a terra é redonda

Future-se: O canto da sereia

Por Carlos Eduardo Araújo*

Não há dúvida em o programa apresentado pelo MEC para a gestão do ensino federal tem o propósito de abrir caminho para a privatização do ensino público, a partir do ensino superior, tomando de roldão todas as instâncias da educação pública brasileira.

O Ministério da
Educação apresentou no dia de 17 de julho do ano passado o que denominou como “Programa
Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se”. Como já
nos advertiu Carlos Montaño: “As palavras hoje têm mais a utilidade de esconder
do que desvelar”. E continua com sua clarividência crítica: “Combater esta
armadilha do novo linguajar exige do intelectual (e do militante) engajado com
os “setores subalternos” a astúcia de compreender o real sentido dos termos à
luz da sua inserção na totalidade social, explicitando seus promotores, os
interesses que expressam, e os que escondem, as contradições e lutas que
ocultam; deve pensar os termos à luz da crítica radical” [1].

A percepção de
Montaño, dirigida ao falacioso “Terceiro Setor”, se mostra muito apropriada
para estabelecermos uma crítica a partir da escolha do eufemismo Future-se,
nome do Programa que visa dar início a privatização de nossas Instituições de
Ensino Superior. Caso o MEC fosse instado a tomar o “soro da verdade”, escolheria
um termo mais condizente com seus propósitos ocultos: Fature-se! Outros
vocábulos estão em transição do âmbito do Mercado Financeiro para sua aplicação
ao âmbito da Educação Superior, tais como “empreendedorismo”, “governança”,
“inovação”, “incubadoras e start-ups”, constituindo uma “novilíngua”
neoliberal, digna do melhor Orwell.

Como constata
Christian Laval “Se a escola é vista como uma empresa atuando em um mercado, é
obrigatória a recomposição simbólica além dos círculos dos ideólogos liberais:
tudo que diz respeito à escola pode ser parafraseado em linguagem comercial. A
escola é obrigada a seguir uma lógica de marketing, é convidada a empregar
técnicas mercadológicas para atrair a clientela, tem de inovar e esperar um
“retorno de imagem” ou financeiro, deve se vender e se posicionar no mercado
etc” [2]. O que se esconde
sob a “futurista” palavra escolhida pelo MEC para nominar seu projeto de
privatização do ensino público superior? Vamos tentar esboçar algumas
possibilidades nas linhas que se seguem.

O programa Future-se
foi lançado em meio a um show de pirotecnia, através de um power-point, com
breves e opacas palavras do Ministro da Educação, que passou a condução da
apresentação do Projeto ao Secretário de Educação Superior do MEC, Arnaldo Lima,
em uma reunião com Reitores das IFES – Instituições Federais de Ensino
Superior, além de jornalistas, Secretários de Educação e parlamentares. Uma
apresentação digna de provocar vergonha alheia, face ao amadorismo,
desconhecimento do tema tratado, a superficialidade da abordagem e o despreparo
demonstrados.

Dias depois, o MEC
divulgou uma minuta de projeto de lei do Programa. Aludido documento passou a
ser detalhadamente estudado pelas universidades, instituições acadêmicas,
entidades sindicais da educação superior e técnica, advogados, jornalistas e
professores/pesquisadores de diferentes universidades e regiões do país, para
análise e crítica, assim como para o posicionamento das Universidades Federais
e dos Institutos Federais face a sua novidade.

A conclusão a que
chegaram as IFES, de modo praticamente unânime, é que, entre outros problemas
sérios, o Future-se é uma afronta a várias leis e à Constituição Federal, tendo
ainda, como objetivo inconfesso e encoberto, a privatização da escola pública,
a supressão da autonomia universitária e a submissão das Universidades à lógica
neoliberal de uma Empresa. A partir da adesão ao FUTURE-SE abre-se para a
Comunidade Acadêmica a “cativante” oportunidade de especular no mercado. Já
podemos imaginar Reitores e Docentes das IFES à cata dos melhores fundos de
investimentos, apresentando seus glamourosos projetos inovadores. Como nos
confessa o Secretário da Educação Superior do MEC, Arnaldo Lima: “Queremos
criar uma cultura empreendedora e uma visão sistêmica para todas as regiões do
país e exportá-los”.

