Gaza – o intolerável

Imagem: Efrem Efre
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Por GEORGES DIDI-HUBERMAN*

Quando Didi-Huberman afirma que a situação de Gaza constitui “o insulto supremo que o atual governo do Estado judaico inflige àquilo que deveria continuar sendo seu próprio fundamento”, expõe a contradição central do sionismo contemporâneo

Gaza ou o intolerável. Há meses, e a cada dia mais, diríamos. Essa situação é duas, três, mil vezes intolerável. Em primeiro lugar, é claro, humanamente, pelo que a população civil está sofrendo, esmagada sob as bombas de um exército que, no estilo americano, acredita que pode “erradicar” (ou seja, arrancar uma raiz das profundezas do solo) destruindo indiscriminadamente tudo o que está na superfície (casas, hospitais, mulheres e crianças, jornalistas, motoristas de ambulância, trabalhadores humanitários…).

A situação também é politicamente intolerável, pois as vozes sem nome que se levantam contra ela revelam-se desesperadamente impotentes, já que as bombas americanas continuam sendo entregues e usadas no local. Benjamin Netanyahu não ouve mais – e há muito tempo – o mundo ao seu redor: surdez tática, profundamente cínica, mas também suicida no fundo, apocalíptica e, portanto, reduzindo a nada qualquer possibilidade de uma solução política para esse conflito.

Tudo isso é bem conhecido, mesmo que seja necessário repetir. Há, no entanto, um terceiro aspecto dessa situação intolerável: um aspecto psíquico, eu diria, que afeta particularmente os judeus da diáspora. Aqueles que nunca sonharam com qualquer tipo de império, apenas com uma vida cidadã no país, seja ele qual for, onde escolheram viver. Aqueles que não colocam sua existência judaica no cadinho de um Estado. Eles carregam em suas costas, é verdade, esse enorme fardo chamado história, reunido em massas ou pilhas mais ou menos bem acomodadas nos meandros psíquicos de sua memória.

Em 1893, Henry Meige, aluno de Jean-Martin Charcot no hospital Salpêtrière, publicou uma tese médica sobre o que ele chamou de “síndrome do judeu errante”: tratava-se, em muitos casos, de migrantes sem-teto que tinham fugido dos pogroms da Europa Oriental e enlouqueceram por terem atravessado tantas provações. Eles podiam ser reconhecidos nas ruas de Paris pelas enormes trouxas que carregavam nos ombros, cheias de objetos desgastados, variados, inúteis, mas sentimentais.

Quatro décadas depois, após a ascensão de Hitler ao poder, aqueles que não sucumbiram à perseguição nazista tornaram-se, por sua vez, migrantes que suportaram condições de vida miseráveis e a privação de direitos para muitos, incluindo grandes intelectuais como Hannah Arendt, que fez uma análise rigorosa dessa situação num texto agora famoso intitulado Nós, refugiados (1943).

O resto de nós, hoje em dia, certamente não somos mais judeus refugiados, mas cidadãos livres – mais ou menos livres – vivendo num país cujas leis supostamente nos protegem da secular síndrome antissemita. Não estamos diretamente em guerra, nem vivendo no medo cotidiano, nem somos prisioneiros, nem famintos, nem reféns de ninguém. Lá, ainda há reféns mantidos pelo Hamas, e não sabemos quantos sobrevivem, quantos sobreviverão. Há toda uma população de Gaza refém de vinganças sem fim. Não somos, portanto, em comparação com tudo isso, reféns de ninguém aqui.

Mas a situação intolerável em Gaza nos lançou em algo como uma paralisia de espanto, uma vergonha abissal, sinal de nosso estrangulamento numa prensa moral. Nem perseguidos, nem refugiados, nem prisioneiros, somos, no entanto, reféns psíquicos da situação criada pela história recente – mas, na verdade, há muito tempo em formação – dessa região do Oriente Médio. Diante dessa situação, que não é de hoje, algumas grandes mentes, como Pierre Vidal-Naquet ou Jérôme Lindon, contribuíram, por meio do passado, a aliviar o estrangulamento moral.

Zakhor”, “recorda-te”

Hoje, infelizmente, temos que recomeçar tudo de novo. Temos que reiterar que o peso da história sobre os nossos ombros é uma coisa, e a questão de saber o que fazer com ela é outra. Zakhor, “recorda-te” em hebraico. Lembre-se e terá uma melhor compreensão de sua existência presente e de como encarar seu futuro.

Mas o que, como e para que rememorar? Que desejo emerge dessa memória, consoante o uso que dela se faz? Luto sem fim ou utopia emancipatória? Paranoia obstinada (o outro visto apenas da perspectiva do medo odioso) ou possibilidade de uma relação ética a ser reimaginada, recomeçada?

Em suma, aqui estamos, apesar de tudo, reconduzidos à situação que Hannah Arendt, na abertura de seu livro A crise da cultura, resumiu num aforismo emprestado de René Char: “Nossa herança não é precedida de qualquer testamento”. Esta desorientação, no entanto, não deveria ser aproveitada por ninguém para nos transformar em reféns psíquicos.

