Por MÁRIO MAESTRI*
A atual iniciativa de Donald Trump tem como objetivo central um afastamento, ainda relativo, da Rússia da República Popular da China, em favor dos EUA, em uma inversão do pacto de inícios dos anos 1970, entre Mao Tsé-Tung e Nixon
Não houve improvisação. Foi uma pensada declaração de guerra. J.D. Vance desembarcou, na 61ª reunião da Conferência sobre a Segurança Europeia de Munich, para lançar um balde d’água na fogueira dos aguerridos defensores do combate à Federação Russa na Ucrânia, até o último ucraniano, como é da tradição. O que era esperado. A enorme perplexidade foi a reprovação geral dos governos da União Europeia, pela nova direção trumpista dos Estados Unidos, que se apresentou como defensora dos direitos democráticos feridos da população do Velho Mundo.
A declaração histórica de 4 de fevereiro não foi uma extravagante mensagem midiática de Donald Trump, no estilo da promessa fantasiosa de conquistar o Canadá, a Groenlândia, o canal do Panamá e de cobrar 500 bilhões de dólares da Ucrânia derrotada. Ela foi proferida pelo vice-presidente dos Estados Unidos, ombreado por elevados responsáveis da nova administração, entre eles, Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA, no grande evento mundial público-privado sobre assuntos militares, momento tradicional de discussão de questões sobre a segurança na Europa e no mundo, em um viés atlantista.
Em 2024, a Conferência contou com em torno de mil participantes, de uma centena de países, e esperava-se para este ano uns sessenta chefes de Estado. [DW, 11/02/2025.] O encontro iniciou sob nuvens sombrias, para os representantes das nações europeias belicistas que seguiam fixados na continuação dos combates na Ucrânia, com a esperança de poder, assim, arrastar os Estados Unidos ao conflito, mesmo contra a vontade da sua atual presidência.
Sem prevenir os aliados históricos de pós-Segunda Guerra Mundial, Donald Trump e Vladimir Putin haviam conversado, por telefone, inesperadamente, na quarta-feira anterior, dia 12, por hora e meia, sobre a paz na Ucrânia e diversas outras questões globais e continentais, o que assusta ainda mais a União Europeia. A trote-galope, Washington e Moscou combinaram reunião, em Riad, na Arábia Saudita, realizada, na terça-feira, 18 de fevereiro, para abrir as discussões de fundo. No encontro, se acertou restaurar as representações diplomáticas russas e estadunidenses, dizimadas pelo governo Biden, como parte do assédio à Federação Russa.
O mundo de pernas para o ar
Donald Trump, após o colóquio com Vladimir Putin, comunicou protocolarmente sua conversação a Volodymyr Zelensky, que sequer fora convidado para a sua posse, apesar de haver diversas vezes mostrado interesse em estar presente, diversas vezes. O período governamental de Volodymyr Zelensky esgotou-se há meses, e ele mesmo impulsionou determinação constitucional ucraniana que torna traidor quem discutir concessões do território nacional.
Volodymyr Zelensky compreende que superou sua data de validade. O fim da guerra preocupa o antigo cômico, eleito propondo aproximar-se da Federação Russa. Com razão, ele teme ser responsabilizado pela derrota total da Ucrânia, pela perda de parte dos territórios da Novaya Russia, por centenas de milhares de ucranianos mortos, pelo comprometimento dos destinos do país por, no mínimo, décadas.
Com seu período presidencial esgotado há meses, o agora presidente biônico dificilmente poderá viver, na Ucrânia, após eleições, que, estariam previstas, segundo filtrações das discussões em Riad, para logo após a suspensão nos combates, para que as discussões finais sejam concluídas e a paz seja assinada por um governo ucraniano legítimo.
Donald Trump reafirmou a proposta de Vladimir Putin da impossibilidade de Volodymyr Zelensky assinar qualquer tratado de paz, por falta de representatividade. E agora, acusou-o, literalmente, de ditador, por resistir a convocar as eleições. Como resposta, a conta de Donald Trump na mídia foi retirada do ar por ordens de Zelensky.
Volodymyr Zelensky dificilmente participará das eleições, devido ao seu desprestígio atual, que é crível que se radicalize com a aproximação da interrupção dos combates e lançamento das candidaturas à presidência. Acredita-se que, após ou mesmo antes das eleições, partirá para viver comodamente no exterior, já que sua permanência na Ucrânia seria impossível, por razões políticas e atinentes à sua segurança pessoal, física e jurídica.