O jovem e
entusiasta Arnaldo Lima nos acena com essa encantadora promessa: Para aumentar
a autonomia financeira das instituições de ensino superior, o Future-se contará
com o Fundo de Autonomia Financeira. “Hoje são arrecadados R$ 1 bilhão que vai
para a conta única do Tesouro Nacional e pode ser contingenciado. O Future-se
permitirá que esses recursos vão diretamente para as instituições federais de
ensino superior”. Assim as IFES disporiam de um “Fundo de Investimento
Multimercado”, composto por fundos de investimento imobiliário e fundos de
investimento em participação, com política de investimento para potencializar o
ambiente de inovação e atrair investidores estrangeiros para o país.

Tudo isso me fez
lembrar do título de um livro, de viés marxista e crítico, do literato Roberto
Schwarz: “As ideias fora do lugar”. O livro aborda a obra de Machado de Assis,
mas me socorro aqui do título para apontar a impropriedade e a caráter
inconciliável entre Educação Pública e Mercado Financeiro. Mostra-se, à
saciedade, inadequada a aplicação da gramática neoliberal do mercado financeiro
ao sistema educacional.

Em 14 de agosto do
ano passado, Dyelle Menezes, no Portal do MEC, diz que “O programa também prevê
um funding de mais de R$ 100 bilhões. Metade dos recursos serão provenientes do
patrimônio da União. O restante tem como fontes Fundos Constitucionais (R$ 33
bilhões), Leis de Incentivos Fiscais e depósitos à vista (R$ 17,7 bilhões) e
recursos da Cultura (R$ 1,2 bilhão). Os valores poderão ser acessados por
empresas juniores, agências de inovação e parques tecnológicos.

O objetivo do MEC
é fazer parte desse retorno ser destinado para as universidades e institutos
federais, criando uma cultura empreendedora”. “Funding”? Retorno financeiro
para as Universidades e Institutos Federais? Tentador não? Façamos, no entanto,
como Ulisses: ouçamos essa melíflua melodia, entoada pelas sereias neoliberais,
amarrados, firmemente, ao mastro dos valores que regem a história das Universidades
Públicas neste país, que são um oásis de produção e disseminação de
conhecimento de qualidade, lugar de competências instaladas, reflexão e
expertise, resultantes de seu tripé institucional: Ensino, Pesquisa e Extensão.

O Future-se,
segundo ementa do projeto de lei, é um Programa sujeito à adesão voluntária.
Portanto, depois de acurados estudos, reflexões e diagnósticos, foi o mesmo
rejeitado pelo conjunto das Instituições Federais Públicas de Ensino Superior
do país.

Em agosto do ano
passado o MEC divulgou o seguinte em seu portal: “O programa foi lançado pelo
MEC para promover maior autonomia financeira nas universidades e institutos
federais por meio de incentivo à captação de recursos próprios e ao
empreendedorismo. A adesão ao Future-se é voluntária. É importante destacar que
a União manterá os recursos destinados às instituições, o que vier a mais com o
programa será recurso extra”. É isso mesmo que você entendeu: o MEC estimulando
as Instituições Universitárias Públicas a irem ao “Mercado” captarem recursos
para si mesmas e para empreenderem também. Surreal!!

Depois de proceder
a algumas alterações no Programa, em face da saraivada de críticas que sofreu,
o MEC o reapresentou no último dia 03 de janeiro do corrente ano de 2020, para
reavaliação por parte das Instituições de Ensino Superior. Entendemos que
continua fadado a uma nova e acachapante rejeição, uma vez que o objetivo
essencial continua íntegro, ou seja, a privatização de Ensino Superior Federal
Público, com todos os malefícios educacionais, culturais e sociais daí
decorrentes.

