Gestão do SUS: o que fazer? – III

Imagem: Hospital de Campanha da Força Nacional do SUS montado na ULBRA/ Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil
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Por FRANCISCO BATISTA JÚNIOR*

As soluções a serem apresentadas para o SUS antes de representarem uma rendição à lógica privada e do mercado, deve significar exatamente o contrário

Nesta terceira e última parte deste artigo, analiso os conflitos derivados do que propôs historicamente o movimento da Reforma Sanitária, confrontando o que foi proposto com a realidade atual da gestão do SUS e as alternativas legais e compatíveis com a Reforma Sanitária, para recolocar o SUS no caminho de onde não deveria ter sido desviado.

A reforma sanitária e a gestão do SUS

O SUS enfrenta o seu mais difícil momento na sua ainda relativa curta história, está definitivamente em xeque e as dificuldades apontadas, que são reais, são fruto de todo esse processo de desconstrução conceitual, jurídica e política. A citada permanente crise nos hospitais federais do Rio de Janeiro, que analisei na segunda parte deste artigo, agora num momento agudo, é um exemplo clássico do que discorremos até agora.

É fundamental afirmarmos que nenhuma forma de gestão no SUS dará os resultados que esperamos e necessitamos se num curto prazo não fizermos o enfrentamento com o atual modelo de atenção, que retroalimenta inexoravelmente a demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo e não fortalecermos a rede estatal SUS, de modo a diminuirmos sobremaneira a dependência do setor privado contratado, eixos vitais onde as corporações e grupos econômicos organizados se alimentam e se fortalecem.

Necessitamos também desprecarizar e valorizar a força de trabalho bem como ampliar o financiamento do SUS alterando sua atual lógica, substituindo o equivocado pagamento de programas verticalizados e de procedimentos, pelo estabelecimento de metas a serem estabelecidas de acordo com a realidade e as necessidades de cada local.

Por outro lado, defender OS, OSCIP, fundação “estatal”, Serviço Social Autônomo e EBSERH afirmando que “saúde não é atividade típica de Estado e que apenas necessita de fiscalização, regulamentação e controle, que o privado é complementar e que com salários de mercado cooptará determinados profissionais”, é de uma violência com os princípios da Reforma Sanitária e desconhecimento da legislação (Art.197 da Constituição Federal) e da realidade do SUS, que não podemos conceber num debate sério onde o objetivo seja o fortalecimento do Sistema.

Além disso, a postura agressiva dos defensores da proposta, revisionistas que se identificam como progressistas e históricos da Reforma Sanitária, ao mesmo tempo em que acusam quem é contrário de “corporativista, que não têm propostas e de conivência com as distorções” que diga-se, são reais e as denunciamos, se não é má fé, apenas revela a falta deliberada de debates com o contraditório e esconde um fato contundente e elucidativo: essas propostas unificam sim, todos os setores conservadores anti-SUS do nosso país, mas divide claramente toda a militância da Reforma Sanitária que se tivesse sido ouvida, teria apresentado alternativas como as que seguem.

Sobre autonomia e “engessamento”

Diante da frágil argumentação de que a modalidade fundação “estatal” e congêneres promovem autonomia e flexibilidades gerenciais e administrativas para bem gerir os serviços públicos de saúde, ante um estado “pesado”, “burocrático” e “engessado”, citamos a nossa Carta Maior que não deixa qualquer dúvida a respeito do tema, bastando apenas regulamentá-la sem a necessidade de criação nem intermediação de qualquer outro instrumento jurídico.

Constituição Federal, art. 37, Inciso XXI, § 8º

“A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha como objetivo a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:

I – o prazo de duração do contrato;

II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;

III – a remuneração de pessoal.

“Quem tem motivação para contratar deve ter para demitir”

Frente à argumentação conservadora, recorrente e insustentável de que “a estabilidade do trabalhador em saúde é um mal e beneficia quem não quer trabalhar” e que “o trabalhador da saúde deve ter o mesmo tratamento que os trabalhadores do sistema financeiro ou do ramo petroquímico estatais” (como consta do documento divulgado pelo governo federal na época do debate sobre as Fundações “estatais”, na primeira década do século XXI), os quais, diga-se enfaticamente, merecem todo o nosso respeito, estranhamos e lamentamos a comparação rebaixada, desqualificada e oportunista com quem trabalha com a vida do seu semelhante e que necessita da estabilidade no emprego para a garantia plena do exercício profissional e do vínculo efetivo e afetivo, inclusive, profissional-serviço-cliente.

Lamentamos também que não sejam pautados os reais interesses políticos, fisiológicos e corporativos da atual majoritária lógica de gestão, que inviabilizam o sistema e que além de não serem enfrentados, também saem fortalecidos pela fundação “estatal” e congêneres, que estabelece dentre outros, a contratação e demissão de trabalhadores de acordo com a, tentemos entender, “necessidade de cada serviço”. Para nos contrapormos a isso recorremos outra vez à legislação vigente, o Regime Jurídico Único, que para qualquer bom entendedor é claro, cristalino e insofismável e que, sabemos muito bem, apenas necessita ser cumprido.

