Por WÉCIO PINHEIRO ARAÚJO*
Hobbes não defendeu o absolutismo por amor ao poder, mas por temor ao caos. Seu verdadeiro legado é a ideia de que o Estado, mesmo artificial, é a única resposta humana ao abismo do desejo ilimitado – e que a política, antes de ser escolha, é sobrevivência
O estado de natureza hobbesiano não se refere a uma hipóstase engessada que assume arbitrariamente uma suposta verdade universal sobre a “natureza humana”, mas se coloca como uma figura teórica assumida filosoficamente para ilustrar de modo realista um aspecto incontornável da condição humana: as diatribes do desejo decorrentes das vontades individuais. Há um propósito político estabelecido de modo que é na esteira da figura teórica do estado de natureza que Hobbes apresenta o seu contraponto igualmente incontornável: a unidade política por meio do poder estatal. Ele busca demonstrar como somente a unidade política da sociedade civil estabelecida como um corpo político é capaz de evitar que o desejo individual inviabilize a paz coletiva. Trata-se de um aspecto central para aqueles que desejam compreender a filosofia política hobbesiana sem recair em clichês e reducionismos, mas, ao contrário, tentar explorar a fortuna crítica do seu pensamento sem renunciar à leitura imanente da sua obra.
Os anais do conceito moderno de Estado encontram-se na obra do grande teórico da soberania, o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), que foi aluno da Universidade de Oxford, onde se formou em 1608. Para compreender o pensamento hobbesiano, é preciso ter em mente que o filósofo inglês parte de uma compreensão da natureza humana esquadrinhada a partir das noções de bem e mal, determinadas, para ele, essencialmente pelo desejo – destaco esse aspecto porque, de modo geral, me parece válido enquanto houver seres humanos vivos. A partir dessa inquietação, Hobbes elaborou um sistema filosófico dividido em três partes: (i) De Cive (Sobre o cidadão), publicado em 1642, aborda o ser humano em sociedade na qualidade de cidadão, isto é, como um corpo político e “artificial” que adquire forma política no Estado. Portanto, o ser humano aqui é entendido como um produto social e mundano, assim como sintetizou brilhantemente Hannah Arendt ao dizer que “Deus criou o homem, os homens são um produto mundano” (refiro-me ao ensaio O que é política?). Inclusive, não é no texto do Leviatã – como normalmente se atribui –, mas em uma epístola dedicatóriadeste De Cive (e não exatamente como parte do texto propriamente dito), dedicada ao conde de Devonshire e escrita em 1º de novembro de 1646, que Hobbes escreve que “o homem é um lobo para o homem”. Embora reproduza o presente aforismo em tom de ditado popular, na verdade, trata-se de um verso atribuído ao dramaturgo romano Tito Mácio Plauto, em sua peça Asinaria (ou “A comédia dos Asnos”) – segundo especialistas, um dos mais antigos textos do latim de que se tem conhecimento; (ii) De Corpore (Sobre o corpo), de 1655, na qual ele enuncia e reforça a distinção entre as qualidades humanas essencialmente naturais (inatas) e aquelas culturalmente adquiridas, bem como reforça o argumento de que “Cada homem é desejoso daquilo que é bom a ele, e evita o que é mau; porém o mal maior de todos aqueles que são naturais, é o medo da morte” [De Corpore, capítulo I, seção 7[i]]; (iii) De Homine (Sobre o homem), publicado em 1658: debruça-se em torno dos costumes e comportamentos dos indivíduos, com ênfase na natureza humana e sua disposição, por exemplo, para nomear as coisas, capacidade que conferiu ao ser humano dispor da razão. Neste texto, em uma passagem muito elucidativa, Hobbes analisa como “é fácil entender o quanto nós devemos à linguagem, pela qual nós, sendo unidos e alcançando a concórdia mediante pactos, vivemos seguramente, com felicidade e elegantemente” [De Homine, capítulo X, seção 3[ii]].