A título
ilustrativo, da média das avaliações a que chegaram as Instituições de Ensino
Superior, reproduzo um trecho das conclusões do “Relatório” da UFVJM –
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em que foram
consignadas as análises quanto ao Future-se: “… sobre as desqualificações do texto da Minuta de Projeto de
Lei, no que diz respeito aos seus escopos textual-discursivo-ideológico e
técnico-legal, caracterizando-o como um texto vago, mal escrito, ambíguo,
fragmentado, forjado de forma a promover confusão sobre objetivos, funções e
obrigações entre as instituições e instâncias nele citadas, construído com um
discurso inicial com aparência positiva, porém com artigos que fazem o
contrário do que se propõe inicialmente sobre a autonomia das IFES …”. E o
relatório é concluído com a seguinte assertiva: “Dentro de um contexto de um
governo extremamente neoliberal, o que se tem, por fim, é a tentativa de
submeter as IFES a uma gestão totalmente voltada ao interesse privado, ao mesmo
tempo em que o governo tenta se eximir da responsabilidade de fomentar o Ensino
Público Superior” [3].

As Comunidades
Acadêmicas, das Universidades e Institutos Federais, foram surpreendidas com um
Programa pronto, sem que tenham tido, até momento de sua teatral apresentação,
sequer conhecimento de que ele estava sendo gestado. Tudo em consonância com o
autoritarismo e a aversão às práticas democráticas, da discussão, do debate e
do diálogo, que caracterizam o desgoverno Bolsonaro.

Em uma análise
preliminar do Future-se a Comunidade Acadêmica da UFPel – Universidade Federal
de Pelotas afirma que: “O MEC lançou o Programa Future-se oficialmente para a
mídia no dia 17 de julho de 2019. Segundo informações do Secretário de Educação
Superior, o plano vem sendo desenvolvido no âmbito do MEC há meses.
Estranhamente, as Universidades Federais, interessadas principais no plano, não
participaram da elaboração da proposta, não foram convidadas a apresentar
considerações ou sugestões e somente conheceram, parte do plano, exatas 17horas antes da divulgação para a mídia.
Esse vício de origem é gravíssimo e sem precedentes na história do MEC, pelo
menos após a Constituição de 1988” [4].

Ao proceder a
análise do Future-se UFPR – Universidade Federal do Paraná chegou – às mesmas
conclusões: “O diálogo aberto, plural e democrático é um instituto basilar das
IFES. É por meio da discussão coletiva, do compartilhamento de opiniões e
propostas que se legitimam decisões, especialmente as que embutem alterações
significativas de rumo. No entanto, embora proponha transformações profundas no
sistema federal de ensino superior, o Future-se foi apresentado à sociedade
brasileira sem conhecimento prévio das IFES ou qualquer debate com
representantes das universidades e institutos federais” [5].

Apesar disso, as
IFES fizeram o que sabem fazer melhor: estudaram e esmiuçaram o Programa, o
destrincharam e o detalharam e se detiveram em analisar ponto por ponto do
malfadado Programa. Em pouco tempo, em agosto de 2019, menos de um mês depois
da apresentação do Future-se, várias Universidades já o haviam debatido e
discutido e, como resultado de suas percucientes análises, apresentaram dossiês
detalhados e aprofundados sobre o tema. Souberam fazer uso de competências
auferidas depois de décadas de estudo e dedicação ao conhecimento. Apresentaram
os resultados de suas reflexões, por meio dos aludidos dossiês, nos quais
deixaram consignadas suas ponderações, considerações, verificações e
conclusões, as quais não deixaram pedra sobre pedra do desditoso Programa.

Entre outros
problemas, concluíram que o Future-se é um Programa eivado de um cem número de
irregularidades e inconsistências, além de ser constituído de uma
fragmentariedade, vagueza e superficialidade impressionantes. Concluíram,
também, que o Future-se adota um viés eminentemente econômico para tratar do
futuro das Universidades Federais, deixando de considerar as questões centrais
referentes aos pilares da Universidade: ensino, pesquisa e extensão. É um
prêmio ao despreparo, à incompetência e à estultícia, já tão comuns e
conhecidos deste desgoverno Bolsonaro.