Regime jurídico único – Lei 8.112, art. 127

“São penalidades disciplinares: advertência; suspensão; demissão; cassação de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo em comissão; destituição de função comissionada”.

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: “crime contra a administração pública; abandono de cargo; inassiduidade habitual; improbidade administrativa; incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; insubordinação grave em serviço; ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; aplicação irregular de dinheiros públicos; revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio pessoal; corrupção; acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; transgressão dos incisos IX e XVI do art. 117”.

Dessa maneira, e para se ter uma ideia do período em que eles defendiam a criação das fundações estatais e criaram a EBSERH, no estrito cumprimento da legislação vigente, entre 2003 e outubro de 2010, o Governo Federal promoveu a demissão de 2.500 servidores. Foram 1.471 por uso indevido do cargo, 817 por improbidade administrativa e 257 por recebimento de propina. Tiveram a aposentadoria cassada, 177; e 223 foram destituídos de cargos de confiança.

Além disso, 243 foram expulsos por desídia, que são faltas leves agravadas pela repetição, e 406 por abandono de cargo. Essas punições alcançaram diretores, superintendentes, auditores e fiscais da Receita Federal, da Previdência e do Trabalho, procuradores e subsecretários de orçamento e administração (números e dados divulgados pelo próprio governo, no referido período).

Portanto, afirmar que a estabilidade é um mal em si, que permite que trabalhadores não cumpram com sua função dela se beneficiando, é uma falácia; significa negar a responsabilidade que cabe a gestores incompetentes e descompromissados e atentar contra um direito que ao trabalhador do serviço público em áreas fundamentais deve ser considerado como sagrado, qual seja a não vulnerabilidade a governos que utilizam o exercício do poder violentando os princípios constitucionais da moralidade, da legalidade e da impessoalidade.

Assim mesmo, defendemos que esse processo deva ser aperfeiçoado com a inclusão de outros elementos pertinentes como por exemplo, a avaliação periódica.

Mercantilização da modalidade fundação estatal e congêneres versus profissionalização da gestão do SUS

A atual forma de organização, estruturação e funcionamento do SUS, inclusive com uma nítida política de desvalorização e desestímulo salarial dos profissionais, além da lógica patrimonialista imposta por grupos políticos e corporações organizadas, promoveu não raro, gestões ineficientes e não resolutivas e uma efetiva e mortal, em se tratando de trabalho em saúde, mercantilização nas relações de trabalho.

Reiteramos energicamente que esta lógica não será revertida sem o fortalecimento do setor público estatal com vistas à superação da prática de estabelecimento de tetos financeiros e pagamentos de procedimentos e sem a priorização da prevenção executada pela equipe multiprofissional em saúde, com a finalidade de estancar o aumento geométrico da demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo.

Fundamental para nós nesse momento emergencial é não incrementar nenhuma proposta que possa institucionalizar, oficializar e tornar um caminho sem volta esse irracional e insustentável processo de mercantilização, que propõe o benefício de uns poucos em detrimento da grande maioria dos profissionais, como são os casos da fundação “estatal”, do Serviço Social Autônomo, dos “Parceiros Privados” e da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nesse sentido, defendemos outra vez, que a atual legislação, totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária, possa efetiva e definitivamente ser implantada.

Faz-se necessário, então, com esse objetivo:

(a) Profissionalizar e democratizar a gestão e a gerência dos serviços da rede SUS, através da regulamentação do inciso V do Art. 37 da Constituição Federal que estabelece que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.

Para além disso, um instrumento jurídico que defina critérios técnicos e de formação deve ser estabelecido e obedecido como referência para o preenchimento dos cargos em comissão de direção e gestão, contemplando as premissas de ser integrante dos quadros do SUS e do Serviço, com formação técnica adequada, tempo de atividade profissional e manifestação/participação dos trabalhadores.

A proposta é tornar a gestão do SUS e a gerência dos serviços da sua Rede imunes às indicações políticas, clientelistas e fisiologistas, priorizando e valorizando os critérios técnicos e implantando a gestão profissionalizada e democratizada.

(b) Criar e implementar um amplo Programa Nacional de Reestruturação e Fortalecimento da Rede Pública Estatal (ReestruturaSUS), nas três esferas de governo e de relação interinstitucional, na perspectiva de viabilizar uma ação intersetorial permanente, com ênfase nos aspectos relacionados ao emprego, renda e sua distribuição, combate à violência em todos os níveis, educação no trânsito, desenvolvimento sustentável, preservação do meio ambiente e uma proposta de acesso à educação pública em todos os níveis radicalmente qualificada e democratizada;

(c) Acesso ao serviço público através de concurso público com estabilidade no emprego e avaliação permanente, fundamental para se contrapor ao processo de descompromisso, desvinculação e leilão de remuneração profissional, como forma de construir uma relação que tenha como eixo fundamental o vínculo profissional-serviço-cliente;

(d) Criar uma Carreira Única, Nacional, Tripartite, Multiprofissional e Interfederativa para todos os trabalhadores do SUS, de acordo com as Diretrizes Nacionais do Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS) do SUS, pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite e construída obedecendo a um processo de adesão voluntária dos entes federados. Diferentemente da proposta de PCCS por serviço, incorporada na fundação “estatal” e congêneres que desvaloriza, desestimula, desrespeita e desqualifica profissionais com a lógica de “salários de mercado”, a partir do privilegio de uns poucos em alguns serviços em detrimento da grande massa de trabalhadores, defendemos pisos salariais nacionais por nível de escolaridade, estímulos à dedicação exclusiva, interiorização, tempo de serviço e à qualificação, bem como a observância a situações específicas que hoje são demandadas em função da realidade estabelecida.