Antes do Leviatã, é em De Cive que encontramos a base do sistema filosófico de Hobbes que garantiu o seu legado para a posteridade. Nesta obra, o filósofo estabelece as bases para a discussão moderna do conceito de Estado e da unidade do poder estatal sob a perspectiva de que a sua unidade política, situada na sociedade civil, corresponde à constituição mais profunda da natureza humana, assim como destaca Norberto Bobbio em seu famoso ensaio sobre o filósofo inglês: “Toda a sua filosofia política tem um único motivo polêmico: a refutação das doutrinas – tradicionais ou inovadoras, conservadoras ou revolucionárias, inspiradas por Deus ou pelo diabo – que impedem a formação dessa unidade. Tem uma única meta: a demonstração – precisa como uma engrenagem, rigorosa como um cálculo matemático – de que a unidade política corresponde à mais profunda constituição da natureza humana […]” (Bobbio, 1991, p. 66). E esta constituição profunda “É atravessada por uma única convicção fundamental: a de que o Estado ou é único e unitário ou não é nada; e, por conseguinte, ou o homem aceita essa suprema razão do Estado, ou se perde na violência da guerra perpétua e universal” (Bobbio, 1991, p. 66).
Ainda segundo Bobbio, “A causa principal que obstaculiza a formação da unidade estatal é, segundo Hobbes, a pretensão da autoridade religiosa […] de ser a titular legítima de um poder superior ao Estado” (Bobbio, 1991, p.67). A meu ver, esse é o ponto nevrálgico da potência crítica hobbesiana – que, inclusive, lhe rendeu ferrenha censura e perseguição durante grande parte de sua vida. É nesse contexto que Hobbes alerta para o grande perigo que ameaça de morte a república: a guerra civil decorrente da dissolução ou da incapacidade de se estabelecer a unidade política da sociedade civil no e pelo poder estatal. Perigo este que me parece profundamente atual, guardadas as devidas proporções e diferenças entre cada tempo histórico.
Apesar de ser comumente rotulado como um defensor acrítico da monarquia absolutista, em minhas leituras descobri um Hobbes que demonstra uma arguta compreensão (auto)crítica da monarquia (mesmo sem deixar de defendê-la), ao mesmo tempo em que aponta e disserta sobre a monarquia não como o único tipo de soberania, mas como um entre os três tipos por ele nomeados, conforme podemos ler em Leviatã (Capítulo XIX). Neste capítulo Hobbes ressalta que os tipos de soberania são apenas três, “a monarquia, onde um homem a possui; democracia, quando a assembleia geral de súditos a possui; e aristocracia, onde ela se acha em uma assembleia de certas pessoas nomeadas” (Hobbes, 2020, p. 215). Neste mesmo capítulo (XIX), veremos Hobbes defendendo a monarquia com base em uma análise (auto)crítica. Ao analisar as duas formas de soberania alternativas à monarquia, por exemplo, ele escreve que “o rei, cujo poder é limitado, não é superior àquele, ou àqueles que têm o poder de limitá-lo; e aquele que não é superior não é supremo; e isto significa que, portanto, não é soberano. Então, a soberania, neste caso, estava sempre na assembleia que tinha o direito de limitá-lo; e o governo não se trata de monarquia, mas de democracia ou aristocracia” (Hobbes, 2020, p. 216). Ele contextualiza essa análise historicamente com exemplos como o de Esparta, onde os reis lideravam seus exércitos, mas a soberania estava nas mãos dos cinco magistrados eleitos anualmente, denominados éforos. No entanto, pelo motivo de que nos manuais e exposições sobre o pensamento hobbesiano se discute muito mais sobre o Leviatã do que sobre as outras obras da sua vasta produção, eu gostaria aqui de navegar um pouco mais, de modo sincrônico ao Leviatã, naquela obra anterior e fundamental para a sua produção: o De Cive. Sobretudo porque é nela que aparecem pela primeira vez as bases de toda argumentação que será mais tarde desenvolvida em o Leviatã.