A equipe escolhida pelo presidente Bolsonaro é composta de
mulheres e homens prosaicos, alguns mais toscos e parvos que outros, com ideias
rasas, estreitas e apequenadas, quando não eivadas de preconceitos medievais e
destituídos, todos, dos qualificativos que deveriam nortear a liderança de uma
nação. Uma das figuras mais grotescas, ineptas e incompetentes do estafe
governamental é precisamente o Ministro da Educação Abraham Weintraub ou seria
mais apropriado designá-lo como o Ministro da Deseducação?

A equipe do desgoverno Bolsonaro vem se notabilizando por seu
notório e indecoroso despreparo técnico, cultural, intelectual e, em alguns
casos, até moral. São destituídos de características pessoais que os habilitariam
para o pleno exercício de suas funções. Em uma longa reportagem, publicada no
último dia 02 de janeiro, o jornal britânico The Guardian elenca uma
lista de figuras do seu desgoverno, consideradas inaptas para o cargo que
ocupam e sendo, inclusive, tidas como perigosas. “Diga o que quiser sobre
Bolsonaro, mas é preciso reconhecer seu raro talento em escolher as pessoas
mais desqualificadas, lunáticas e/ou perigosas para os empregos”, comentou um
dos entrevistados, o jornalista Mauro Ventura.

Talvez não
estejamos, enquanto sociedade, percebendo os nefastos efeitos do Programa Future-se
para o futuro de nossa educação pública superior que deve guardar o compromisso
com a qualidade e gratuidade do ensino. A grande mídia, aliada e sócia do
mercado financeiro, dá sua contribuição para fazer crer ao conjunto da
sociedade brasileira que o Programa trará ganhos e melhorias ao ensino público.
De resto, seguem o roteiro do que já fizerem com relação as nocivas e iníquas
“Reforma Trabalhista” e “Reforma da Previdência”, vendidas como benfazejas aos
trabalhadores e aposentados.

As nossas
Universidades Públicas se constituem em um patrimônio material e imaterial do
povo brasileiro. Fomos retardatários em instituí-las no continente
sul-americano e já estamos, com o indigitado Programa, a caminho de suprimi-las
enquanto patrimônio público. As consequências da implementação do Future-se
serão desastrosas e causarão prejuízos, cuja reversão, no futuro, será difícil
ou quase impossível. O Programa, como já mencionado, visa a promover a
privatização do nosso ensino superior público que, apesar da histórica
insuficiência de recursos de que dispõe, construiu uma história exitosa, de
sucesso e reconhecimentos, no plano interno e no exterior. Basta nos
debruçarmos em dados públicos para verificarmos que, ao contrário do que já
disse o néscio presidencial, é nas Universidades Públicas que se dão, com muito
maior qualidade, no comparativo com as Privadas, o ensino, a pesquisa e a
extensão.

O Cavalo de Troia
do Future-se são as OS – Organizações Sociais, que compõem o denominado
“Terceiro Setor”, em face das quais as IFES deveriam firmar um “Contrato de
Gestão”. São Pessoas Jurídicas de Direito Privado, criadas no início do governo
neoliberal de FHC, em um cenário de desmonte do Estado e da promoção da
privataria tucana. A Era FHC arou a terra para receber as sementes do
neoliberalismo, criando as condições jurídico-legais e institucionais para uma
colheita farta num futuro próximo. Os planos neoliberais foram obrigados a
hibernar durante os governos do PT, mas acordaram com muita apetência e
voracidade no governo golpista de Temer e aprofundam sua gana pantagruélica no
desgoverno Bolsonaro.

As Organizações
Sociais foram criadas por meio da lei 9.637, de 15 de maio de 1998. Decorreram
do “Plano Diretor da Reforma do Estado”, lançado pelo Poder Executivo Federal
em 1995, no início da Presidência de Fernando Henrique Cardoso. Pode-se dizer
que foi uma proposta de reconstrução pragmática do Estado, a partir de uma
perspectiva liberal, buscando “torná-lo enxuto’, voltado para o mercado.

É Carlos Montaño
que nos alerta para o canto de sereia do aludido “Terceiro Setor”: “Mas este
termo (ideológico) esconde um projeto (político). O termo “Terceiro Setor”,
além da sua mistificação ideológica, oculta um projeto social: o projeto,
existente na programática neoliberal, que articula os diversos subprojetos
inseridos na ideologia de autorresponsabilização dos indivíduos e desresponsabilização
do Estado, visando desonerar o capital. Assim, esta ideologia materializa-se
nos Projetos do “Terceiro Setor”.