Trump, Xi e Putin na Praça Vermelha
Aterroriza os atuais dirigentes da União Europeia a eventualidade de Donald Trump, ao lado de Xi Jinping, apresentarem-se, ao lado de Vladimir Putin, em 9 de maio, na Praça Vermelha, quando dos festejos dos oitenta anos da vitória sobre o nazismo, na II Guerra Mundial. As celebrações do fim daquele conflito, que ceifou vinte cinco milhões de soviéticos, e da vitória que livrou a Europa do fascismo, serão vitaminadas pelo sucesso na luta contra a ofensiva da Otan na Ucrânia.
Xi Jinping já confirmou sua presença e Vladimir Putin teria declarado a satisfação da Federação Russa em receber Donald Trump na celebração. Caso se concretize esse senário, ele permitirá uma foto icônica, das três lideranças mundiais, ao igual a de Churchill, Stalin e Roosevelt, na Conferência de Yalta, em 1945. Seria um golpe de renguear um cusco, na russofobia da União Europeia, exacerbada nos últimos três anos, e ainda em pleno curso.
Quanto aos ex-aliados europeus do governo democrata estadunidense de Joe Biden, que se esforçam para seguir, um pouco mais, no combate à Federação Russa, Donald Trump sequer comunicou, antes, a decisão de conversar telefonicamente com Vladimir Putin, ou o conteúdo da conversa, após a sua conclusão.
Em uma abertura envenenada, Marco Rubio, secretário de Estado dos USA, propôs que as nações europeias que seguem em surto belicoso serão incorporadas posteriormente às discussões, até porque apenas elas podem suspender as sanções que aprovaram contra a Federação Russa.
Iniciando pelo fim
Na quarta-feira, 19, foi aprovado um novo pacote de sanções contra Moscou, a ser referendado, no dia 24 de fevereiro, terceiro aniversário do início do conflito, pelos ministros de relações exteriores do Bloco, entre eles, os pouco confiáveis ministros da Hungria e da Eslováquia. Trata-se de espécie de desfeita, de dor de cotovelo, da União Europeia, por ter sido abandonada por seu amor da véspera, os Estados Unidos.
No contexto da abertura das negociações, o governo trumpista lembrou que é “ilusório” o retorno à Ucrânia da parte da Novaya Russia perdida e “impraticável” o seu ingresso, hoje ou amanhã, na Otan. E, agora, estaria concordando com a retirada das tropas estadunidenses destacadas por Joe Biden nos países Bálticos, nações minúsculas que babam sangue contra a Federação Russa.
Trataria-se de uma primeira resposta à exigência de Vladimir Putin de um afastamento ainda mais significativo da Otan das fronteiras da Federação. Exigências incontornáveis de Moscou para pôr fim ao conflito, que a Europa belicista e a administração Joe Biden pretendiam negar, total ou parcialmente, a uma Federação Russa dessangrada pela continuação e acirramento dos combates. Tudo financiado e garantido pelos recursos estadunidenses que seguiriam chegando com a vitória de Kamala Harris, que substituiria o senil Joe Biden como vitrine do governo globalista estadunidense.
Abrindo conversações diretas com a Federação Russa, desconhecendo a governança euro-atlantista, Donald Trump lembra que a Rússia venceu o conflito e que foram os democratas globalistas de Biden que o inventaram e o sustentaram. Donald Trump lança, assim, simplesmente, a guerra e Volodymyr Zelensky na conta da passada da administração democrata, que ele se nega a pagar. E, após limpar o terreno, se propõe a resetar a fundo a política internacional estadunidense. Se vai poder, é outra questão.
A guerra continua
É enorme a confusão e a dilaceração atuais do atlantismo europeu, responsável pela adiantada construção de governança supranacional do Velho Mundo a serviço do grande capital globalizado. O Parlamento Europeu e a burocracia da União Europeia, personalizados por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, literalmente governam os governos nacionais europeus. Eles foram santificados como instâncias de gestão democrática, sobretudo após a desfeita de J.D Vance.
Em obediência ao grande capital globalizado, policiam os orçamentos nacionais, impõem cortes de gastos sociais, determinam a repressão à agricultura familiar, avançam o endividamento da população, impõem normas e leis em uma infinidade de domínios, castrando a autonomia nacional e reprimindo a vontade e a oposição da população e dos trabalhadores. E forçam, pela sedução e com tabefes, a inclusão das nações periféricas na União Europeia e na Otan, para estender o raio de sua hegemonia.
Fez parte do projeto globalista, capitaneado, por décadas, pelo imperialismo estadunidense, com destaque para os democratas de Barack Obama e Joe Biden, a desorganização e destruição da Federação Russa e da China, em favor dos EUA e, secundariamente, das nações imperialistas europeias associadas. Os instrumentos escolhidos foram as sanções, o combate econômico, o cerco diplomático, etc. seguidos de conflitos militares indiretos.