Em De Cive: Elementos filosóficos a respeito do cidadão (Elementa philosophica de cive), mais especificamente no capítulo intitulado “Das leis e das transgressões”, encontramos um aspecto central (conforme sinalizei no início desta exposição) no que diz respeito aos argumentos que servirão de base para o que Hobbes apresentará mais tarde em Leviatã: “Os homens são de tal natureza que todos chamam de bem o que desejam que lhe seja feito, e mal ao que tentam evitar. De modo que, pela variedade das suas paixões, o que um chama bem, o outro chamará mal, e o mesmo homem logo depois chamará mal o que agora chamam bem” (Hobbes, 2023, p. 251). Estamos diante de um aspecto que, a meu ver, permanece válido enquanto existir a espécie humana: no campo dos desejos todos os seres humanos se igualam, ou seja, pois todos são movidos pelo impulso complexo, primitivo e progressivo de satisfazer o desejo e afastar o indesejável. É a partir dessa concepção de base que compreendo o chamado estado de natureza.
O De Cive ressalta que “Todo indivíduo é levado por uma força da natureza […] a desejar o que é um bem para si e evitar o que é um mal, sobretudo o maior de todos os males naturais, a morte” (Hobbes, 2023, p. 63). Trata-se de um argumento simples e poderoso em seu fundamento factual e determinante para a vida em sociedade: todo objeto que desperta o desejo no sujeito é denominado como “bom” ou “aprazível”, ao passo que tudo aquilo que lhe causa aversão é identificado como “mal”, “ruim” ou “desagradável”.
Para explicar a gênese do Estado, seu direito e os deveres do cidadão, Hobbes começa pela natureza humana em seu estado mais cru e individual. Ele defende, de modo cartesiano (Descartes publicou o seu Discurso sobre o Método em 1637, do qual Hobbes foi um leitor atento), que “precisamos, sem desmontar o Estado, considera-lo como desmontado; isto é, precisamos compreender corretamente a condição da natureza humana, com o uso de quais meios ela é capaz ou incapaz de dar corpo ao Estado e de que modo hão de ajustar-se entre si os homens, se quiserem alcançar a união” – assim como explica Milton Nascimento em seu posfácio para a edição brasileira de De Cive (In: Hobbes, 2023, p. 385).
A lei da unidade política: estado de natureza e estado de civilidade
O estado de natureza hobbesiano não é uma hipóstase descolada da realidade sobre a origem das sociedades humanas, como sugerem equivocadamente alguns críticos de Hobbes, que lhe atribuem um sentido pobre e imediatista de um estado “pré-social” concebido de modo abstrato, para afirmar uma natureza humana de substância inerentemente egoísta e agressiva – a exemplo da situação ilustrada na obra de William Defoe, que versa sobre um náufrago chamado Robinson Crusoé, que fica preso numa ilha deserta, de maneira que é obrigado a viver em um estado de natureza imposto pela naufrágio de sua embarcação. Na verdade, o estado de natureza hobbesiano postula uma condição assumida teoricamente para ilustrar uma situação na qual pactos realizados na forma de um contrato de confiança recíproca são inválidos ou impossíveis, precisamente porque, no que tange individualmente a esse impulso natural do desejo manifesto, sem um pacto coletivo que traga unidade social, acabam caminhando na direção da guerra.
Costumo pensar no estado de natureza hobbesiano como uma espécie de “laboratório teórico” sobre a vida política assumida como o exercício coletivo da liberdade. No entanto, no estado de natureza, esse exercício aparece posto em abstrato na condição imediata do indivíduo dominado unicamente pelo desejo. Ao contrário do que seus críticos impertinentes o acusam, a meu ver, Hobbes desvela, ainda que de maneira não inteiramente deliberada, uma contradição certeira e que só aparecerá elaborada de forma sistemática muito mais tarde no debate da filosofia política (sobretudo em Hegel): se de um lado, o indivíduo é fortemente determinado pelo impulso natural e animalesco do desejo egoísta, por outro lado (e ao mesmo tempo), os indivíduos (em sociedade) possuem forte abertura à unidade política como uma maneira de escapar à morte generalizada instalada com o caos da guerra. Portanto, se há uma convicção em Hobbes sobre a natureza humana, é a de que, apesar da sua inclinação egoísta, a sua constituição profunda é o seu estado social. Para ele, esse estado social carrega uma “lei natural, absoluta e fundamental” (palavras utilizadas pelo próprio Hobbes): a lei da unidade política. Para compreender a filosofia política hobbesiana de maneira não reducionista, é preciso pensar o estado de natureza de maneira inseparável do estado social e de sua lei fundamental e imanente, a lei da unidade política.