Essas constituem medidas a serem implantadas objetivando a criação e implantação da carreira única do SUS como carreira de Estado, com base municipal e devidamente pactuada entre as três esferas de governo.

Quem trabalha com a vida do seu semelhante não pode e não deve ser submetido à “lógica de mercado”, que em se tratando de saúde e da vida das pessoas, é um conceito absolutamente anacrônico e incompatível com a Reforma Sanitária e com os princípios da ética e do humanismo.

(e) Definir a responsabilidade tripartite pela contratação e remuneração da força de trabalho do SUS, a partir do diagnóstico da necessidade da equipe multiprofissional, da regionalização e da hierarquização da rede em todo o país, e de concursos públicos na alçada de cada ente federado com consequente inserção na Carreira Única do SUS; e,

(f) Criar e implementar a formação, qualificação e perspectivas de desenvolvimento na carreira, através de projetos de educação permanente em saúde, com participação dos entes federativos das três esferas de governo, e ampliar o número de programas de residências multiprofissionais em todo o país, de acordo com os seguintes dispositivos legais:

Art. 37, § 2 da Constituição Federal

“A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados”.

Art. 37, § 5º da Constituição Federal

Lei da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, Inciso XI.

Art. 27, Inciso I da Lei 8.080/90

“Organização de um sistema de formação de recursos humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal.”

Art. 27, Inciso IV da Lei 8.080/90

“Valorização da dedicação exclusiva aos serviços do Sistema Único de Saúde.”

Reestruturação curricular e desprivatização dos cursos universitários e técnicos da área de saúde de modo a sintonizar a formação profissional com a realidade do país, com o SUS e suas necessidades, bem como instituir o Serviço Civil em Saúde na rede pública do SUS para todos os profissionais graduados, pelo prazo de um ano e Residência Multiprofissional como instrumentos de qualificação, convencimento, aperfeiçoamento, visibilidade e afirmação do trabalho multiprofissional e atendimento das carências do sistema na área de Gestão do Trabalho.

Gestão do Sistema e Gerência dos Serviços radicalmente democratizados, com a instituição de processos de profissionalização, de Conselhos Gestores e de outros espaços de contribuição e elaboração, que possibilitem o fim da ingerência político-partidária, o fisiologismo e o nepotismo, com a participação efetiva de trabalhadores e usuários nas decisões que digam respeito ao funcionamento dos serviços da rede SUS;

Arguir a inconstitucionalidade (Art. 196 da CF) ou modificar a Lei de Responsabilidade Fiscal para a área de saúde, de modo a possibilitar aos gestores a contratação dos profissionais necessários à viabilização do sistema, combatendo e eliminando a precarização nas relações de trabalho, e priorizando o processo de regionalização e hierarquização dos serviços. Nesse momento e num sentido inverso, tramita no Congresso Nacional o PLP 98/23 que propõe deixar fora dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal os gastos da força de trabalho terceirizada.

Alguém pode afirmar e já ouvimos de alguns defensores dos aparelhos clientelistas/patrimonialistas/privatistas, que tudo isso vai demorar muito tempo e necessitamos de ações imediatas. Se o SUS sobreviveu heroicamente a tantos ataques, não será um pouco mais de tempo de espera e de resistência a outros duros ataques que o inviabilizará. De outro lado, várias das propostas por nós aqui apresentadas, podem ser construídas imediatamente estando na dependência exclusiva de decisão política. Algumas, inclusive, já têm projetos tramitando no Congresso Nacional.

As soluções a serem apresentadas para o SUS, portanto, antes de representarem uma rendição à lógica privada e do mercado, deve significar exatamente o contrário, o enfrentamento dessa lógica com a consequente afirmação dos preceitos de um estado forte e que responde as demandas da sua população na área social.

Entendemos dessa maneira que com decisão política, controle social, prática efetiva da democracia participativa e obediência à legislação vigente devidamente aperfeiçoada quando for o caso, sem a criação de qualquer outro instrumento jurídico, temos efetivas condições de implantação definitiva do SUS de forma totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária no Brasil.

*Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte. Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).

Para ler a primeira parte desta série clique em https://aterraeredonda.com.br/gestao-do-sus-o-que-fazer/

Para ler a segunda parte desta série clique em https://aterraeredonda.com.br/gestao-do-sus-o-que-fazer-ii/


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