O golpe da praça da Independência [Euromaidan], na Ucrânia, em 2014, seguido do assédio militar às repúblicas populares de Donbass, foi uma primeira ambiciosa materialização dessa ofensiva. Ela pretendia desembocar no cerco e na rendição da Federação Russa, que antecederia o ataque à China. Mas deu no que deu. E, agora, os USA, o dono da bola, na guerra na Ucrânia, abandonaram seu time tradicional e começam a se abraçar com os jogadores adversários.
E agora José?
Para a União Europeia, os sucessos em curso são convulsões tectônicas. Eles ameaçam radicalizar o deslizamento, ladeira abaixo, do que resta do antigo poderio europeu. A dependência e submissão do imperialismo europeu ao estadunidense não foram um erro, previsto por Charles De Gaulle, a ser corrigido, como propõem comentaristas europeus, fingindo surpresa e indignação com a situação atual. Foi servidão voluntária, então rentável, por falta de alternativas.
A Inglaterra, que reinava sobre o mundo, se esforça, agora, para não perder a Escócia e a Irlanda do Norte. A poderosa e orgulhosa França, que dominou enorme parte da África Negra, acaba de ser de lá expulsa, aos pontapés, sem sequer poder fazer cara feia. O trumpismo aproveita e impulsiona a perda de conteúdo, e não a destruição da Otan e da União Europeia, para uma mais profícua e rentável relação bilateral com as nações do Velho Mundo e para enfraquecer os aliados europeus de seus inimigos estadunidenses.
As raízes da atual situação são profundas. Em 2024, a eleição de Donald Trump deu-se no contexto de violento confronto de dois blocos capitalistas estadunidenses, com propostas opostas de solução da grave crise, não apenas de hegemonia, em que o país se encontra mergulhado.
O trumpismo, que venceu as eleições, tenta melhorar a posição de setores do grande capital que representa e que lhe são afins. E expõe ao relento e à chuva, aqueles que lhe são adversos e que lhe dão combate. E, como o tempo urge e ruge, o faz com uma voracidade que espanta, denunciada como estranha às praxes e trejeitos diplomáticos tradicionais.
Uma final em 2028
O Bloco Trumpista sabe que não pode perder a iniciativa no jogo, que tem partida eliminatória marcada para 2028. E a voracidade do conflito é tamanha que os perdedores não ficarão apenas com as cascas das batatas, mas as terão como refeição permanente. Donald Trump sabe que, durante esses curtos quatro anos, não arrefecerá a oposição que lhe é feita pelo aparelho de Estado, no mundo econômico e na sociedade estadunidense, pelo grande capital globalizado, com raízes afundadas no establishment e organizado politicamente no Partido Democrata.
As forças estadunidenses anti-Trump contam com poderosos aliados internacionais, com destaque para o euro-atlantismo, que o trumpismo ataca para se defender e sobreviver, não por maldade. Batendo duro na União Europeia, negando-lhe espaço nas discussões com Vladimir Putin, muito mais amplas e ambiciosas do que a simples paz na Ucrânia, o trumpismo procura enfraquecer os opositores, consolidar seus aliados, estabelecer novas parcerias, com destaque para a direita populista, fortíssima na Alemanha e na França, dois dos três pilares, com a Inglaterra, do globalismo euro-atlantista.
A dimensão da quebra geral de pratos iniciada em Munich poderá ser avaliada com a continuação das conversações iniciadas em Riad, na Arábia Saudita. Elas apontam para uma mudança substancial do imperialismo no confronto com a Rússia e, talvez, até mesmo, com a China, o que parece mais difícil, mas não impossível.
Em sua primeira administração, o Topetudo foi ameaçado de impeachment, pelo Partido Democrata e pelo dito Deep State, ao tentar avançar seu projeto de aproximação da Rússia, para afastá-la, até onde fosse possível, da China. Em sentido diametralmente oposto, os democratas globalistas queriam começar o massacre precisamente pela Federação Russa.
Um amor antigo
Hoje, um fortalecido Donald Trump, vencedor inconteste das eleições, com o controle do Congresso e do Senado, se esforça para desmontar a mastodôntica burocracia globalista escrutada no aparelho do Estado, que formata os governos dos EUA, sejam quais forem. O faz para poder reorientar a política externa, pondo em primeiro plano a guerra comercial, em vez dos confrontos militares sem fim, das últimas décadas, construindo uma nova composição internacional, na qual a Europa seria a grande perdedora.