A tese forte de Hobbes é o estado social em que os homens são obrigados a viver para superar o estado de natureza. Para ele, essa é uma questão essencialmente política. Afinal, a figura teórica do estado de natureza não é concebida como um estado “pré-social” hipostasiado como “a verdadeira natureza humana”, mas, ao contrário, como uma condição natural na qualidade de um marcador antropológico, que habita dentro de cada indivíduo, e que só pode (e deve) ser superada na unidade política formada a partir do estado social composto por indivíduos concretos em sociedade. Esses indivíduos são determinados não só pelo egoísmo do desejo, mas também pela obrigação de viver em sociedade e, portanto, fortemente determinados pela inclinação a estabelecer acordos e convenções das vontades individuais. E esse é, por definição, o mundo da política.
Conforme demonstra Bobbio, a ética de Hobbes não concebe os princípios e valores morais como verdades eternas sob uma concepção de transcendência moral ou imanentista. Ao contrário, para Hobbes, “a fonte de todo valor – e, portanto, de todo critério de avaliação do bem e do mal, do justo e do injusto – é a própria vontade do homem; ou mais precisamente, no estado social em que os homens são obrigados a viver, abandonando o estado de natureza, essa fonte é o acordo das vontades, isto é, uma convenção” (Bobbio, 1991, p. 83, itálico meu). Em outras palavras, esse “acordo das vontades” é o pacto social constituinte da política. Afinal, como podemos ler no capítulo XI de Leviatã, Hobbes demonstra uma compreensão que considero extremamente realista e muito bem ancorada nos fatos (quase maquiavélica no sentido do seu inegável realismo político): “A felicidade é um progresso contínuo do desejo de um objeto para outro, e a obtenção do primeiro continua a ser o caminho para o segundo. A causa disso é que o objeto do desejo do homem não é desfrutar apenas uma vez e por um instante de tempo, mas assegurar para sempre o caminho de seu desejo do porvir. Assim, as ações e inclinações voluntárias de todos os homens tendem não apenas à busca, mas também à garantia de uma vida satisfeita, e diferem apenas quanto ao caminho, que surge em parte da diversidade de paixões em diversos homens, e em parte da diferença do conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que produzem o efeito desejado” (Hobbes, 2020, p. 114-115).
Por meio da figura teórica do estado de natureza que Hobbes vaticina filosoficamente (embora sem perder de vista a experiência humana historicamente determinada e socialmente condicionada pelo desejo e seu impulso egoísta primacial) uma situação na qual o desejo individual inviabiliza a paz coletiva, justamente porque todos se apresentam apenas na condição individual de iguais na possibilidade de exercer a violência. Ou seja, ainda não estariam organizados na forma política da civilidade, de maneira que fica inviabilizado o pacto que dá origem ao Estado (Hobbes, 2023, p. 77). E mais: mesmo estabelecido o Estado, os indivíduos não deixam de carregar dentro de si esse impulso primacial do desejo, daí a necessidade de leis e dos princípios ético-políticos para garantir sua sustentação moral.