Segundo Montaño:
“… muitas delas são explicitamente propostas do Banco Mundial, do FMI, de
governos neoliberais, de corporações capitalistas transnacionais”. E conclui Montaño:  “Assim, para continuarmos na trilha da
epopeia de Ulisses, relatada por Homero n’A
Ilíada
e n’A Odisseia, os
encantos destes projetos, disfarçados no seu linguajar oriundo das esquerdas,
com sua aparência progressista, mas tão ao gosto da racionalidade pós-moderna e
tão funcionais ao neoliberalismo, têm operado como um verdadeiro “Cavalo de
Tróia” [6]. Assim, os
projetos que envolvem o malsinado Terceiro Setor, são verdadeiros “cavalos de
Tróia”, que incólumes e fortes, fazem imiscuir os valores, os interesses, as
visões de mundo da grande burguesia neoliberal no âmago do nosso ensino público
e na sociedade brasileira, como um todo.

Montãno deixa
claro a importância do papel ideológico que o terceiro setor cumpre na implementação
das políticas neoliberais e a sua sintonia com o processo de reestruturação do
capital pós 70. Ou seja, flexibilização das relações de trabalho, afastamento
do Estado das responsabilidades sociais e da regulação social entre capital e
trabalho. Como diz Montaño: “Hoje, em pleno século XXI, as Sereias continuam a
cantar e encantar, seduzindo e atraindo ainda ao abismo a quem escutar indefeso
seus cânticos. Essas vozes ecoam nos ouvidos, porém não são músicas, nem
melodias. São palavras e projetos que seduzem e atraem os marinheiros de hoje,
direcionando os num rumo já marcado”.

Será razoável
introduzirmos uma “Pessoa Jurídica de Direito Privado” como intermediária entre
o Estado e as Instituições de Ensino Superior para gestão de recursos, públicos
e privados, que chegam a somas elevadíssimas? As próprias IFES já fazem isso
muito bem há décadas. As OS se constituem e se mantêm dispensadas de trilharem
pelos mesmos lindes constitucionais do setor público, como a realização de
concurso público para formação de quadro de pessoal, licitação para aquisição
de produtos e serviços, além de se encontrarem desobrigadas dos compromissos
com os valores da equidade. Segundo o Future-se elas poderão até contratar
professores, segundo o regime da CLT, comprometendo a higidez e estabilidade do
serviço público desenvolvido pelas IFES. Muito sério tudo isso!

Na primeira versão
do Future-se as fundações de apoio foram completamente desconsideradas no
Projeto de Lei, o que motivou inúmeras críticas, uma vez que elas, de há muito,
realizam os objetivos e funções que o Programa passava a conferir as OS.Afinal, conforme a Lei nº 8.958/1994,
as fundações de apoio já possuem a competência de, por meio de convênios e
contratos com as IFES, apoiar a realização de projetos de ensino, pesquisa,
extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e de estímulo
à inovação, inclusive na gestão administrativa e financeira necessária à
execução desses projetos.

Soa no mínimo
estranho, portanto, que se conferisse a outro ente de direito privado (a OS)
atribuições que as fundações de apoio já possuem e exercem, não sendo apontadas
razões que justifiquem tal substituição. Ao longo dos anos, as fundações vêm
aprimorando o apoio às Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), tendo
acumulado experiência e demonstrado eficiência na prestação desses serviços. Em
face das fundamentadas críticas ao papel, até então exclusivo das OS no Future-se,
foi divulgada pelo MEC a minuta de um novo Projeto de Lei, que passou a
contemplar a possibilidade de contratação das fundações para exercer o papel
que, na verdade, já exercem há tempos. Contudo, não foi suprimido do Programa a
possibilidade de contratação de OS, esse ovo da serpente neoliberal.

Não temos dúvida
em afirmar que o Future-se é um grande e deslavado engodo, cujo propósito maior
é abrir caminho para a privatização de nosso ensino público, a partir do ensino
superior, tomando de roldão todas as instâncias da educação pública brasileira.
É um “negócio da China”, tendo em vista os milhões de brasileiros abrigados
pelo sistema educacional público e as cifras astronômicas de recursos que são
movimentados.