O imperialismo europeu teria queimado as caravelas ao se lançar de cabeça no conflito na Ucrânia, desde 2014, e a radicalizar, confiante, a agressão militar, em fevereiro de 2022, para alcançar um seu objetivo estratégico, a expansão em direção à Eurásia e de suas matérias-primas. Tudo seguindo e escorado nos USA, como tradicional, sob a administração globalista democrata.
Os governos do grande capital europeu prometeram às suas populações uma vitória total e rápida sobre a Federação Russa, proposta como carcomida pela corrupção e com uma indústria em “farrapos”. A mídia apresentou um Putin retirando chips dos refrigeradores para armar mísseis e soldados russos combatendo com pás de cavar trincheiras, por falta de armas. Apologias desvairadas referendadas por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. [CNN Brasil, 14.09.22.]
Bárbaros de nossos sias
Havia apenas que sancionar e isolar, econômica e diplomaticamente, a Federação Russa, para que ela se derretesse como um picolé ao sol. E, se ela não fosse destruída, muito logo, os bárbaros eslavos do sanguinário Putin se esparramariam pela Europa, até os penhascos de Sagres, no extremo sul de Portugal, onde matariam sua fome atávica comendo deliciosos pastéis de nata , sem pagar. A russofobia propõe sem corar uma Rússia, ao mesmo tempo, aos pedaços e capaz de conquistar a União Europeia.
A narrativa da ameaça russa iminente domina, hoje, potenciada, a grande mídia e é verbalizada, diuturnamente, pelas principais lideranças europeias, ao reafirmarem a necessidade de que a Ucrânia enfrente, de uma “posição de força”, uma Federação Russa debilitada, quando das discussões de paz, que, portanto, não poderiam ocorrer agora, enquanto os russos avançam ao longo da linha de combate. Mesmo que nesse esforço para vergar a Federação Russa se bordeje uma guerra geral na Europa, impensável, sem o apoio dos Estados Unidos.
A luta pela derrota e explosão da Federação Russa em nações frágeis canibalizadas em seus infinitos recursos é projeto histórico do colonialismo e, hoje, do imperialismo europeu, que ensaiou, nos últimos séculos, diversas invasões dos atuais territórios russos. Essa conquista-colonização da Eurásia reverteria a atual espiral descendente em que vive o capital e o imperialismo do Velho Mundo.
Com a atual situação, o imperialismo europeu deverá arquivar, entre outros, o projeto de domínio da Eurásia, antes em avançada execução, sem perspectiva de retomá-lo. É enorme a fragilidade da União Europeia, com sua grande economia-líder, a Alemanha, mergulhada há dois anos na depressão, enquanto enfrenta, com a França e a Inglaterra, uma enorme crise política. Para não falar da debilidade militar do imperialismo europeu.
Atualmente, o mais poderoso exército europeu de terra não é o inglês, o francês ou o polonês. É o ucraniano, que não cessa de recuar sob os golpes da Federação Russa, que devia ter destruído.
Parasitas e hospedeiros
Desde a II Guerra Mundial, com algumas dissidências pontuais, o grande capital europeu avança seus objetivos apoiado no Bloco imperialista EUA, que integra como aliados-cliente, já que eles correspondiam plena ou parcialmente aos dos estadunidenses, o chefe da orquestra globalista. O capitalismo e o imperialismo europeu parasitaram a grande nação imperialista, submetendo-se a ela política, diplomática, economicamente. Eles locupletaram-se com a explosão da URSS, com a restauração capitalista no Leste Europeu, com a destruição da Iugoslávia, com o fim da Líbia como nação, etc.
Agora, o globalismo europeu, horrorizado, é mandado se virar, com seus recursos parcos, caso queira avançar suas ofensivas, já que os objetivos dos Estados Unidos trumpeanos são outros e em boa parte antagônicos aos seus. Ao menos por agora. O imperialismo europeu, nesse momento, se vê obrigado a engolir, a seco, uma derrota histórica diante da Federação Russa, na Ucrânia, sobre a qual Trump se lava as mãos dizendo que foi uma guerra de Biden e dos democratas. Servindo-se do que resta de Volodymyr Zelensky, os europeus guerreadores seguem tentando dourar a pílula amarga, posando na foto dos negociadores.
O imperialismo europeu, com destaque para a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Polônia, esperava obter algumas concessões e visibilidade positiva, mesmo mínimas, enviando seus soldados como garantidores da linha divisória entre os exércitos ucranianos e russos, após o fim do conflito. E sonhavam participar da reconstrução da Ucrânia, financiada pela Federação Russa.
