Por MARCELA ANDRESA SEMEGHINI PEREIRA & LEANDRO GALASTRI*
Por que não bateram no casco? A crítica de Kanafani à passividade diante do genocídio palestino
“No início escrevia sobre a Palestina como uma causa em si mesma. Depois comecei a ver a Palestina como um símbolo de humanidade. Quando descrevo a miséria palestina, estou realmente apresentando o palestino como um símbolo de miséria em todo o mundo” (Ghassan Kanafani, Filhos da Palestina).
1.
Quando Antonio Gramsci estabeleceu a função do “historiador integral” em seu texto sobre os grupos sociais subalternos, enfatizou que cada traço de iniciativa autônoma e auto-organização daqueles grupos era digno de registro e estudo, pois teria enorme valor na tentativa de se elaborar uma historiografia dos subalternos que, por sua vez, pudesse informar politicamente tentativas futuras de auto-organização das classes trabalhadoras.
A importância do ato historiográfico rigoroso e minucioso se justifica ainda mais quando se sabe, como afirma o comunista italiano no mesmo texto, que os grupos subalternos sofrem permanentemente as investidas das classes dominantes por meio do Estado contra suas tentativas de unificação, desde os movimentos mais espontâneos e incipientes.
A tarefa do historiador integral dos grupos subalternos começa então com o estabelecimento de critérios metodológicos para a compilação, o registro e o estudo de todas as iniciativas históricas desses grupos para se constituírem em classes sociais unificadas, passa pela aplicação desses critérios em parâmetros hodiernos (Benedetto Croce escreveu que a história é sempre história contemporânea) e se conclui na prática política, na ciência e na arte da política, como princípios de estudo e ação para que os grupos sociais subalternos do presente empreendam a própria luta por autonomia e unificação em classe social organizada como Estado.
Não devemos, no entanto, tomar a expressão “historiador integral” literalmente, em especial o primeiro termo. A arte em seu sentido amplo e a literatura em particular fazem parte dessa “historiografia integral” autônoma dos grupos subalternos, principalmente quando conseguem expressar, fazer sentir, tanto quanto conhecer e compreender as condições de sofrimento e luta daqueles que resistem, revidam e procuram se organizar contra a exploração e a opressão de sua força de trabalho, seus corpos, suas mentes, suas vidas.
2.
Assim o fez, com a pena em punho, o escritor palestino Ghassan Kanafani, um dos mais importantes representantes da literatura palestina, autor que ajudou a elevar a causa nacional de seu povo, assassinado pelo serviço secreto sionista em 1972, aos 36 anos de idade.
A literatura de Ghassan Kanafani apresenta a questão palestina como a causa nacional de um povo colonizado, a questão nacional mais urgente de nosso tempo. Trata-se de uma autêntica questão “nacional-popular”, se quisermos manter a linguagem gramsciana. É problema amplamente nacional e popular, já que, correntemente, não se pode falar em “classes sociais” na Palestina, porque o Estado genocida de Israel reduziu seu território à miséria generalizada.
As classes dominantes nesse caso não são palestinas, são colonizadores israelenses, é a burguesia nazi-fascista de Israel, que promove a primeira limpeza étnica televisionada e fartamente difundida pelas redes sociais. Içar a arte de Ghassan Kanafani para o centro do debate político e da denúncia do genocídio em curso tem o sentido da urgência nacional-popular palestina.
Ghassan Kanafani é uma espécie de historiador integral da luta palestina naquele sentido lato em que participa a criação literária e todo seu potencial de fazer sentir e compreender a epopeia trágica de um povo lutador e fiel às suas raízes. Mas ele é também o intelectual orgânico que participou da criação da Frente Popular para a Libertação da Palestina e o romancista que registrou, pela pena da ficção, o drama de personagens específicos criados para representar a brutal realidade coletiva de milhões de palestinos massacrados diariamente pelo Estado colonialista e racista de Israel durante décadas.