Para enfrentar o estado de natureza, Hobbes afirma o estado de civilidade (conceito cunhado pelo próprio e que, a meu ver, deveria ser mais discutido em detrimento da atenção excessiva dedicada ao estado de natureza), no qual o direito de vida e morte repousa na sociedade compreendida como cidade (e aqui temos um conceito hobbesiano elaborado a partir de amplo debate com a tradição greco-romana). Ou seja, a cidade é a união estabelecida entre os indivíduos, na qualidade de cidadãos, por meio de um contrato que significa transferir seus direitos ao Soberano e assumir deveres diante dele, de modo a consolidar um pacto de confiança recíproca. Segundo Hobbes, o Soberano pode ser um indivíduo ou uma assembleia de indivíduos (outra questão pouco discutida quando, já que, com frequência, vemos o filósofo ser reduzido a um defensor alienado da monarquia absolutista). Chegamos, então, ao Estado, que dá corpo político à cidade e às suas leis. Desse modo, como afirma Hobbes em seu prefácio ao De Cive: “os cidadãos não mediam a justiça pelas palavras de pessoas, mas pelas leis da Cidade” (Hobbes, 2023, p. 10), isto é, a paz é garantida “não por meio de discussões, mas pela força do poder constituído” (Hobbes, 2023, p. 10) no e pelo Estado – obviamente, aqui temos um argumento do Hobbes em defesa da monarquia; no entanto, é preciso ter cautela para não assumir essa leitura de maneira unilateral, pois isso normalmente leva a uma compreensão empobrecida de seu pensamento.
Quando, em 1651, Hobbes publicou a obra intitulada Leviatã, toda essa compreensão filosófica do ser humano entendido como um ser regido primariamente por seus desejos e paixões mais viscerais, já estava consolidada desde o De Cive. Isso não significa reduzir a condição humana a uma compreensão que estabelece de modo unilateral o peso do egoísmo determinado pelos desejos e vontades individuais, o que consequentemente conduz à guerra, fruto do desejo natural de autopreservação de cada indivíduo. Contudo, Hobbes não ignora que o ser humano também é capaz de enxergar racionalmente que a paz pode ser uma maneira eficiente de afastar o medo da morte causado pela guerra, e assim assegurar a autopreservação coletiva. Todavia, ele ressalta que essa paz ditada apenas por instintos naturais como o medo da morte, é por demais instável, tendo em vista que, dissipado o medo, o ser humano se esquece dele e a paz pode se desfazer facilmente.
Também não podemos esquecer o peso do contexto histórico profundamente conturbado no qual viveu Hobbes. Ele vivenciou os últimos anos da Guerra dos Trinta Anos ainda na sua primeira década de vida e testemunhou grande parte da “Revolução Gloriosa”, incluindo a guerra civil inglesa e as guerras promovidas por Oliver Cromwell contra a Escócia, a Irlanda e a Holanda. Nesse contexto, diante da complexidade da condição humana individual regida majoritariamente pelo desejo vis-à-vis a necessidade racional e coletiva de paz e estabilidade para a formação de sociedades, qual seria então a solução proposta por ele?
A solução seria superar o estado de natureza por meio da organização dos indivíduos em um corpo político artificial, mas que deve ser vivenciado como algo real no âmbito das relações sociais e políticas estabelecidas por esses indivíduos coletivamente – obviamente, para Hobbes esse Estado seria a monarquia absolutista. Daí advém a escolha do nome Leviatã, em alusão ao monstro mitológico da antiguidade bíblica. Contudo, de modo geral e mesmo sem pensar no que hoje conhecemos por democracia, ele parece antecipar um princípio inexorável que fundamenta qualquer sociedade que se pretenda minimamente organizada politicamente: o estado de civilidade. Aqui temos o nascedouro da formulação que determinará todo o pensamento político moderno ao lidar com a aporia que define a própria modernidade: a questão de como equacionar razão e liberdade. A partir de Hobbes, surge a visão moderna de que é somente por meio da formação social de cidadãos pactuados para o estabelecimento de uma unidade política estatal, que se torna possível buscar a realização da política como o exercício racional e coletivo da liberdade. Seja em Hobbes, Kant, Hegel ou até mesmo em Cícero ou Aristóteles, estamos diante de uma definição que, ainda que muito genérica, parece continuar válida até os dias de hoje, considerando as devidas proporções e diferenças entre esses autores e suas épocas.
O Leviatã e a formação social do Estado
A experiência da estatalidade, anterior ao conceito de Estado propriamente dito, é algo que sabemos ser anterior à modernidade, presente nas mais remotas experiências de organização social e política na história da humanidade. Antes mesmo dos gregos “inventarem” a política com a sua pólis ou dos romanos criarem a civitas e a res publica, tivemos experiências significativas, como as civilizações mesopotâmicas. Os sumérios, por exemplo, construíram e organizaram cidades-estados, como podemos comprovar na Epopeia de Gilgámesh, entre outros documentos históricos. Em certa medida, podemos dizer que o fenômeno social da experiência de estatalidade é anterior ao conceito de Estado. Ou seja, antes mesmo de emergir o vocábulo “Estado” no debate moderno da política, as sociedades humanas já se organizavam politicamente a partir da produção de um pacto, na forma de um “contrato”, no qual eu reconheço e transfiro o meu direito soberano de governar a mim mesmo a outro indivíduo, que pode ser uma figura sagrada personificada, como o monarca “Rei-Deus” da antiguidade, o Estado absolutista ou uma assembleia de indivíduos, como na pólis grega ou na república romana. Isso demonstra que, apesar de sua natureza egoísta, os seres humanos insistem, entre erros e acertos, no exercício coletivo da liberdade desde os tempos mais remotos, ainda que, não raro, essa liberdade seja frequentemente vilipendiada sob um viés de raça e/ou classe, sobretudo em guerras, períodos imperiais ou de dominação colonialista, que quase sempre marcaram a história das sociedades humanas. De qualquer modo, aprendemos com Hobbes que desse pacto, ou “contrato social”, surge sempre esse monstro artificial para garantir a lei e a ordem, que ele denominou Leviatã.
A “monstruosidade” em o Leviatã deve-se ao seu caráter artificial, a partir do qual o direito de governar a si regido unicamente pelas paixões e desejos naturais é transferido a um produto social: o Estado, que está acima de todos, porém, enquanto criação e representação política destes. Não é por acaso que, ainda na recente pandemia de coronavírus, a necessidade do isolamento social vivenciado, quando não respeitada espontaneamente pelos indivíduos, passou a ser imposta pelo Estado por meio da lei. Temos aqui um exemplo de como Hobbes ainda permanece atual, guardadas as devidas proporções históricas, obviamente. A importância da obra hobbesiana permanece viva na qualidade de anais de fundação desse paradigma de poder baseado no modelo soberania-Estado fortemente ancorado no legado greco-romano. Sem dúvida, o corolário da sua obra é a defesa do Estado como superação do estado de natureza por meio da instauração da sociedade civil como unidade política, ou seja, o estado de civilidade.
A uma questão central para uma análise crítica da relação entre Estado e sociedade aparece no fato de que esse corpo político, no qual a soberania é transferida do indivíduo para o um todo abstrato e artificial, surge, em tese, como um pacto pela paz e pela sobrevivência em termos morais, em nome de um suposto “bem comum”. No entanto, na verdade, ele está fortemente determinado por um elemento social e econômico que se mostrou incontornável na história: a propriedade privada – no tempo de Hobbes, a propriedade do rei.
Seguirei refletindo sobre a presente indagação no meu próximo texto desta série iniciada com Hobbes, dedicada às minhas alunas e alunos do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba, e que corresponde em larga medida aos arrazoados das minhas aulas de filosofia política, mais especificamente Teoria do Estado e da Democracia. Apresentarei na sequência desta série dedicada à questão do Estado, outras introduções críticas voltadas para Locke, Rousseau, Hegel e Marx.
*Wécio Pinheiro Araújo é professor de filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Referências
BOBBIO, N. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro, RJ; Editora Campus, 1991.
HOBBES, T. De Cive. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
HOBBES, T. Leviatã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.
Notas
[i] In: Hobbes, 2020, p. 146, nota de rodapé n. 27.
[ii] In: Hobbes, 2020, p. 51, nota de rodapé n. 11.
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