a terra é redonda

Geopolítica do genocídio em Gaza

Por VALENTINA TABERNA*

Considerações sobre o livro recém-lançado de Martín Martinelli

1.

Martín Martinelli, acadêmico com mais de duas décadas de experiência no estudo da Afroeurasia, aborda o estudo da Palestina em seu primeiro livro, Palestina (e Israel) entre intifadas, revoluções e resistências (2022, EdUNLu, Argentina; 2024, El Viejo Topo, España). Este trabalho, fruto de sua tese de doutorado, constitui uma valiosa contribuição à análise do conflito palestino-israelense, que é reforçada por Geopolítica do genocídio em Gaza, seu segundo livro aqui resenhado, onde o autor introduz diversas categorias para realizar uma análise mais específica do contexto a partir dos eventos de 2023.

Assim, enquanto o primeiro trabalho aborda as forças estruturais que promoveram o projeto colonial-colonial denominado Israel em terras palestinas e seu papel na manutenção da hegemonia ocidental, em Geopolítica do genocídio em Gaza, ele enfatiza conceitos-chave como genocídio, apartheid, resistência, transição hegemônica e Guerra Situada Híbrida Global (GGHS), que inclui meios militares, econômicos, cognitivos e informacionais.

Não obstante o exposto, o autor concilia sua pesquisa com o trabalho docente em disciplinas como História Contemporânea e História da Ásia e da África na Universidade Nacional de Luján (UNLu), bem como com sua participação na Cátedra Livre Edward Said de Estudos Palestinos na Universidade de Buenos Aires (FFyL-UBA).

Ele também atua como coordenador do Grupo “Palestina e América Latina” do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) por el Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe de la UBA (IEALC-UBA) e a partir de sua atuação no Observatório Geohistórico da Universidade Nacional de Luján (OGH-UNLu).

Ele também promoveu e continua promovendo espaços de divulgação e debate crítico, como o Observatório Geohistórico Coordenadas (@CoordenadasCanal), que questionam as narrativas hegemônicas da mídia e algumas interpretações no âmbito acadêmico. Nesses espaços, o autor e sua equipe mantêm uma postura abertamente antisionista, anti-imperialista e anticapitalista, alicerçada em uma rigorosa fundamentação teórica e histórica.

2.

Geopolítica do genocídio em Gaza está organizado em cinco capítulos temáticos. Reúne as vozes de importantes especialistas no estudo da Ásia e da África, expressas no prólogo escrito por Vijay Prashad, na introdução de Susana Murphy e no epílogo de Guadi Calvo, que enquadram e enriquecem as contribuições de Martín Martinelli. A participação desses especialistas não apenas contextualiza o texto, mas também garante a excelência do livro como um todo.

O trabalho tem início com os eventos de 7 de outubro de 2023, quando o Hamas realizou a operação conhecida como “Inundação de Al Aqsa”, um ataque significativo contra Israel que afetou diversas regiões do território. Esse evento, para além das múltiplas interpretações que suscitou, constitui um marco com implicações de longo alcance sob pelo menos duas perspectivas.

Primeiro, evidenciou um realinhamento na representação política palestina, com o Hamas emergindo como ator central, articulando interesses imediatos em relação ao Estado israelense. Segundo, ao contrário do que se poderia especular sobre o uso do discurso por Israel para reforçar sua legitimidade internacional – em analogia aos ataques de 11 de setembro nos EUA – a opinião pública demonstrou mudanças. Esse evento demonstrou uma maior disposição para analisar as ações do Hamas sob perspectivas que transcendem os arcabouços ideológicos da chamada Guerra Global contra o Terrorismo (GWOT), posicionando a questão palestina como tema central nas agendas internacionais.

Antes de me aprofundar no conteúdo da obra, farei uma observação relacionada a algumas características que o leitor poderá apreciar e que se referem a três áreas fundamentais nas quais o livro se articula, as quais, ao mesmo tempo, refletem a influência de renomados estudiosos relevantes para a formação do autor.

A primeira delas corresponde às contribuições de Susana Murphy (1995, 2003, 2005, 2006, 2007, 2014), que desenvolveu estudos em torno da historiografia da alteridade. Essa abordagem fica evidente na análise que Martín Martinelli faz da construção intelectual dos “inimigos da civilização ocidental” desde a Guerra Fria até os dias atuais, atribuindo um sentido pejorativo a categorias como “comunista”, “árabe”, “muçulmano” e “oriental”.