Com Gaza diante de nossos olhos, de que queremos nos lembrar para compreender, se possível, a infernal lógica histórica? Lembramo-nos espontaneamente de Alepo bombardeada pelas forças de Bashar Al-Assad e pela aviação de Vladimir Putin; revemos Mariupol e suas ruínas a perder de vista. E sentimos vertigens e náuseas ao rever de repente o gueto de Varsóvia sistematicamente destruído pelos nazistas, queimado casa a casa com tudo o que restava de sua população entre abril e maio de 1943.

É uma aproximação tão óbvia de se fazer quanto difícil de se aceitar em termos da história judaica e de sua ética. Se há alguma legitimidade, ela traz consigo um corolário muito simples: a situação em Gaza – um “enclave”, diz-se, ou seja, um gueto esfomeado, bombardeado e à beira da liquidação – constitui, de fato, o insulto supremo que o atual governo do Estado judaico inflige àquilo que deveria continuar sendo seu próprio fundamento antropológico, moral e religioso. Refiro-me ao seu mais ancestral mandamento bíblico: Zakhor – a própria memória judaica.

Assim, a primeira coisa a ser lembrada é que a atual violência do exército israelense contra a população civil palestina tem sua própria tradição política: ela remonta ao movimento cujo efeito deletério o Partido Trabalhista – fundador do Estado de Israel – não conseguiu evitar ao longo do tempo.

Netanyahu é, afinal, o discípulo zeloso de Menachem Begin [primeiro-ministro de 1977 a 1983], já qualificado de “fascista” por David Ben-Gurion e Hannah Arendt na época do massacre de Deir Yassin, em 1948, e depois por Primo Levi na época dos massacres de Sabra e Shatila, em 1982. Begin que, como sabemos, não era mais do que um discípulo de Vladimir Jabotinsky, autor de A Muralha de Ferro em 1923, fundador do “Partido Sionista Revisionista”, de uma “Legião Judaica” e depois do Betar [movimento juvenil sionista de extrema-direita], que treinou, na época de Mussolini, no campo fascista de Civitavecchia.

O fascismo espelhado

Posso facilmente imaginar que muitos oficiais do Tsahal [Forças de Defesa de Israel] se lembram desde a infância do que seus próprios avós sofreram sob o nazismo. Esta declaração de um deles, em 25 de janeiro de 2002, no jornal Haaretz, é ainda mais avassaladora e sintomática de uma inversão da memória que passa da compaixão pelos civis massacrados do gueto a uma preocupação pragmática com a técnica militar dos próprios assassinos em massa: “É justificado e até mesmo essencial aprender com todas as fontes possíveis. Se a missão é apoderar-se de um campo de refugiados densamente povoado ou tomar a cidadela de Nablus, e se a obrigação do comandante é tentar executar a missão sem vítimas de ambos os lados, ele deve primeiro analisar e interiorizar as lições de batalhas anteriores – e até mesmo, por mais chocante que possa parecer, a forma como o exército alemão lutou no gueto de Varsóvia”.

Esta inversão da memória aperta-nos o coração, envergonha-nos, revolta-nos. Mas ela não caracteriza a criação do Estado de Israel, nem a tradição democrática de suas instituições fundamentais, nem o apelo à justiça – a intensidade das manifestações de rua em Telaviv e as tomadas de posição, aqui e lá, testemunham isso – de uma parte de sua população. Por conseguinte, ela não autoriza de modo algum a aberrante inversão agitada por aqueles que gostariam de transformar os palestinos em “novos judeus” e os judeus em “novos nazistas”.

Mas este tipo de inversão é necessário quando nos abandonamos à política paranoica e à simples vontade de vingança, ou seja, a uma rivalidade mimética. Então, o ódio ao outro sobrepõe-se a tudo (imagino Emmanuel Levinas revirando-se no túmulo, como se costuma dizer) e acaba-se utilizando as mesmas armas políticas de seu inimigo. Assim, lutar contra uma organização islamo-fascista é uma tarefa que não deve dar origem a este tipo de fascismo espelhado, movido por um espírito de conquista colonial e de dominação absoluta, que a população civil de Gaza, privada de uma verdadeira representação política, sofre há tanto tempo.

Parece que os estrategistas do Tsahal são muito inteligentes. Devem certamente saber como combater uma organização terrorista sem ter que matar de fome e massacrar tantos civis com bombas, a menos que sirvam de instrumentos num projeto de erradicação para o qual, que eu saiba, não foram treinados em suas escolas militares. Mas hoje é o projeto de um oportunista político e de alguns teocratas, esses fundamentalistas religiosos absorvidos em seu assustador ativismo messiânico, em sua fantasia do “Terceiro Templo” ou em sua perspectiva colonial do “Grande Israel”.

Ao agirem desta forma, os soldados do exército israelense estão apenas insultando a memória de sua própria genealogia, de sua própria tradição ética e religiosa que remonta a vinte e sete séculos. Se existe hoje alguma esperança, ela está nos manifestantes de Telaviv que também brandem imagens de crianças de Gaza, ou nas centenas de soldados que se recusam a combater porque compreendem a aberração humana e política que é assassinar seus – nossos – próprios primos em nome de Abraão, o pai de Ismael.

Georges Didi-Huberman é professor da École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Autor, entre outros livros, de Diante da imagem (Editora 34).

Tradução: Fernando Lima das Neves.


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