Aqueles agressivos Estados correm agora o perigo de serem invadidos, não pelos russos, mas por enormes ondas de imigrantes ucranianos que abandonarão a Ucrânia falida, logo que se suspenda a lei marcial que proíbe a expatriação de ucranianos do sexo masculino, de 18 a 60 anos. E Moscou já declarou que é um direito da Ucrânia aderir ou não à União Europeia …
Firulas para a torcida
Querendo mostrar falsa vitalidade, o presidente francês, Emmanuel Macron, sempre a procura de uma berlinda, convocou, de urgência, para a segunda-feira, 17 de fevereiro, reunião dos chefes da União Europeia e das principais nações europeias belicistas. A reunião tinha como objetivo ensaiar uma resposta pronta às pancadas que receberam em Munich. O resultado da reunião materializou a impotência dos antes soberbos senhores da guerra do Velho Mundo.
No encontro, os governos da Inglaterra, da França e da Suécia [ausente], dispuseram-se a enviar tropas à Ucrânia, como garantes da paz. Mas, nem nisso, os presentes à reunião mostraram unidade. A Alemanha, escaldada na II Guerra Mundial, não quer proximidade com as tropas russas. A Polônia quer seguir posando como a nova grande potência militar europeia, sem correr o risco de fazer a prova dos nove com o vizinho russo.
A Federação Russa já declarou que considera alvo legítimo toda tropa que cruze a fronteira da Ucrânia em guerra. E deixou claro que, em eventuais tropas de pacificação, não aceitará soldados de nações que estiveram na frente da ofensiva travada contra ela na Ucrânia, com destaque, portanto, para Inglaterra, França, Alemanha, Polônia. Já se cogita o envio, para tais funções, de tropas da China, da Índia, do Paquistão, do Brasil …
As declarações da reunião em Paris foram firulas, para a torcida, nos últimos momentos do jogo, por time procurando mascarar a goleada que sofreu. Uma segunda reunião já está marcada, aberta a todos os membros da União Europeia, sendo que alguns já anunciaram que participarão virtualmente, circunscrevendo a importância que dão ao evento.
A vitória da Federação Russa fere fundo o prestígio em picada do imperialismo europeu, precisamente quando começam a ruir as comportas midiáticas, políticas, institucionais, repressivas com as quais ele submeteu e submete as classes populares e trabalhadoras no Velho Continente. Ou seja, o rei começa a desfilar sabendo-se nu, ao igual que enorme parte de seus súditos.
O sentido da peroração
J.D. Vance iniciou seu discurso propondo que compreendia que não seria aplaudido pelos presentes, onde abundavam os altos uniformizados e dignitários da Otan e da União Europeia. E, a seguir, completou, sem dó: “A ameaça com a qual mais me preocupo em relação à Europa não é a Rússia, nem a China, nem nenhum outro ator externo. O que me preocupa é a ameaça interna, o recuo da Europa de alguns de seus valores mais fundamentais.”
Foi dura a impugnação de J.D. Vance da narrativa do imperialismo europeu sobre um próximo ataque russo do Velho Mundo, que anunciam, ao igual que os astrólogos, quando prevêem o fim do mundo, para datas variadas: 2028, 2030, 2035 … O vice-presidente trumpista desorganiza a atual principal campanha na União Europeia pela sua militarização, com a elevação dos gastos militares nacionais a 5% do PIB, uma enormidade.
Para apoiar o mega-endividamento europeu, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, tão dura ao controlar as contas das nações marginais da União Europeia, propõe a suspensão da determinação comunitária que proíbe as nações membros de superarem déficits orçamentários acima dos 3% e dívida sobre os 60% do PIB. [UOL, 14/02/2025.]
Portanto, para gastos militares, pode; não pode para as pensões, saúde, ensino, etc. O endividamento sideral, fala-se de uma enormidade de bilhões de euros, pago por toda a União Europeia, regaria as indústrias militares e aparentadas das nações europeias centrais que as possuem e, logicamente, dos EUA. A política é apoiada e incentivada pelo trumpismo, que a exige para manter alguma presença na Otan, já que vai alimentar sobretudo o complexo militar estadunidense.
A dívida fluvial seria lançada na conta das atuais e futuras gerações do continente, já suportando pesados comprometimentos que não contraíram. Elas exigirão mais cortes, já alcançando os ossos, dos gastos e de investimentos sociais deprimidos. Propõe-se, igualmente, o retorno ao serviço militar obrigatório, um exército continental, milionários investimento em pesquisas armamentista e por aí vai. Para implantar essas medidas, é necessário que a população europeia mergulhe na histeria de uma invasão russa na esquina.
O papa da contrarrevolução
Em sua intervenção em Munich, o vice-presidente estadunidense atacou sem dó a plataforma político-ideológica comum do globalismo euro-estadunidense, que recebera golpe duríssimo, mas em nenhum caso mortal, com a perda da presidência dos Estados Unidos. Como proposto, o trumpismo desembarcou suas tropas em Munich para combater, na Europa, as mesmas forças com que se defronta, nos EUA, nessa luta de antagonistas que se digladiam com foices afiadas em noite escura.