Esses estereótipos justificam ações imperialistas, que são examinadas por meio da tese de Cláudio Katz (2022), cujo arcabouço teórico permite uma hierarquização dos países atores globais e regionais de acordo com sua capacidade de influência. Assim, o economista argentino conceitua o imperialismo como um sistema baseado na transferência de recursos das periferias para o centro, sustentado por relações de dominação política, econômica e, fundamentalmente, militar. Essas variáveis são oferecidas por Martinelli, que em sua obra destaca diferentes esferas de poder.

A terceira área de influência observável está ligada ao trabalho do geógrafo Gejo (2022), que, juntamente com sua equipe, introduziu a noção de “retorno da geografia” como uma crítica à suposição de um mundo homogêneo produzido pela globalização.

Ele argumenta que os espaços, longe de serem cenários passivos, refletem e condicionam as relações sociais e políticas, tornando-se a materialização de processos históricos. Martinelli incorpora visivelmente essa abordagem para analisar a questão palestina de uma perspectiva geopolítica, enquadrando o conflito na dinâmica da distribuição territorial do poder global. Assim, sua análise transcende visões tradicionais e particularistas, fornecendo uma interpretação abrangente que conecta história, política e geografia.

3.

No contexto do declínio da unipolaridade — evidenciado, por exemplo, na recuperação da Eurásia ou no início de um processo de desdolarização das relações comerciais, em transição para um mundo multipolar —, Martín Martinelli nos oferece uma obra com abordagem multidisciplinar que nos permite analisar não apenas o conflito palestino-israelense, mas também as transformações geopolíticas contemporâneas e seu impacto nas relações internacionais.

Cada capítulo oferece uma análise detalhada que conecta processos históricos, dinâmicas de poder, estratégias de dominação e resistência, fornecendo ao leitor ferramentas conceituais para interpretar os processos atuais.

No primeiro capítulo, Martín Martinelli contextualiza a análise situando o leitor nos eixos fundamentais que estruturam sua obra: a política genocida de Israel na Palestina, as mudanças globais e o papel dos intelectuais nos processos de dominação. Utilizando o conceito de GGHS, ele descreve como, desde 2014, surgiram novas formas de confronto associadas à transição hegemônica global.

Nesse contexto, ele aponta para o declínio relativo do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, e a ascensão de potências como China e Rússia, juntamente com o Irã, liderando o que o autor chama de “eixo da resistência”. Assim, este capítulo estabelece um arcabouço teórico e conceitual que nos permite abordar essas dinâmicas a partir de uma perspectiva crítica e geopolítica.

O segundo capítulo analisa como, após o fim da Guerra Fria, não se instaurou uma era de paz, como alguns afirmam, mas sim uma nova configuração do expansionismo estadunidense, particularmente na Afro-Eurásia. Martinelli enfatiza as estratégias militares estadunidenses, vinculadas a interesses econômicos relacionados a recursos como petróleo e gás, e ao controle de rotas comerciais estratégicas. A Afro-Eurásia, então, emerge como o palco central onde as tensões da nova ordem multipolar são resolvidas, sendo a zona global de infiltração da violência na qual o poder estadunidense se apoiava.

No terceiro capítulo, Martín Martinelli introduz o conceito de “hiperimperialismo” para analisar a fase atual do sistema global. Nesse modelo, os Estados Unidos, apesar de seu declínio econômico, intensificam seu emprego militar para preservar sua hegemonia diante do ressurgimento da Eurásia. Esse imperialismo contemporâneo é caracterizado pelo controle econômico baseado em monopólios estratégicos, apoiado por ameaças de guerra e pelo uso da força, enquanto os ciclos de acumulação econômica se deslocam para o Leste Asiático.

Nesse ponto, o autor destaca como as guerras se tornaram um mecanismo central de acumulação para os Estados Unidos, em uma análise que coincide com os estudos de Martínez Monterrosas e Russo (2024). Esses pesquisadores enfatizam que o complexo militar-industrial dos EUA fomenta alianças estratégicas, particularmente com Israel, um de seus principais beneficiários.