Façamos, todavia,
justiça ao desgoverno de Jair Bolsonaro: ele não pode ser acusado de
originalidade. O Programa Future-se está inserido no bojo de um projeto
neoliberal mais amplo e internacionalizado de privatização da educação pública,
que estende seus tentáculos, mundo afora. Portanto, o desgoverno Bolsonaro
segue subserviente ao programa do neoliberalismo global.

É a conclusão que
se extrai dos estudos que vem realizando, há vários anos, o sociólogo francês
Christian Laval: “… na nova ordem educacional que vem se delineando, o sistema
educacional serve à competitividade econômica, é estruturado como um mercado e
deve ser gerido como uma empresa”. Em outro trecho de seu precioso livro A escola não é uma empresa”, publicado
na França em 2003 e no Brasil pela Editora Boitempo, em 2019, assevera que: “O
caráter fundamental da nova ordem educacional está ligado à perda progressiva
de autonomia da escola, acompanhada de uma valorização da empresa, que é
elevada a ideal normativo”
[7].

Afrânio Catani, em
apresentação a edição brasileira do instigante e crítico estudo de Christian
Laval sobre a escola pública em tempos neoliberais, informa-nos que Laval
valeu-se, para chegar as conclusões a que chegou, de um conjunto de documentos
oficiais sobre educação de entidades como a Comissão da Comunidade Europeia, a
Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial
e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de vasta bibliografia
sobre a política educacional francesa e de outros países. A partir disso, Laval
monta um “arcabouço de inteligibilidade”, mostrando como os promotores do
neoliberalismo escolar operam por meio de uma estratégia incremental que
promove mudanças no sistema de ensino com medidas isoladas em zonas específicas
que só ganham sentido se relacionadas umas às outras. A educação vai deixando
de ser um bem comum, público, e adquire cada vez mais o caráter de mercadoria,
de bem privado comercializável, sofrendo os condicionamentos da lógica
empresarial em termos de gestão e de resultados.

Como assevera
Laval: “O novo modelo escolar e educacional que tende a se impor se baseia, em
primeiro lugar, em uma sujeição mais direta da escola à razão econômica. Está
ligado a um economicismo aparentemente simplista, cujo principal axioma é que
as instituições em geral e a escola em particular só têm sentido com base no
serviço que devem prestar às empresas e à economia. O “homem flexível” e o
“trabalhador autônomo” são as referências do novo ideal pedagógico” [8].

No prefácio a
segunda edição brasileira de seu livro, Laval denuncia o elevado nível de
intervenção de Instituições de Privadas de Ensino no contexto da educação
brasileira: “Podemos dizer até que o Brasil chegou antes do que outros países
ao estágio do “capitalismo escolar e universitário”, caracterizado pela
intervenção direta e maciça do capital no ensino. Constatamos esse fato pela
expansão de empresas gigantes, como a holding Kroton, que, pelo que sei, possui mais de 1,5 milhão de estudantes
e quase 40 mil assalariados, e está presente em quase todos os setores do
ensino, tanto de base como preparatório e profissionalizante. De modo geral, o
crescimento notável do ensino superior privado no Brasil nos últimos vinte
anos, sob a dominação de grandes oligopólios cotados em bolsa (Kroton, Estácio,
Anhanguera etc.), faz do país um caso único no mundo. E a orientação do atual
governo ameaça acelerar ainda mais essa dominação capitalista na escola e na
universidade, especialmente pelo desenvolvimento de um ensino privado a
distância” [9].

Na versão
inicialmente apresentada do Future-se colhe-se no Capítulo II, cuja denominação
escancaradamente mercadológica é “Da Gestão, Da Governança e do
Empreendedorismo”, na Seção I (Da Governança), no Art. 11, no item “V”, o
seguinte: “adesão, no que couber, a códigos de autorregulação reconhecidos pelo
mercado”.

