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Ideologia de gênero: afinal, do que estão falando e do que nós deveríamos falar?

Por Mariana Mazzini Marcondes*

Em 06 de outubro de 2019
houve eleições para os Conselhos Tutelares nos municípios brasileiros. E ELA
esteve em pauta. O combate a ELA era uma das
principais bandeiras de algumas candidaturas conservadoras
.

Em 03 de setembro de 2019
o governador do Estado de São Paulo, João Dória, mandou recolher
apostilas escolares da rede estadual
. Segundo ele, o material
tinha apologia a ELA. Na mesma data, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro,
informou ter solicitado ao Ministério da Educação (MEC) a elaboração de um
projeto de lei que proíba ELA. Em seu discurso
de posse
, dia 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro já havia
destacado que o combate a ELA seria uma das suas principais missões à frente da
Presidência da República.

Esses são alguns dos
exemplos mais recentes da presença dELA no debate político brasileiro. Ela, a
ideologia de gênero.

Mas, de onde ela surgiu?
E o que significa? Por que, afinal, ela é tão central no debate político atual?
Essas são algumas das muitas perguntas que a ideologia de gênero suscita. As
respostas são igualmente múltiplas. E parece-nos fundamental que o campo
progressista e comprometido com a democracia e com a igualdade formule a sua.

Para isso, contudo,
precisamos começar situando onde tudo começou.

Ideologia de gênero: traçando
suas origens

Richard Miskolci e
Maximiliano Campana

constroem uma genealogia da ideologia de gênero na América Latina e no Brasil. Percorremos
o itinerário proposto pelos autores nos próximos parágrafos.

As bases de uma
batalha santa contra a ideologia de gênero foram lançadas por Joseph Ratzinger
(posteriormente Papa Bento XVI), em um esforço de se contrapor à 4ª Conferência
Mundial da Mulher

da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em Beijing, em 1995.

Essas ideias se disseminaram e aterrissaram na América Latina no contexto da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, de 2007. O Documento de Aparecida, resultante do encontro, identifica na ideologia de gênero um mecanismo que enfraquece e menospreza a vida familiar.

Crédito da imagem: Aos Fatos

Buscando
aprofundar teoricamente o que a Igreja Católica vinha sinalizando como uma
cruzada contemporânea, o argentino Jorge Scala publicou, em
2010, o livro A ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da
família.
No livro, cuja tradução para o português conta com prefácio do
jurista conservador Ives Gandra da Silva Martins, o autor identifica na
ideologia de gênero uma ferramenta de poder de caráter global que ataca a
família e sustenta uma nova forma de autoritarismo.

Ainda que a
emergência da noção de ideologia de gênero seja tributária às frações
conservadoras da Igreja Católica, também setores das Igrejas Evangélicas
passaram a pautar o debate, especialmente por meio das organizações
neopentecostais.

No Brasil, foi no
campo educacional que a batalha em torno da ideologia de gênero ganhou
materialidade. Tornaram esse terreno fértil iniciativas como o Escola sem Partido, criada em 2004,
para enfrentar supostas doutrinações ideológicas nas escolas. Foi, contudo,
como uma resposta ao “Escola sem
Homofobi
a”
que a ideologia de gênero se tornou uma efetiva arma discursiva na mão de
grupos conservadores. O projeto se propunha a contribuir com o enfrentamento à
homofobia no ambiente escolar, por meio de materiais educativos que orientassem
a valorização da diversidade sexual nas escolas. Apelidado de Kit Gay pela
Bancada Evangélica, as pressões levaram o Governo Dilma a
abandonar o material.

Era uma primeira vitória dos defensores da guerra santa contra a ideologia de
gênero.

Outras vieram.
Talvez a mais emblemática delas tenha sido a retirada do termo
“gênero”

dos Planos Nacionais, Estaduais e Municipais da Educação por todo o país, nos
anos de 2014 e 2015. Até mesmo a passagem de um ícone dos estudos feministas
esteve na mira da disputa. Em 2017, a palestra da estadunidense Judith Butler congregou grupos
que se manifestaram contra e a favor da autora, em sua passagem por São Paulo.