Segundo esses historiadores, os subsídios e a ajuda militar dos EUA permitiram que Israel se consolidasse como um dos principais exportadores de armas e tecnologia de espionagem, além de ser o único país da região com capacidade nuclear, aspectos que fazem parte da base argumentativa da obra de Martín Martinelli.

4.

O quarto capítulo concentra-se na Palestina, explorando como a atual crise em Gaza reflete as tensões de um mundo em transição. O historiador argentino caracteriza Israel como um bastião do imperialismo ocidental, cujas políticas incluem apartheid, limpeza étnica, judaização e memorialização — práticas justificadas por narrativas bíblicas que conectam o povo judeu à terra palestina. O autor categoriza o Estado sionista de Israel como colonialismo de povoamento, no contexto de um projeto que visa eliminar os palestinos e consolidar o domínio territorial.

O quinto e último capítulo de Martín Martinelli analisa a operação “Inundação de Al-Aqsa”, de 7 de outubro de 2023, como um ponto de inflexão. Esse evento não apenas destruiu o mito da invencibilidade israelense, mas também reposicionou a luta palestina na agenda global e questionou as alianças estratégicas de Israel na região.

O autor alcança essa relevância ao enquadrar o conflito como um genocídio colonial e um sistema de apartheid, redefinindo a luta como uma disputa entre um movimento ocupante e um povo nativo. Isso permite uma análise do Hamas para além dos marcos tradicionais, apresentando-o como uma organização política, social e de guerrilha cujo objetivo principal é libertar a Palestina do colonialismo por meio da resistência anticolonial, que o autor compara ao Vietnã ou à Argélia.

Para dissociar o Hamas da Guerra Global contra o Terrorismo na mente do leitor, o livro oferece interpretações que desafiam as narrativas hegemônicas. Martín Martinelli detalha os motivos por trás do “Dilúvio”: reafirmar a primazia da luta palestina, garantir a libertação de presos políticos e sabotar a reaproximação entre Israel e a Arábia Saudita, além da violência dos colonos na Cisjordânia e da agressão a Gaza, considerada pelo autor como o maior infanticídio do século, destacando o fracasso da ordem internacional ocidental e a propensão à resistência que desafia a hegemonia estabelecida.

A Geopolítica do genocídio em Gaza é um livro que ressoa com a urgência dos tempos em que vivemos: a urgência de ser escrito e lido. Aborda um mundo em transformação, onde o Ocidente enfrenta um declínio irreversível, enquanto a Eurásia recupera sua posição histórica de hegemonia. Nesse contexto, o imperialismo estadunidense se apega ao seu domínio militar, intensificando as intervenções militares na região.

Este segundo livro de Martín Martinelli reflete uma maturidade intelectual manifesta na aplicação de conceitos que transcendem barreiras temporais e espaciais. De uma perspectiva geo-histórica e geopolítica, o autor integra recortes temporais de curto, médio e longo prazo para contextualizar o presente em relação a processos históricos mais amplos.

Nessa abordagem, a Palestina não aparece como uma vítima passiva, mas como um ator que desafia lógicas tradicionais de resistência, contestando espaços materiais e simbólicos. O autor demonstra que o colonialismo ocidental, embora histórico e ultrapassado, permanece vigente e encontra na Palestina uma oposição que resiste à subsunção.

5.

A obra se desenvolve no marco da decolonialidade, embora seu autor não a afirme explicitamente. Diferentemente de seu primeiro livro, que se concentrou predominantemente na exposição de fatos históricos para compreender a ocupação da Palestina, aqui o autor avança para uma análise crítica que questiona as cronologias ocidentais.

Essa abordagem denuncia como a modernidade, concebida como sinônimo de democracia e progresso, trouxe consigo processos desumanizadores para os povos colonizados. Martín Martinelli insiste em utilizar ferramentas cronológicas que permitam interpretar a história a partir da perspectiva desses povos, desmantelando a centralidade ideológica e cultural que o Ocidente impôs como universal.

Nesse sentido, o uso de categorias como “Afroeurasia” também faz parte desse arcabouço discursivo e reforça a coerência de Martín Martinelli na nomeação de espaços que desafiam a hegemonia europeia. Essa região, concebida como uma totalidade histórica interconectada, é apresentada como um contraponto ao arcabouço tradicional que periferiza o Sul Global.