A elocução do J.D. Vance, de entonação magistral e autoritária, no estilo de um pai prepotente e arrogante, descontente com filhos desviados, massageou o amor próprio do conservadorismo antiabortista, do racismo islamofóbico, do cristianismo fundamentalista. Caiu nas graças das multidões horrorizadas pelas propostas apavorantes do wokismo. Mas tudo isso, de significado não descurável, foi confete lançado ao ar na abertura do carnaval. O ranço direitista e ultramontano do discurso trumpista – houve até elogio ao João Paulo II, segundo ele, “um dos mais extraordinários campeões da democracia neste continente ou em qualquer outro” – não deve obliterar o seu sentido histórico, caso se materialize.
A intervenção de J.D. Vance foi preleção político-ideológico, em defesa de amplos direitos democráticos, pisoteados sem dó na Europa, para que a governo supra-nacional europeu mantivesse o programa do globalismo euro-atlantista – foram feridos direito de informação, de opinião, de exercício real de eleição dos representantes, entre outros. Uma campanha de desinformação e desrespeito de direitos civis e democráticos que os Estados Unidos de Joe Biden e inspiraram e financiaram com destaque.
J.D. Vance espinafrou a censura, travestida de combate à “desinformação”, que se lança mão quando se quer silenciar “alguém com um ponto de vista” ou uma “opinião diferente”. Na Europa, em paroxismo securitário, com destaque para após o início do conflito na Ucrânia, silenciaram-se jornais, rádios, revistas. que não reproduziam como papagaio a apologia militarista oficial. Romances de Dostoiévski sumiram de bibliotecas e restaurantes deixaram de oferecer a perigosa “salada russa”.
Não esqueçam a Romênia
J.D. Vance golpeou firme um regime que se propõe democrático, mas desconsidera, ignora e reprime, como “inválidos e indignos”, não merecedores de serem “considerados”, as “preocupações”, as “opiniões”, as “aspirações”, os “apelos por alívio” de milhões de eleitores que se opõem ou se dissociam das políticas e ações oficiais. Uma realidade palpável e gritante na Europa, que não deixa de ser verdadeira e não pode ser ignorada, mesmo dita por uma boca suja e mentirosa.
En passant, o vice-presidente reclamou, também coberto de razão, que os organizadores do encontro de Munich tenham proibido a participação de representantes de movimento “populistas”, fosse ele “de esquerda ou de direita”, em outro registro de agir antidemocrático. Nesse momento, o enorme salão, repleto de altos diplomatas e oficiais uniformizados, mergulhava em profunda contrariedade, propiciando apenas aplausos esqueléticos ao orador, como ele previra.
Mas J.D. Vance matou a cobra e mostrou o bastão. Ao se referir à prática dos dirigentes europeus de sufocar com a violência institucional as populações e eleitores dissidente, apontou firme para a Romênia, onde, apoiado em denúncia fabricada por serviços governamentais de informações, e “sob a enorme pressão” de dirigentes europeus, um tribunal superior do país anulou as eleições, dois dias antes do segundo turno.
Calin Georgescu, o previsto vencedor das eleições, se opunha à transformação do país na primeira trincheira em conflito que a Otan afirma estar preparando contra a Federação Russa. Estão previstas novas eleições, partindo do zero, para o distante 4 de maio, quando se espera desconstruir a candidatura impugnada e eleger um euro-atlantista.
Desculpa furada
Na II Guerra Mundial, a população romena sofreu duramente por seu governo fascista se aliar à Alemanha nazista e participar, com treze divisões e oito brigadas, talvez trezentos mil soldados, da invasão da URSS. Hoje, a maioria da população, de múltiplas inclinações políticas, quer se dar bem com todos, com o Ocidente e o Oriente, com a Otan longe de suas fronteiras.
Sem consultar a população do país, a Otan está construindo a maior base aérea na fronteira com a Federação Russa. Com um perímetro de 30 km., ela abrigará milhares de militares, transformando a Romênia em ponta de lança do belicismo contra a Federação Russa. Os romenos temem, com razão, em se transformar em carvão, por primeiro, no início de um confronto geral.
J.D. Vance lembrou que um eventual financiamento, pela Federação Russa, de algumas “centenas de milhares de dólares”, do candidato anti-Otan, apresentado como razão para a impugnação da vitória já praticamente conquistada de Calin Georgescu, oposto à base militar e favorável à neutralidade da Romênia, não justificaria, jamais, o verdadeiro golpe de Estado constitucional impulsionado naquele país pela União Europeia.