Na versão mais
atualizado do Future-se, pinçamos da minuta (art. 3º, XV e XVI) o seguinte: XV
– Fundo Patrimonial do Future-se (FP-Future-se): conjunto de ativos de natureza
privada instituído, gerido e administrado pela organização gestora de fundo patrimonial,
com o intuito de constituir fonte de recursos de longo prazo, a partir da
preservação do principal e da aplicação de seus rendimentos; e XVI – Fundo
Soberano do Conhecimento (FSC): fundo de investimento específico, multimercado,
constituído a partir da integralização de diversos ativos financeiros,
inclusive imobiliários, com a finalidade de geração de receitas para alocação
nas ações de fortalecimento do programa, assim compreendidas. A novilíngua do
mercado neoliberal. Não se faz necessário ser mais explícito!!!

O “Livro branco da
Comissão das Comunidades Europeias” resume bem essa tendência a crescente
privatização da educação pública: “Há consenso entre os Estados-membros sobre a
necessidade de maior envolvimento do setor privado nos sistemas de educação
e/ou formação profissional e na formulação das políticas de educação e formação
para atender às necessidades do mercado e das circunstâncias locais, por
exemplo, sob a forma de incentivo à colaboração das empresas com o sistema de
educação e formação e à incorporação da formação continuada nos planos
estratégicos das empresas”
[10].

É necessário
lembrar que as pesquisas sobre Ensino Superior no Brasil têm demonstrado os
esforços de governos e agentes econômicos em “ajustar” as universidades brasileiras
as recomendações de organismos internacionais como o Banco Mundial. Segundo
Olgaíses Cabral Maues: “As mudanças que vêm ocorrendo nas instituições de
ensino superior têm mudado suas finalidades, objetivos, missão, formas de
gestão, de financiamento e avaliação. Há uma grande preocupação em aproximar as
instituições brasileiras do modelo de internacionalização desenhado pelos
organismos internacionais, cujos objetivos centrais podem levar a uma
privatização do conhecimento, por meio da constituição de um saber que esteja
voltado para a valorização do capital”
[11].

O neoliberalismo,
como denunciaram Pierre Dardot e Christian Laval [12] em sua obra seminal sobre o neoliberalismo, a Nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade
neoliberal
(Boitempo), não é apenas uma ideologia, um tipo de política
econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro,
estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas
da vida. Assim, a esfera da educação não podia, infelizmente para todos nós,
sair incólume desta “nova razão do mundo”.

Segundo Laval “A
ideologia do livre mercado encontrou como terreno clássico de aplicação os
Estados Unidos e a Inglaterra, antes de se espalhar pelo mundo. Ronald Reagan,
em seu programa eleitoral de 1980, prometia desregulamentar a educação pública,
extinguir o Departamento Federal de Educação e acabar com o busing
(miscigenação escolar). As escolas se transformariam em empresas com fins
lucrativos, na medida em que a eficiência do mercado melhoraria o acesso à
educação e a qualidade do ensino, livrando-as do peso das regulações
burocráticas e dos sindicatos” [13]. Grifamos. Como
já constatou Laval, no Brasil, o neoliberalismo na educação está maciçamente
presente nos vários níveis educacionais, com a emergência de grandes grupos a
partir da década de 90 do século passado. Agora, com o Future-se, procura-se
cumprir o desígnio de Reagan para os EUA, transformando as Universidades
brasileiras em empresas com fins lucrativos.

O Future-se, ao
contrário da pomposa e eufemística alcunha, representa um atraso no projeto de
construção de uma sociedade do conhecimento, que seja plural, inclusiva,
democrática e pública, com ensino gratuito de qualidade. Propõe-se a vencer
batalhas já vencidas, uma vez que muito do que preconiza como luminosa novidade
está mais para “um museu de grandes novidades”, uma vez que faz parte do
cotidiano das Instituições de Ensino Superior há muito tempo, consolidado por
uma experiência e uma expertise já assentadas.

Entendemos que se
faz necessária a discussão e novas formas de financiamento e investimentos em
nossa tão importante educação pública. Todavia, não nos parece desejável que
tais financiamentos e investimentos venha da iniciativa privada, em razão de
todos os inconvenientes que daí resultariam. Também não nos parece razoável
propor um Programa que altera de forma tão radical a gestão administrativa e
financeira das IFES sem que a comunidade acadêmica e a sociedade civil
organizada deem a sua parcela de contribuição na formulação de tal programa.