Assim, em menos de
20 anos desde as suas primeiras formulações, a ideologia de gênero tornou-se um
tema obrigatório no debate sobre políticas públicas no país e na América Latina.
Mas, afinal, o que é ideologia de gênero?

Ideologia de gênero: com
a palavra, os criadores

Uma definição de
ideologia de gênero pode ser encontrada no Documento de Aparecida, mencionado
anteriormente. Em seus termos, ela significa a possibilidade de “escolher sua
orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza
humana
”.

Textos e vídeos disseminados pela internet, e vinculados a grupos conservadores
das Igrejas Católicas e Evangélicas afirmam que, por meio da ideologia de
gênero, busca-se ensinar nas escolas que não existe sexo, que não
é algo natural
, mas que cada um escolhe
o seu
, o que coloca em risco o
casamento, a família
, ou pode ser associado
à pedofilia.

Para entender melhor essa
discussão parece-nos útil irmos por parte. Comecemos pelo conceito de
ideologia.

Ideologia: um pouco de
teoria

O conceito de ideologia é
tão difundido quanto permeado por indefinições e até mesmo estigmas. Terry
Eagleton
identifica, em seu livro sobre o tema, pelo menos 16
possíveis definições para o termo.

Talvez uma das formas
mais recorrentes de definir ideologia seja o que podemos denominar de sentido
negativo ou estrito
. Nela, a ideologia seria uma distorção ou
falseamento da realidade, para atender interesses e relações de dominação.
Trata-se de uma formulação bastante utilizada por reflexões marxistas e que,
curiosamente, não é distante da adotada pelos criadores do conceito de
ideologia de gênero.

Em um dos textos
disseminados pela Canção
Nova
,
uma das principais organizações a difundir o combate sobre ideologia de gênero
no Brasil, ideologia é identificada como um conjunto de ideias falsas (mas que
também podem ser verdadeiras), a serviço de interesses políticos, religiosos,
econômicos e até mesmo sexuais.

As ideologias estabelecem
e legitimam relações de dominação por um conjunto de mecanismos, a exemplo da
naturalização, universalização e opacidade. Em resumo, isso significa que essas
ideias são apresentadas como naturais do ser humano e válidas universalmente,
passando a se confundir com o senso comum, em uma dinâmica que os interesses em
jogos se tornam opacos, como se eles não estivessem lá.

É possível, ainda, a
adoção de uma concepção
ampliada
de ideologia. Nesse caso, ela corresponderia às formas
que os sentidos são utilizados para estabelecer e legitimar relações de
dominação e de opressão, mas também para questionar, desafiar e transformar
essas relações. Ou seja, elas seriam mobilizadas para construir projetos
alternativos de sociedade.

Em breve, retomamos alguns desses pontos. Antes, contudo, precisamos tecer alguns comentários sobre a outra palavra chave dessa discussão.

Gênero: um pouco de
teoria

Gênero é um conceito
central para estudos
de gênero e práticas feministas
. Ele pode ser
compreendido como um elemento
que constitui relações sociais
, com base em diferenças
que são percebidas e construídas socialmente em relação ao sexo. Se o sexo é
natural (e
até mesmo isso pode ser questionado
), o gênero é social e
histórico.

Em outras palavras, não é
a anatomia biológica que define a cor da sua roupa, se você brinca de boneca ou
de carrinho, se faz ou deixa de fazer serviço doméstico e se tem prazer com
homens e/ou com mulheres (ou com ninguém). Mais do que isso, não define nem
mesmo como você se identifica em relação ao gênero (uma mulher ou homem trans
não se identifica com o gênero que a sociedade tenta impor a seu corpo, por
exemplo). Com base nas ideias de Butler,
que esteve na mira dos grupos conservadores em sua passagem pelo Brasil, não
existe uma relação automática entre sexo, gênero e desejo.