Ghassan Kanafani não foi apenas um escritor da resistência que utilizou a escrita como arma para expressar a realidade do povo palestino, como crítica e protesto contra o colonialismo, racismo, violência, opressão e esquecimento, ele foi um historiador integral, o personagem, o protagonista da história que narrou. Nasceu em 1936, na cidade de Acre, na costa mediterrânea, ao norte do atual território israelense.
Pertencia à classe média alta, seu pai era advogado e ele iniciou os estudos em uma escola de missionários franceses. Tinha 12 anos de idade quando se tornou um exilado, o que mudou completamente sua vida pessoal e social. A partir deste momento, dedica sua vida à causa palestina, aprimorando sua escrita e militância, unindo teoria à práxis, processo que, mesmo após a sua morte, permanece latente na combatividade anticolonial, antirracista e anti-imperialista de sua obra.
As memórias da Nakba[i] e a experiência do exílio nortearam a vida de Ghassan Kanafani rumo a um posicionamento marxista e internacionalista que nunca ficou desconectado de sua ação política e artística. Sua participação no grupo FPLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina) mostra seu envolvimento tanto com a causa nacional quanto com uma transformação social maior, revolucionária.
Karen Riley, na introdução do livro Palestine’s children (2000), descreve a atuação da organização em que Ghassan Kanafani estava engajado: A FPLP era de orientação marxista, comprometida não só com a recuperação da pátria na Palestina, mas, também, com a constituição de uma nova sociedade secular baseada na reforma e justiça sociais tanto na Palestina como em todo o mundo árabe (RILEY, 2000, p. 8).
Ghassan Kanafani dirigiu a redação do jornal da FPLP Al Hadaf (The Target). O documento “Estratégia para a Libertação da Palestina”, de 1969, teve co-autoria de Ghassan Kanafani e fez uma análise marxista de classe sobre as forças envolvidas no movimento revolucionário, discutindo as suas perspectivas e estratégia política. “A Resistência e os seus Problemas”, um panfleto escrito por Ghassan Kanafani e publicado pela FPLP em 1970, é uma discussão crítica sobre liderança, teoria e prática marxista, na luta pela libertação nacional.
3.
A primeira novela escrita pelo autor palestino foi Homens ao sol, publicada no ano de 1963, um de seus livros mais proeminentes. A obra narra a história de três exilados palestinos, Abu-Qays, Assaad e Marwan. Eles estão em outro país árabe, o Iraque, lugar de não pertencimento e estranhamento, onde não encontram condições mínimas de subsistência, dependendo da ajuda de parentes para sobreviverem.
Buscando melhores condições de vida, e um meio para a manutenção de suas famílias, vão ao encontro de um contrabandista, que possui uma alternativa arriscada e ilegal. A existência de pessoas sem território e sem autorização para cruzar fronteiras é uma oportunidade de lucro para os contrabandistas de pessoas. Sua atividade, mesmo que não regular, encontra validação na estrutura do capitalismo local.
A importância dessa “profissão” na vida real do cotidiano palestino existe, também, no mundo de Homens ao sol. A sensibilidade com a condição do exílio está ausente nessa relação, pois se observa nessas passagens que o contrabandista estabelece uma relação monetária e “comercial” pragmática e indiferente ao drama humano que testemunha. Há no texto, portanto, uma metáfora-convite para refletir sobre o círculo financeiro internacional e o fenômeno do exílio político e social no neoliberalismo contemporâneo.
Homens ao sol não é apenas uma novela sobre três exilados, é também um chamado à não resignação, à luta e à resistência. Embora o fim tenha sido trágico, a não aceitação e a busca pela superação da condição de exílio é a alternativa possível para o resgate da dignidade do povo palestino.
Ghassan Kanafani manteve o espírito combativo até o seu assassinato em Beirute por agentes israelenses. Seus escritos não podem ser lidos como romances de um exilado sobre o exílio. Ghassan Kanafani quis se sobrepor à aceitação da condição deplorável imposta ao povo palestino, utilizando como método a escrita combativa que expôs as condições de vida atuais, as alternativas de combate da luta armada e da revolução e o registro das memórias que o imperialismo insiste em apagar.