Na Europa e periferia, não há eleições, movimento, revolução colorida, ensaio de golpe que não seja regado com ricos financiamentos, por baixo do poncho e mesmo à luz do dia, por meio de ONGs e associações variadas, pela União Europeia e pelos Estados Unidos, quanto a esse último, muitas vezes através da USAID, como está sendo atualmente revelado pelo trumpismo.
Ninguém fala da Romênia
Até agora, nas respostas ensaiadas a J.D. Vince pelas lideranças europeias melindradas pelas acusações de anti-democratas, não se empreendeu a defesa da anulação das eleições romenas e das medidas em curso para impedir a vitória de um candidato contra a militarização do país. Sobre essa questão espinhosa e grave, prefere-se manter total silêncio.
J.D. Vance instou os governos europeus a não temerem “seus […] eleitores” e a conviver com a possibilidade de que candidatos opositores ganhem as eleições. E registrou o enorme desgosto ao escutar comissário europeu festejando o golpe da Romênia e prometendo que seria repetido, na Alemanha, caso as próximas eleições, no domingo, 23 de fevereiro, não ocorram como Bruxelas, a Otan e o grande capital alemão, europeu e transnacional desejam.
Ao criticar a ameaça de desconhecimento da vitória eleitoral da oposição no país em que se desenvolvia a reunião, ao igual que na Romênia, J.D. Vance pensava no partido “Alternativa para a Alemanha”, em contínuo crescimento. A AfD é um movimento populista de direita, que recolheu a maioria das reivindicações, contra o governo e o euro-atlantismo supranacional, das classes populares e trabalhadoras, desprezadas e abandonadas pelos partidos tradicionais, de direita, centro e esquerda.
A “Alternativa para a Alemanha” é o primeiro partido nos territórios da ex-República Democrática, que segue funcionado como uma espécie de semi-colônia da República Federal Alemã, que a absorveu. A AfD se opõe à governança europeia, procurando recuperar a autonomia do país. É simpática ao retorno do marco e, sobretudo, se opõe à imigração selvagem dos últimos tempos, propondo pôr fim e inverter um fluxo migratório fortemente submetido às determinações e instruções da Comissão Europeia e outros órgãos do governo supra-nacional europeu.
Imigração planejada
J.D. Vance se deteve na “imigração maciça”, lembrando que, na Alemanha, um em cada cinco habitantes chegou do “estrangeiro”. Essa situação, na qual viveria, mais ou menos, toda a Europa, teria sido “resultado de uma séria de decisões conscientes tomadas por políticos de todo o continente”, ao longo de mais de uma década. E lembrou que “nenhum votante” europeu “acudiu às urnas para abrir as comportas a milhões de imigrantes não controlados”. Mel aos ouvidos, não apenas da AfD e do “Reagrupamento Nacional”, o primeiro partido da França, de viés populista de direita, este, sim, no passado, neofascista.
Em 2023, havia 14 milhões de estrangeiros vivendo na Alemanha, com as fronteiras abertas pelo grande capital para baixar os salários e travar o movimento sindical no país. A AfD propõe fechar as fronteiras do país e expatriar os estrangeiros ilegais, política que está sendo abraçada pela direita dita constitucional, não apenas na Alemanha. Donald Trump defende e está aplicando a mesma política nos Estados Unidos, também com larguíssimo apoio entre a população do país, com desataque para os trabalhadores e os imigrantes documentados.
O partido nacionalista e populista alemão simpatiza com o fim da guerra na Ucrânia e o retorno das relações com a Federação Russa. Exige esclarecimento da destruição do Gasoduto Nord Stream 2, impulsionado pela administração Biden, que custara fortunas para a Alemanha e a Rússia. O ato terrorista fez parte das iniciativas para que o gás barato russo fosse substituído pelo mais caro estadunidense. O atual governo alemão se fez de morto, enquanto torpedeavam a economia do país.
Na Europa, a Alemanha conhece regime restritivo dos diretos da população, que prefere, em bom número, não revelar suas opiniões, temendo represálias. O país possui “Departamento Federal de Proteção da Constituição”, que, segundo um seu integrante, monitora “pessoas, grupos e partidos políticos”, tidos por ele como “anticonstitucionais” ou “ameaças à segurança”, sem saber que são espionados e ter, portanto, direito de defesa. O controle é feito por controle de “correspondências e telefonia”, “vigilância on-line”, etc. [German report, 23/04/2024.[1]]
Estado autoritário
A “Alternativa para a Alemanha” vive sob a vigilância e possibilidade de cassação e de outras ações contra seus parlamentares, militantes e simpatizantes, devido a suas opiniões políticas. J.D. Vance se entrevistou com dirigente da AfD, prestigiando a organização, faltando poucos dias para as eleições, dificultando assim sua repressão administrativa. E se negou a se encontrar com o atual chanceler da Alemanha, que, após os USA, foi o grande financiador em armas e recursos da ofensiva contra a Federação Russa na Ucrânia.
