Imagens da Argélia

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro de Pierre Bourdieu sobre as fotos que tirou na Argélia nos anos 1950 e 1960

A versão estadunidense do livro de Pierre Bourdieu (1930-2002) constitui-se em edição ampliada da original Images d’Algérie (2003), contendo prefácio de Craig Calhoun, introdução de Franz Schultheis (também incluindo entrevista realizada com o sociólogo em junho de 2001), comentário sobre as fotos de autoria de Christine Frisinghelli e relação dos 35 textos (livros, artigos acadêmicos, prefácios e intervenções jornalísticas) que ele escreveu sobre a Argélia.

Pierre Bourdieu chegou à Argélia em outubro de 1955, com 25 anos, para completar o serviço militar. O envio ao país africano foi, na realidade, uma punição pela sua oposição à repressão que a França desencadeou contra sua então colônia, que lutava pela independência, numa sangrenta guerra revolucionária (1954-1962).

Até meses antes de ser mobilizado ele se encontrava lotado em Versalhes. Em 1956 e 1957 leu tudo o que pôde encontrar sobre a Argélia, terminou suas obrigações militares, voltou à França, publicou Sociologie de l’Algérie (1958) e voluntariamente retornou como professor universitário em Argel.

A obra apresenta mais de 160 fotos tiradas por Pierre Bourdieu na Argélia entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1960, em plena agitação bélica e em momento particular de sua trajetória intelectual: sem se dar conta plenamente, estava se convertendo em cientista social, distanciando-se a passos largos de sua formação filosófica refinada.

Na excelente introdução, Schultheis fala que as fotografias – quase duas mil, muitas perdidas, outras sem negativos – ficaram guardadas em caixas empoeiradas durante 40 anos. Apenas algumas foram utilizadas por Pierre Bourdieu em seus livros – casos de Travail et travailleurs en Algérie (com Alain Darbel et.al.,1963); Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (com Abdelmalek Sayad, 1964); Algérie 60; structures économiques et structures temporelles, 1977 – e em artigos. As demais eram inéditas até a publicação de Images d’Algérie e das exibições que ocorreram no Institut du Monde Arabe, em Paris (janeiro e novembro de 2003).

As fotografias de Pierre Bourdieu foram tiradas, não raro, em várias situações dramáticas, como na região de Collo. Fotografar as pessoas era, entendia o pesquisador, uma maneira de dizer a elas: “eu estou interessado em você, estou do seu lado. Irei ouvi-lo e testemunharei o que você está vivenciando” (p.13). Tais fotos nos ajudam a entender melhor, para o caso argelino, as dimensões e consequências da situação econômica e da agitação social que afetam crescentemente setores inteiros da população do país, que se deparava com uma nova lógica, com demandas totalmente flexíveis, que rompiam com a história e com os laços tradicionais que até então experimentaram (p. 4-5).

Pierre Bourdieu explora e documenta a interdependência entre as estruturas econômicas e as estruturas temporais, interessando-se pela fenomenologia das estruturas emocionais, manifestas na análise das formas de sofrimento que resulta do conflito entre disposições mentais e emocionais (o habitus dos atores sociais) e as estruturas econômicas e sociais da sociedade colonial (p. 3).

Olhando as fotos que documentam as abjetas condições e o sofrimento do povo argelino, bem como sua dignidade, graça e determinação,e lendo os excertos fundamentais da obra de Pierre Bourdieu que acompanham tais imagens, é possível estabelecer um paralelo entre o fazendeiro “desenraizado” da Cabila e o empregado desregulado e destruído dos dias atuais nas sociedades capitalistas.

Basta comparar os testemunhos apresentados na obra coletiva que ele organizou, A miséria do mundo, com aqueles transcritos nos livros sobre a Argélia, quarenta anos antes. É por esta razão que Bourdieu falou, sobre suas pesquisas argelinas, o seguinte: “este é meu trabalho mais antigo e ao mesmo tempo o mais atual”.

*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição.

Referência


Pierre Bourdieu. Picturing Algeria. Editado por Franz Schultheis e Christine Frisinghelli. New York, Columbia University Press, 2012, 230 págs. [https://amzn.to/43OFCZU]

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES