Por RENATO ORTIZ*
Trecho, escolhido pelo autor, do livro recém-lançado
Mensuração e mercado
1.
Não é difícil perceber que existe uma homologia entre o espaço dos influenciadores e o espaço do mercado. Por homologia quero dizer, eles são marcados por qualidades afins, embora distintos há entre eles correspondências. Um primeiro aspecto refere-se à segmentação. A sociedade industrial de massa correspondia a um segundo momento da modernidade, de uma certa forma, as noções de taylorismo e fordismo exprimiam bem algumas de suas características (uso o verbo no passado).
A divisão acelerada do trabalho permitia uma eficiência maior da fabricação e padronização dos produtos – no final do século XIX os automóveis eram feitos “à mão”, isto é, um a um, possuíam a aura do original; depois passaram a ser fabricados em série. Por extensão, valorizava-se a homogeneidade do mercado, aquilo que seria comum. O surgimento de uma sociedade de bens de consumo, particularmente nos Estados Unidos, multiplicava a produção de mercadorias em escala exponencial (máquinas fotográficas, lava-louças, fogões, toca-discos, detergentes, etc.).
Neste contexto também a cultura era pensada como sendo de massa, sobretudo o rádio, o cinema e a televisão. Em princípio “todos” teriam acesso a esses meios. A sociedade de massa constituiria assim uma amplitude espacial na qual um amplo espectro de pessoas estaria incluído; nela a distribuição das mercadorias, dos serviços e das manifestações culturais estaria assegurada pelos meios técnicos agora disponíveis.
Neste sentido, o uso do pronome indefinido “todos” é expressivo, denotava a amplitude do mercado de objetos para além das particularidades dos grupos e dos indivíduos. Os tempos flexíveis dos neologismos alteram esse quadro. O atual é semanticamente valorizado enquanto l’embaras du choix. Existe uma multiplicidade de objetos a serem escolhidos por uma multiplicidade de pessoas; objetos e pessoas se conjugam no plural, não mais no singular.
A noção de massa é assim substituída pelas variações de gênero, idade, regiões, classes sociais, cor, etc. O próprio processo de globalização declina-se através da ideia de diferença; sua amplitude é global, mas ele nada tem de homogêneo, a segmentação é a sua marca.
As bolsas Louis Vuitton e os perfumes Chanel encontram-se à vista em diversos lugares do planeta, são produtos globais, entretanto, habitam um espaço hiper-restrito no qual apenas alguns desfrutam o privilégio de acesso. O mundo contemporâneo não é sinônimo do “fim das fronteiras”, mas a confirmação de que novas fronteiras são criadas e as antigas redefinidas. O diverso é a expressão dessas fronteiras.
Esta ênfase na diferença (valorizada pelos movimentos identitários) é traduzida na literatura dos homens de negócios como diversidade, valor a ser preservado e explorado. Fala-se em “cultivar a diversidade”, “administrar a diversidade”, “a diversidade é um desafio”, “as chaves para fazer negócios em um mundo multicultural”, ou seja, procura-se dar atenção aos nichos de consumidores que validam a ideia de segmentação. Internet e mercado são espaços diferenciados no interior do qual determinada intenção se realiza.
2.
Outro aspecto os aproxima, a necessidade de se obter resultados. As estratégias de marketing não podem negligenciar tal aspecto. Publicitários e executivos das empresas enfrentam o mesmo dilema: encontrar e cativar o público consumidor. Há um alvo e o propósito de atingi-lo. A questão da influência, isto é, da ação visando determinado fim, é uma característica intrínseca deste tipo de fazer.
Alfred Chandler, no título de um de seus livros, cunhou uma metáfora sugestiva para apreender este traço do mundo dos negócios: the visible hand. Seu intuito era dialogar com a alegoria de Adam Smith, a “mão invisível” do mercado.
Em sua concepção liberal (na qual a ideia de indivíduo é uma categoria fundamental) o fundador da economia moderna argumentava que o mercado era composto por forças as mais diversas (produtores, distribuidores, vendedores, consumidores), cada uma delas encerrava interesses variados. Daí a pergunta: como a sociedade conseguia ordenar tais atividades independentes entre si e sem uma relação direta entre elas?
Os consumidores de uma mercadoria ignoravam a realidade dos produtores, que por sua vez atuavam em pleno desconhecimento dos distribuidores ou dos vendedores. A magia se realizaria através de uma força imanente, inconsciente dos atores econômicos, apta, porém, para integra-los a um mesmo conjunto: a mão invisível. Ela funcionaria como mecanismo abstrato de um sistema capaz de se autorregular; o capitalismo encontraria em sua própria manifestação os elementos necessários (inconscientes e estruturais) para se organizar, se preservar e se expandir.
Alfred Chandler vê as coisas de outra maneira, é preciso a “mão visível” que ordena os empreendimentos. Surgem assim as teorias de administração das empresas, isto é, um saber sistematizado com o objetivo de gerir os dilemas da concorrência, da produção e distribuição das mercadorias. A razão organizacional guia a intenção (em tempos fordistas ou flexíveis).
Um último aspecto pode ser sublinhado: a recorrência em relação à mensuração. Os estudos mercadológicos sempre promoveram as pesquisas quantitativas e qualitativas (por exemplo, os grupos focais para se entender o gosto e as preferências individuais). As agências de pesquisa têm necessidade em dimensionar o tamanho do público alvo, seja enquanto audiência (no caso da televisão) ou de potencial de consumo.
Uma empresa precisa controlar a opinião e se possível o sentimento do consumidor em relação à sua estratégia de marketing. Esta é a forma de se racionalizar, isto é, de traduzir em padrões objetivos e confiáveis, um conjunto de operações práticas. Trata-se de um imperativo categórico.
3.
Os influenciadores, se definem em função de nichos de audiência, realizam um tipo de atividade cujo objetivo está contido na própria ideia de influência. Neste sentido, a aproximação com o mercado nada tem de surpreendente, eles se completam, a homologia os conduz a um mesmo horizonte de expectativas e realizações.
A internet surge então como um espaço de interação e de promoção de produtos. O conceito empresarial de leads (do inglês, to lead) ilustra bem este aspecto. Trata-se de captar consumidores potenciais que demonstraram algum interesse em determinados produtos ou serviços. O primeiro passo é cadastra-los através de um formulário (e-mail, celular, etc.); depois, oferece-se algumas vantagens para ganhar sua confiança (sorteios, promoções, participação em eventos).
Diz-se em linguagem de marketing, utilizando-se um eufemismo religioso: ao converter os usuários em leads eles tornam-se fiéis. Para isso é preciso diferenciar entre os visitantes do site e os convertidos, tarefa que os algoritmos executam com precisão. A atuação dos influenciadores é cobiçada pela lógica empresarial devido a sua natureza, eles atuam como uma força magnética para captar e prender a atenção dos eventuais clientes.
O vínculo com o mercado se expressa também na ideia de monetização. O termo tinha antes um significado mais restrito, converter algo em dinheiro, e se aplicava a cunhagem de moedas e impressão de papel-moeda. O neologismo lhe concede outra amplitude. Temos agora um procedimento técnico capaz de atribuir valor comercial ao conteúdo veiculado.
O número de visualizações e likes de uma página Web ou de um vídeo transformam-se em indício de rentabilidade. Há regras explícitas que regem a relação entre os parceiros comerciais (para se monetizar um site é preciso um mínimo de 1.000 seguidores e 4 mil horas assistidas nos últimos 12 meses). Mas existem outras formas de remuneração possíveis (daí se considerar o influenciador uma nova profissão): post patrocinados, exibição de infoprodutos, parceria com determinadas marcas ou empresas (publicidade de livros, cursos on line, webinars veiculados via Facebook ou Instagram).
Cada um desses recursos possui um valor, existe inclusive uma codificação de mercado que precifica as atividades disponíveis (por exemplo, no Instagram a utilização de “reels” ou de “stories”). Como os out-doors, as páginas Web transformam-se em espaço publicitário. Há uma expressão para nomear esse tipo de atividade: publis. Método de divulgação das marcas através de pessoas com influência, consideradas relevantes em seus nichos de atuação.
O vocabulário digital se amplia ainda quando se destaca as características desta relevância, como nas citações do mundo científico, os influenciadores tornam-se “referências”, indivíduos que balizam a ação dos outros.
Na verdade, a segmentação das atividades é convergente com os interesses das empresas: a influenciadora especializada em fitness promove produtos para uma vida saudável e o bem estar; alguém especializado em turismo escolhe para seus seguidores os destinos de viagens mais interessantes. A correspondência favorece as afinidades e a conveniência.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Referência

Renato Ortiz. Influência. São Paulo, Editora Alameda, 2025, 132 págs. [https://amzn.to/44eOng6]
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