Hemingway e a escrita

Imagem: Alex Dos Santos
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RENATO ORTIZ*

Ernest Hemingway queria sublinhar essa indeterminação temporal, a maleabilidade do tempo em relação ao espaço, isto é, a possibilidade de retirar a existência de um contexto geográfico determinado

Finca Vigia: a casa fica nos arredores da cidade. Quando Ernest Hemingway a comprou, antes da revolução, deveria ser protegida pelo silêncio reinante a sua volta. Hoje o município de São Francisco de Paula é uma zona periférica da capital, o sítio é grande, bem cuidado, nele foi construída a segunda piscina de Havana. O barco, companheiro de aventuras marítimas, foi rebocado das águas até o terreno ao lado. Quando faleceu, a propriedade foi doada pela esposa ao Estado cubano.

A casa lembra uma dessas construções brasileiras, amplas, bem ventilada, o chão de cerâmica e as janelas de correr com dobradiças. A sensação de familiaridade reforça-se ao visitar o pomar, limoeiros, laranjais, mangueiras, bananeiras. Nas paredes da sala são exibidos os troféus de caça, cabeças enormes de animais. A mobília é simples, funcional, nada tem de ostentatória. No banheiro encontram-se os traços de um hábito intrigante: Ernest Hemingway, no final da vida, doente, anotava na parede, todos os dias, o seu peso. Dizem: exigência médica.

Os guias contam ao visitante, com convicção, as histórias que decoraram, insistem nos detalhes para que pareçam verdadeiras. No quarto está a máquina de escrever: Canon. Pequena. Repousa sobre um móvel ao lado da cama. De pé o grande escritor punha-se ao trabalho, antes tirava os sapatos e repousava os pés num pequeno tapete de pelos. Dizia que dele provinha sua energia para a escrita, aí alimentava seus demônios.

Mas ele realmente escrevia de pé, como diz em suas entrevistas. Retomo outro livro do autor, Paris is a moveable feast. Logo no início, na primeira página, a epígrafe capta a atenção do leitor: “If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast”. Patrick, filho e editor da obra do pai, diz que sua mãe atribuía a frase a uma conversa que ele teve com um amigo.

Eu havia lido o livro em minha juventude, ainda em Paris, mas com outro título, Paris is a feast; a edição atual ganhou um vocábulo a mais, “moveable”. Uma festa móvel não possui uma data fixa, a cada ano é celebrada em momentos distintos. Ernest Hemingway queria sublinhar essa indeterminação temporal, a maleabilidade do tempo em relação ao espaço, isto é, a possibilidade de retirar a existência de um contexto geográfico determinado.

A cidade perderia assim em enraizamento, em densidade, poderíamos carregá-la conosco onde estivéssemos, essa era a sorte. Mas seria ela realmente o objeto principal da frase “lived in Paris as a young man”? Aqui um elemento estranho à ideia de espacialidade é introduzido, a juventude. Sem ela Paris teria a virtude de ser esta festa? O livro é póstumo.

Em novembro de 1956 o gerente do hotel Ritz enviou a Ernest Hemingway um baú com as coisas que ele havia esquecido em março de 1928. Páginas de ficção, um esboço de The sun also rises, livros, recortes de jornais, roupas velhas, e um conjunto de anotações feitas durante sua estadia. Ele as utilizou para a realização do livro. Vivendo em Cuba, novamente casado, o terminou poucos anos antes de sua morte em 1961. Um velho autor escrevendo a partir de suas lembranças e anotações, e, sabemos, as recordações desconhecem as restrições espaciais ou temporais.

O que ele diz no livro? O primeiro capítulo fala de seu hábito de escrever nos cafés, Hemingway aprecia a multidão, como o flâneur de Benjamin. Chove e faz frio, os quartos e as casas são mal aquecidos, por isso todos se aglomeram nesses lugares em meio à fumaça dos cigarros. Ele descreve primeiro o Café des Armateurs, ao lado da Rue Cardinal Lemoine onde mora, depois caminha em direção ao Quartier Latin e escolhe um simpático lugar para ficar na Place Saint Michel.

Pendura o casado e retira do bolso o lápis e o caderno de anotações. Ao seu lado está uma moça, bonita, ele a mira sem perder o fio da escrita, a história se conta a si mesma, jorra em borbotões. A moça se foi, de esguelha ele percebe, mas não se distrai. Ernest Hemingway escreve sentado no café, assim o fez durante toda sua estadia parisiense.

Entretanto, ao narrar a si mesmo está em pé no quarto de sua “finca” em Havana. Pisa com os pés descalços no pequeno tapete abaixo da cômoda, não escreve a lápis, possui uma Canon, divisa lá fora as bananeiras e as mangueiras. Sabe que aquilo que o cerca é circunstancial, não interfere na história, é apenas um lugar onde enuncia sua fala. Ao embaralhar o tempo e o espaço nos ilude com sua artimanha.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]

Publicado originalmente no blog da BVPS [blogbvps28/08/2024Coluna Renato Ortiz].


Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A crônica de Machado de Assis sobre Tiradentes
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Uma análise machadiana da elevação dos nomes e da significação republicana
Umberto Eco – a biblioteca do mundo
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Considerações sobre o filme dirigido por Davide Ferrario.
O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Dialética e valor em Marx e nos clássicos do marxismo
Por JADIR ANTUNES: Apresentação do livro recém-lançado de Zaira Vieira
Cultura e filosofia da práxis
Por EDUARDO GRANJA COUTINHO: Prefácio do organizador da coletânea recém-lançada
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
Os sentidos do trabalho – 25 anos
Por RICARDO ANTUNES: Introdução do autor à nova edição do livro, recém-lançada
Jorge Mario Bergoglio (1936-2025)
Por TALES AB´SÁBER: Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido
A fraqueza de Deus
Por MARILIA PACHECO FIORILLO: Ele se afastou do mundo, transtornado pela degradação de sua Criação. Só a ação humana pode trazê-lo de volta
O editorial do Estadão
Por CARLOS EDUARDO MARTINS: A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES