Por JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA*
Karl Marx esconde um avesso filosófico problemático, não examinado?
1.
Em nossos dias, não creio que seja uma boa ideia pôr Karl Marx simplesmente de lado, muito menos diluí-lo e empobrecê-lo para remediar seus possíveis problemas. O que mais interessa é ver onde esses problemas, de fundo, estariam, e de que modo vale a pena resolvê-los, no rumo de sua melhor reconstrução conceitual (do que a de Jürgen Habermas, por exemplo) e de seu melhor aproveitamento político.
No caso de Marx, entendo que seus principais problemas de fundo estão nos fundamentos normativos, prescritivos, que não vejo ninguém examinar devidamente, nem aqui nem em lugar nenhum.
Nosso livro O avesso de Marx trata desse fundo metafísico, até místico-teológico, do pensamento de político filósofo, sobre o qual entendo pesa uma vasta ignorância, tanto na esquerda política quanto na acadêmica e cultural. O que tem tido más consequências para o desenvolvimento de uma filosofia prático-crítica melhorada, e de uma posição política progressista radical efetiva, não-quietista, para nosso tempo e contexto.
O referido fundo tem a ver justamente com seu humanismo especulativo, encoberto, que é, entretanto, o elemento mais central do seu pensamento. Muitas vezes mascarado numa articulação conceitual aparentemente apenas teórica, que, entretanto, aquele elemento normativo de fato determina. É como trato de mostrar, minuciosamente, letra por letra, nos seus textos mais explicitamente filosóficos, mas não só.
Com efeito, uma investigação mais cuidadosa vai revelar o pensamento de Marx, jovem ou maduro, como um humanismo dialético, essencializado e substancialista, ao mesmo tempo envolvido com representacionismos e mais dualismos complicados. E vai expor seu fundamento filosófico como um “humano transcendental”, que sustenta metáforas críticas engenhosas e sedutoras, como alienação, fetichismo, reificação, pré-história, reino da liberdade, etc., na verdade, de pouco sentido político.
2.
Não nos impressionemos, porém, com esses termos técnicos, nem com um juízo tão acabado sobre Karl Marx. Através das seis “conversas” de O avesso de Marx, temos a oportunidade de ver de perto tudo isso, de um modo compreensível, por um exame minucioso do que o próprio Marx diz, e como diz, ou seja, por um exame dos meandros ocultos do seu pensamento. O que inclui uma consideração das referências filosóficas que ele próprio toma, sobre as quais ou contra as quais ele na verdade constrói seu pensamento.
Inclui também uma inevitável polêmica, nesse livro, com alguns de seus principais intérpretes, inclusive clássicos mas não só, como Louis Althusser, Della Volpe, Adam Schaff ou José Arthur Giannotti, em geral redondamente equivocados, como mostro, sobre o que Karl Marx está de fato fazendo. Ao final do desse percurso, o(a) leitor(a) chegará às suas próprias conclusões sobre o assunto, com conhecimento de causa. O que será, em todo caso, posso garantir, filosófica e politicamente muito instrutivo, até formador.
Alguns “pecados” filosóficos comumente atribuídos a Marx têm sido determinismo, dogmatismo e teleologia, que acompanham a canonização que dele se faz. E suas consequências políticas mais polêmicas podem incluir jacobinismo, problemas com a democracia, pretensões de monopólio no campo do Ideal etc.
Na verdade, nas circunstâncias do nosso tempo, tais pecados podem compreender ainda, paradoxalmente, limitações como idealismo, dissociação da realidade, imobilismo, compromissos com relações de tutela e dependência. Por fim, em suas derivações mais recentes, essas limitações podem desembocar em um pseudo-humanismo moral, xarope, pretensamente anticapitalista, muitas vezes vitimista ou primitivista-retrô, eventualmente anarco-bobo, frequentemente reacionário.
Esse são problemas que o próprio Marx – cujo pensamento tem preciosos elementos de afirmação, força e exuberância, junto com um notável viés materialista propriamente prático, que vale serem aproveitados – tentou deixar para trás, dentro, entretanto, dos limites de suas referências e circunstâncias.[i]
3.
São também problemas que ele, depois de buscar criticar em outros filósofos e reformadores sociais do seu tempo, acabou, como demonstro, por dissimular e recalcar, em vez de erradicar, em seu próprio pensamento, por um artifício, típico, de suposta tradução empírica.
O fato é que, até à sua revelia, o anticapitalismo comunista, supostamente materialista, de Marx, mal-entendido, não criticamente examinado, agora em circunstâncias históricas mudadas, anda por aí, em suas derivações, como espectro e como degenerescência, como um retorno do recalcado, por trás de modos de pensamento, não só dogmáticos, mas também, de outro lado, piedosos, deprimidos, falsamente críticos e políticos.
Anda por aí como farsa, na forma de teorias particularistas diversas, marxismos culturais atrapalhados, pós-estruturalismos dogmáticos, correções políticas arrevesadas, identitarismos abstratos, até teologias alegadamente emancipatórias e políticas.
Tudo isso tendo a ver com mudanças materiais, sociais, culturais, e outras, no mundo, fora do script histórico-filosófico original de Karl Marx, que deixaram seu humanismo transcendental sem base nas relações sociais com que contava, e sem o suposto sujeito histórico real, universal, emancipador, que ele pressupõe, justamente para tratar de não cair em pregação idealista e moralista, utópica.
Entretanto, as chances de bem reconstruir seu ponto de vista prático-material, histórico, sob novas circunstâncias, em primeiro lugar nacionais, são muito promissoras. O avesso de Marx é, no fim das contas, sobre como reconstruir Marx, como desenvolvê-lo melhor, em diálogo crítico com ele. Pela localização, reconhecimento e superação, em seu próprio espírito, de seus principais problemas de fundo.
No rumo de um progressismo material, popular, democrático, de que estamos precisando, em meio aos impasses atuais da nossa esquerda e centro-esquerda, inclusive em termos globais. Aqui temos um convite. Como mais ou menos disse um de nossos heróis, “é preciso olhar para traz, quem sabe par o fundo, para melhor saltar à frente”. Sem o dogmatismo e o fundamentalismo da reiterção, nem a diluição do edulcoramento moral, que frequentemente se recobrem.[ii]
*José Crisóstomo de Souza é professor do Departamento de Filosofia da UFBA. Autor, entre outros livros, de O avesso de Marx: conversas filosóficas para uma filosofia com futuro (Ateliê de Humanidades). [https://amzn.to/3XGbMUn]
Notas
[i] Sobre isso, ver por exemplo as críticas de Marx ao então chamado “socialismo verdadeiro”, de ex-parceiros seus, em A Ideologia Alemã, e a várias versões de socialismo/comunismo, no Manifesto Comunista, para as quais reserva adjetivos como “reacionárias” e “conservadoras”, que encontram hoje, em outras circunstâncias, novos desenvolvimentos piedosos.
[ii] Sobre a base da “carta ao leitor”, de apresentação de O Avesso de Marx (Ateliê de Humanidades, 2024).
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