Como conclui a
UFVJM, em seu Relatório: “Portanto, o Future-se constitui-se na continuidade da
minimização do estado. O foco nas Universidades Públicas e instituições de
ensino superior públicas federais revela a desobrigação do Estado com a
equidade e com as políticas afirmativas de direito, à medida que exclui e omite
em todo o seu texto qualquer intenção de garantir políticas assistenciais
estudantis. Via omissão e exclusão no texto da assistência social estudantil,
se reafirma o papel elitista que historicamente marca a educação superior no
Brasil” [14].

*Carlos
Eduardo Araújo
é professor
universitário e mestre em Teoria do Direito pela PUC-SP.

Notas

[1] MONTAÑO, Carlos. O CANTO DA
SEREIA: crítica à ideologia e aos projetos do “Terceiro Setor”. Carlos Montaño
(Org.). Cortez, 2014.

[2] LAVAL, Christian. A Escola não
é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino Público. Boitempo, 2019.

[3] Relatório da UFVJM. In: Dossiê
sobre o Programa FUTURE-SE do Governo/MEC e suas Implicações para a
Universidade e Sociedade. Agosto/2019. Disponível em https://gtfuturese.paginas.ufsc.br/files/2019/08/Dossie%CC%82-FUTURE-SE-ufba.pdf. Acesso em: 06 de jan. 2020.

[4] FUTURE-SE:
uma análise preliminar da administração da Universidade Federal de Pelotas. In:
Dossiê sobre o Programa FUTURE-SE do Governo/MEC e suas Implicações para a
Universidade e Sociedade. Agosto/2019. Disponível em https://gtfuturese.paginas.ufsc.br/files/2019/08/Dossie%CC%82-FUTURE-SE-ufba.pdf. Acesso em: 06 de
jan. 2020.

[5] Análise, Reflexões e Questões
Acerca do Projeto de Lei de Programa FUTURE-SE. Agosto/2019.
Disponível em https://www.ufpr.br/portalufpr/wp-content/uploads/2019/08/UFPR-FUTURE-SE.pdf. Acesso em:
06 de jan. 2020.

[6] MONTAÑO, Carlos.
O CANTO DA SEREIA: crítica à ideologia e aos projetos do “Terceiro Setor”.
Carlos Montaño (Org.). Cortez, 2014.

[7] LAVAL, Christian.
A Escola não é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino Público.
Boitempo, 2019.

[8] LAVAL, Christian.
A Escola não é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino Público.
Boitempo, 2019.

[9] LAVAL, Christian.
A Escola não é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino Público.
Boitempo, 2019.

[10] LAVAL,
Christian. A Escola não é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino
Público. Boitempo, 2019.

[11] MAUÉS, Olgaíses Cabral.  Ensino superior na ótica dos organismos
internacionais.     In: Dossiê sobre o
Programa FUTURE-SE do Governo/MEC e suas Implicações para a Universidade e
Sociedade. Agosto/2019. Disponível em https://gtfuturese.paginas.ufsc.br/files/2019/08/Dossie%CC%82-FUTURE-SE-ufba.pdf. Acesso em: 06 de
jan. 2020.

[12] DARDOT, Pierre e
LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal.
Boitempo, 2016.

[13] LAVAL,
Christian. A Escola não é um Empresa: O Neoliberalismo em ataque ao Ensino
Público. Boitempo, 2019.

[14] Relatório da
UFVJM. In: Dossiê sobre o Programa FUTURE-SE do Governo/MEC e suas Implicações
para a Universidade e Sociedade. Agosto/2019. Disponível em https://gtfuturese.paginas.ufsc.br/files/2019/08/Dossie%CC%82-FUTURE-SE-ufba.pdf. Acesso em: 06 de
jan. 2020.

Future-se: O canto da sereia – 11/02/2020 – 1/1
© 2025 A Terra é Redonda. Todos direitos reservados. ISSN 3085-7120.