tradicionalmente escanteadas e carinhosamente incluídas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, 2010, ou seja, as que se localizam nos mundos da floresta, das orlas, dos rios, dos quilombos, dos cerrados, do nomadismo. Voltaremos a elas em próximo argumento.

Então, por que o texto corre sôfrego para tratar da regulamentação do Fundeb e das relações entre o público e o privado, por meio doo estipêndio (vide Florestan, primeira página) do Estado brasileiro? Porque é um texto que não chega aos pés (limitação de caracteres?) das Diretrizes do CNE para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, segundo Parecer 11, de 2012, relatados por Adeum Sauer, Francisco Cordão, José F. de Lima e e Mozart Neves Ramos. Evidentemente a lei assinada pelo  senhor Temer faz deslocamento e sugere novas entregas, coerentemente ao tempo de elaboração da BNCC, mas a história não pode ser apagada ou obnubilada. Nas diretrizes há sentidos do trabalho, dados sobre a crise do trabalho e dos empregos, atitude inteligente e crítica diante dos processos tecnológicos, estudo da integralidade no fazer dos percursos formativos e reflexões sobre o crescimento dos jovens educandos como sujeitos de direitos (nos termos do ECA e dos Estatutos da Juventude). Ao contrário, a linguagem dos parágrafos introdutórios às parcerias-panaceias vê um jovem exigido de esforço substancial para arrumar um emprego. Suponho que não tenha havido lugar para mais caracteres que ajudassem as três autoridades a manifestar o que conhecem bem, as Diretrizes do CNE, sem as quais a lei do presidente Temer é somente um esquema, que nasceu do espanto do Mendonça Filho diante dos exames massivos nacionais e internacionais. Portanto, um mal nascimento, que piora pela falta daquilo que o CNE fez bem: consultar, debater, semear, colher estudos e reflexões, viver pensamentos diversos e equilibrar a diversidade. Ademais, a ideia de inserção do jovem no mundo produtivo flexibilizado (flexibilidade pode também ser uma desgraça ocupacional) é um ato injusto diante de uma juventude curiosa e inteligente. Muito pouco para tanta cultura e para a necessária chegada ao humanismo que a educação porta. Com espírito crítico, condição da autonomia e da liberdade.

Há dias, quando a Câmara Federal aprovou a aplicação de quase 13 bilhões (uma estimativa publicada) ao campo privado, a senhora Maria Helena, uma das signatárias do texto, foi entrevistada e pareceu (será que me enganei?) contrariada com o ato dos representantes populares. Ora, a julgar pelos compromissos e interesses daqueles senhores e daquelas senhoras do parlamento, não poderiam fazer algo diferente. Mas deveriam!  Bem, a contrariedade suposta (devo ter-me enganado) ganha sentido, embora soe oposição, nas parcerias tão bem-vindas neste texto a três mãos. Visto que parceria significa investimento por várias formas, trata-se de consequência, não? Os desejos se realizam, mais ainda na sociedade que minora o que é público, embora sem colocar nada no lugar. O fato é que tais parcerias, ou benesses nos textos de Florestan, foram fustigadas por ele na luta pela defesa da escola pública nos anos de 1960. O parlamento não poderia contemplar somente o lugar sugerido pelo senhor Rossieli, pelo senhor Lucchesi e pela senhora Maria Helena. Ele abriu mais. Espera-se nova atitude das autoridades da educação.

Ainda penso que educadores, ao receberem espaço muito exíguo para tratar do mais complexo dos valores sociais, a educação, deveriam negar sua escritura para não se enredarem no cipoal discursivo.

A rigor, o texto destacado acima, que trata das parcerias estipendiadas pelo erário público e defendidas pelos três criadores do texto, embora seja bem escrito e use palavras da hora no campo da tecnocracia e do senso comum, também podem ser analisadas como um crime de lesa-educação ou um crime contra pessoas desprivilegiadas da sociedade brasileira.  Quando nós, discípulos de Florestan, não abrimos mão dos recursos do Fundeb senão para a educação pública, podemos ler nos interstícios do discurso citado ipsis litteris que no conjunto dos 13 bilhões poderão continuar a sofrer exclusões as escolas dos grupos nômades, dos espaços das florestas, dos ribeirinhos, dos quilombolas. Estou a radicalizar, como convém a quem pensa Florestan na defesa do público, mas de fato não se admite uma vírgula a menos, pois este país não tem mais desculpas para continuar a supostamente, fazer grandes mudanças e, não obstante, deixar as relações de poder intactas, como antes e antes de antes.

Caros escritores, Cara escritora.  Nós estamos a exigir, nos termos do que aprendemos em décadas de trabalho educacional, que a melhor ciência, a melhor tecnologia, os melhores instrumentos de trabalho e os melhores educadores sejam financiados amplamente nas escolas públicas do país, com destaque para as quilombolas, adaptadas ao mundo nômade, nos espaços ribeirinhos, na educação especial inclusiva, nas regiões pesqueiras das orlas, nas fundas periferias, no interior das florestas e cerrados. Para tanto, não haverá dinheiro para estipendiar a escola privada, ainda que ela também seja filantrópica, comunitária e confessional.

Florestan sofreu muito pela luta, mais do que os contemporâneos. No seu centenário, merece a vitória, que não é dele e sim exclusivamente da educação pública. Podemos perder, mas, como disse Drummond, de tudo fica um pouco. Que fique a força da voz que ecoa e ressoa. Mas a educação pública, radicalmente pública, precisa ganhar esta batalha. Já perdeu muitas.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Nota


[i] Jabutis e benesses são termos usados por este autor e não pelos documentos publicados.

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