O gênero, como
experimentamos em nossa sociedade, é permeado por relações de poder, que
resultam em dominação e desigualdades. Não apenas das mulheres, em relação aos
homens. Mas também em relação às pessoas LGBTQ+. Além disso, essas relações se
articulam a outras formas de produzir desigualdades, como as relações de
classe, raça e etnia.

Essa definição incomoda
os criadores da ideologia de gênero, em sua guerra santa. Isso porque essa
forma de compreender o masculino e o feminino poderia colocar em crise o
casamento e a família. E até mesmo a identidade do indivíduo, levando ao aniquilamento
da pessoa e de suas relações de afeto
.

Ideologia (para a
desigualdade) de gênero

O uso de ideologia de
gênero, nos termos defendidos por seus criadores, apresenta um interessante
exemplo de ideologia para estabelecer e legitimar relações de dominação. Isso
porque as relações de poder e de dominação que emergem na dinâmica das
desigualdades de gênero são mediadas por ideologias, que estabelecem e
legitimam essas desigualdades. É um pouco abstrato?

Quando alguém diz que
homens são naturalmente mais violentos e que não conseguem controlar seus
impulsos sexuais, há uma naturalização ideológica de uma forma social de
experimentar as relações de gênero. O mesmo ocorre quando se relega às mulheres
todo o trabalho doméstico e de cuidado, como se as mulheres tivessem na sua essência
o chip com as informações de como arrumar uma casa, o que veio faltando no
cromossomo masculino. E como essas ideias fazem parte do senso comum do nosso
cotidiano (e das piadinhas, filmes e afins), a conexão delas com interesses e
privilégios masculinos se tornam opacas, habitando as sombras. Mas, exatamente
por isso, se fazendo presente.  

Nesses termos, seria
possível responder que a ideologia de gênero existe, sim. E ela vem contribuindo,
decisivamente, para a opressão das mulheres. Para que elas sofram violência,
recebam piores salários, estejam menos em espaços de poder e de decisão. E,
ainda, para que pessoas LGBTQ+ sofram violência, não possam amar livremente e
sejam discriminadas nos espaços públicos e privados. E que não falar sobre isso
nas escolas apenas agrava esse cenário, incluindo a pedofilia.
Afinal, se as crianças não sabem o que é sexo, como elas podem se proteger e
denunciar violências sofridas?

Ideologia (para a
igualdade) de gênero

Se assumirmos uma
compreensão ampliada de ideologia, podemos apresentar também uma segunda resposta.
Nesse caso, poderíamos dizer que existe, sim, ideologias que promovem a
igualdade de gênero.

Elas não destroem
casamentos, mas permitem que eles sejam baseados no consentimento, na autonomia
e na igualdade. E que as pessoas possam decidir se querem ou não se casar, o
que inclui a população LGBTQ+. Essa ideologia não é contrária às famílias. Ao
contrário, defende todas elas, no plural. Um casal de mulheres trans com duas
crianças é uma família. Assim como uma mulher que vive só. A igualdade entre
mulheres e homens contribuem inclusive para que relações de afeto possam ser
mais duradouras e saudáveis.

Por fim, essa ideologia
para a igualdade de gênero não coloca em xeque a identidade dos indivíduos, mas
respeita e valoriza sua multiplicidade. E, dessa forma, aumenta a potência da
ação de ser humano. Trata-se de uma ideologia que pode ser professada,
indiscriminadamente, por quem tenha qualquer crença ou religião, e até mesmo
por quem não tenha. Essa ideologia de gênero é fundante de um projeto de
sociedade que seja baseado na igualdade, na justiça e nos afetos.

*Mariana Mazzini Marcondes, feminista, é professora do Departamento de Administração Pública e Gestão Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Ideologia de gênero: afinal, do que estão falando e do que nós deveríamos falar? – 09/10/2019 – 1/1
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