Em Homens ao sol, o final é trágico e, ao mesmo tempo, inspirador, considerando que Ghassan Kanafani pretende despertar a conscientização e militância política em que a resistência é o único meio, em que pior que a morte é a não vida, a não existência, o não pertencimento. Já no caminhão do motorista, os três partem para o Kuwait e se preparam para enfrentar as altas temperaturas pelas quais se submeteriam ao longo da viagem.
O trajeto costuma ter a temperatura mais alta do planeta, lugares que já alcançaram 63 graus Celsius. Eles precisam revezar o lugar do passageiro na cabine e, antes de chegar à alfândega, ir para o espaço dentro do tanque do caminhão, momento mais dramático do romance. Na primeira parada, tudo ocorre como previsto, mesmo assim a angústia é grande e o perigo de serem pegos, iminente.
Ao parar no segundo posto de controle, o motorista Abul-Khayzuran calcula gastar um tempo máximo de sete minutos com os oficiais da alfândega, para que os três homens que ele leva escondidos no caminhão consigam suportar a permanência no tanque sob sol escaldante. Um dos oficiais, no entanto, inicia um assunto tolo com Abul, que se vê preso, tentando se desvencilhar das troças e do comportamento idiota do homem. Os minutos avançam, Abul volta para o caminhão tarde demais. O pior havia se concretizado.
Embora de forma dramática, Ghassan Kanafani sugere que a resistência, a luta armada é o único meio possível para um fim diferente da não vida, da indignidade, e para a recuperação da própria existência. O sol, simbólico no livro, é carrasco, mas é também a luz do esclarecimento e da organização política que precisa incluir também os exilados submetidos a condições desumanizantes de existência.
A frase final do motorista Abul “Por que não bateram no casco?” é uma crítica à passividade, à falta de ação, à desesperança dos palestinos, combatidas por Ghassan Kanafani até o fim da sua vida.
No momento em que o imperialismo estadunidense e o Estado racista e colonialista de Israel transformaram a Faixa de Gaza num gigantesco campo de extermínio em massa – mais de 50 mil mortos até aqui, a maioria de mulheres e crianças – e promovem um cerco que condena mais de meio milhão à “fome catastrófica” segundo a ONU, a voz e a obra de Ghassan Kanafani precisam ser levadas, lembradas e brandidas para o resto do mundo, em apelo ao internacionalismo solidário de todos os lutadores do planeta contra o nazismo israelense.
*Marcela Andresa Semeghini Pereira é doutora em ciências sociais pela Unesp-Marília.
*Leandro Galastri é professor de ciência política da Unesp-Marília.
Referências
RILEY, Karen. E. “A Biographical Essay”. In: KANAFANI. Ghassan. Palestine’s Children: Returning to Haifa and Other Stories. Boulder: Lynne Rienner Publishers, Inc., 2000.
KANAFANI, Ghassan. Homens ao sol. Tradução de Safa Jubran. Rio de Janeiro: Tabla, 2023.
KANAFANI, Ghassan. Uma entrevista publicada pela primeira vez: com o mártir Ghassan Kanafani. Assuntos Palestinos, 35 (julho de 1974), pp. 137-138. In KANAFANI, Ghassan. Filhos da Palestina. São Paulo: Lavrapalavra, 2022.
Nota
[i] Nakba (em árabe significa catástrofe ou desastre) se refere ao êxodo palestino durante e após a guerra árabe-israelense de 1948. Aproximadamente 700 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas no que hoje é Israel e nos territórios palestinos. Muitos refugiados palestinos no exterior permanecem apátridas até hoje. Tanto a memória coletiva da Nakba quanto sua experiência no exílio foram utilizadas por Kanafani em suas obras, com referência especial a Homens ao sol, livro comentado na sequência deste artigo.
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