A excepcionalidade histórica da centralidade europeia é diluída em uma análise em que as palavras não são impostas artificialmente, mas emergem como ferramentas naturais do discurso crítico. Esse uso consciente da linguagem reforça a clareza argumentativa do autor, evitando ambiguidades e garantindo ao leitor a compreensão da relevância de cada categoria.

Esta resenha também destaca que o livro aborda o impacto do genocídio em Gaza sob uma perspectiva de gênero, sem que Martín Martinelli utilize categorias dessa corrente interpretativa. Ao analisar os assassinatos de mulheres e crianças, ela demonstra que o objetivo não é apenas impedir a reprodução biológica do povo palestino, mas também gerar um impacto emocional e social que resulte em uma redução intencional da taxa de natalidade.

Ao incorporar as noções de infanticídio, crimes de gênero e controle de natalidade bélico à análise como estratégias deliberadas de extermínio, ela abre caminhos para interpretações feministas mais profundas da questão palestina.

Assim, a partir do Sul Global, Martín Martinelli aborda a resistência palestina a partir da afirmação de seu direito à defesa e à soberania. Essa abordagem tem uma particularidade especialmente compreensível para pessoas com experiência colonial: a interpretação da legitimidade do uso da violência. Nesse sentido, a Operação Al-Aqsa Flood serve como pretexto para explorar os imaginários e as contradições da resistência de povos como a Palestina, questionando a exclusividade do Ocidente no controle do poder coercitivo.

Martín Martinelli não busca glorificar a violência como método; na verdade, grande parte da argumentação da obra se baseia em leis, tratados e declarações de organizações internacionais, mas sim na reflexão sobre os contextos em que a violência ocorre e os direitos que dela emergem.

Considerando o exposto, esta revisão sugere que as diretrizes mencionadas oferecem uma oportunidade para pesquisas futuras, com foco mais específico nas teorias decoloniais e de gênero. Isso fortaleceria a contribuição do trabalho para esses campos de estudo e abriria novos caminhos para o diálogo acadêmico, permitindo uma análise mais aprofundada de como dinâmicas de poder, papéis de gênero e experiências específicas se interseccionam com o contexto colonial e genocida.

Da mesma forma, ao contextualizar a obra em torno das ações de 7 de outubro de 2023 e destacar, seguindo Enzo Traverso (2024), que a luta armada é uma das ferramentas dos fracos em guerras assimétricas, o autor deixa em aberto outro campo de análise acerca das controvérsias que surgem da discussão sobre a resistência armada.

Um aprofundamento maior nessa questão poderia, em pesquisas futuras, levantar a questão dos dilemas morais da resistência em contextos de opressão colonial ou as diferenças entre a violência dirigida a civis desarmados e aquela que afeta colonos militarizados.

A Geopolítica do genocídio em Gaza não é apenas um livro de história. É uma obra que condensa a ação política de uma geração de acadêmicos comprometidos com as lutas e resistências mais urgentes da humanidade. Estudar a Palestina sob uma perspectiva decolonial implica questionar a ordem atual e decadente, que também inclui os movimentos de extrema direita que ameaçam nossos países, e aproveitar a oportunidade histórica para construir um conhecimento acadêmico enraizado nas realidades materiais do Sul Global.

A segunda obra de Martinelli é um exemplo de como categorias analíticas podem ser transformadas em ferramentas para contestar narrativas, abrindo também uma infinidade de tópicos e campos de pesquisa, deixando claro ue ainda há muito a ser explorado.

*Valentina Taberna é professora de história na Universidade Nacional de Luján.

Referência


Martín Martinelli. Geopolítica do genocídio em Gaza. Buenos Aires, Editorial Batalla de Ideas, 2025, 224 págs.

Bibliografia


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Martínez Monterrosas. I., Russo. E. (2024) Desinformação, comércio de armas e reconfiguração global: a justificativa ocidental para o genocídio na Palestina. Revista Zero 44, Universidade Externado da Colômbia. https://zero.uexternado.edu.co/desinformacion-negocio-armamentistico-y-reconfiguracion-mundial-la-justificacion-occidental-del-genocidio-en-palestina/

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Traverso, E. (2024) Gaza antes da história, Buenos Aires, Akal.


CONTRIBUA

Geopolítica do genocídio em Gaza – 31/07/2025 – 1/1
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