Na França, o “Reagrupamento Nacional”, também de viés populista de direita, já é o primeiro partido do país, com um programa próximo ao “Alternativa para a Alemanha”, mas mais comportado, já que procura, nos últimos anos, conquistar o voto conservador tradicional. O partido de Marine Le Pen também recebe o apoio eleitoral de uma enorme fatia do voto popular e dos trabalhadores nacionais, antes dirigidos para os partidos comunistas, socialistas e de extrema-esquerda.
Uma enorme parte da esquerda europeia e extra-europeia centra-se obsessivamente na denúncia do caráter de extrema direita da “Alternativa para a Alemanha”, do “Reagrupamento Nacional” e de outros partidos e movimento similares que chegam a acusar, ao igual que dirigentes e porta-vozes da União Europeia e dos partidos tradicionais, de semi-fascistas e fascistas. Essas avaliações aproximativas constituem, ao menos atualmente, em muitos casos, uma impertinência analítica e categorial.
A anatematização do populismo de direita como fascista e neofascista serve para enormes facções que se reivindicam da esquerda justificar o apoio ao grande capital e aos seus governantes ditos democráticos, não assumindo suas responsabilidades. Mais do que apostrofar o populismo de direita, impõe-se compreender por que dezenas de milhões de populares e trabalhadores europeus votam nele, tendo abandonado os partidos que se dizem de esquerda. E agir em consequência.
O capitalismo é o inimigo
É necessário, sobretudo, encontrar as razões que levam os eleitores populares a confiar no populismo de direita, para avançar suas reivindicações mais sentidas e justas, mesmo quando mal formuladas. Reivindicações que os partidos da direita populista abraçam e reformatam segundo suas orientações políticas, ideológicas, econômicas, ainda que tendencialmente determinados por seu novo eleitorado.
Impõe-se, sobretudo, que os partidos de esquerda superem o afastamento da luta anti-capitalista, que hoje ignoram, e, portanto, retornem às reivindicações populares, abandonadas em favor da defesa de políticas identitárias, wokistas, pretensamente ecológicas, e por aí vai, dirigidas a setores globalizados de classes media, nas quais se enraizaram.
Na Europa, impõe-se a luta contra o governo supranacional do grande capital e por uma Europa do mundo do trabalho. Pela dissolução da Otan, pelo fim da guerra na Ucrânia, pelo fim do cerco à Federação Russa. Pelo combate aos gastos militares e à militarização da sociedade. Em defesa da proteção do mundo do trabalho e da sociedade das vagas de imigração selvagem programadas.
Luta por políticas, iniciativas e legislação para a integração geral das comunidades não nacionais, travadas por defesa oportunista das “maravilhas” de multiculturalismo, onde populações vivem, em um mesmo país, em uma mesma cidade e em uma mesma rua, em seus nichos, falando seus idiomas de origem, sem compreender-se com os nativos e com muitos outros imigrados.
Impõe-se a luta pela manutenção e ampliação dos direitos sociais para todos; o combate ao wokismo e ao identitarismo como novo padrão de integração social; a defesa da população do assalto do capital farmacêutico e hospitalar, são algumas das muitas reivindicações que se chocam com os interesses do grande capital. Mas elas permitiriam que as classes populares e trabalhadoras retornem e reconstruam os partidos que hoje se reivindicam de esquerda.
O que nos espera
É ainda difícil prever o sentido último das conversações iniciadas em Riad, na Arábia Saudita. Já se fala em um próximo encontro entre Vladimir Putin e Donald Trump, sem data marcada, acelerando e concluindo, ainda que parcialmente, as negociações. O fim da guerra na Palestina e na Ucrânia é indiscutivelmente um enorme avanço para as classes trabalhadoras e a população mundial. Ela minora, mas não põe fim, ao enorme sofrimento da população palestina. E afasta a possibilidade de colonização da Eurásia pelo imperialismo e de guerras mais vastas, como desdobramento dos combates na Ucrânia. E deve ser festejada.
A atual iniciativa de Donald Trump tem como objetivo central um afastamento, ainda relativo, da Federação Russa da República Popular da China, em favor dos Estados Unidos, em uma inversão do pacto de inícios dos anos 1970, entre Mao Tsé-Tung e Nixon, em detrimento da URSS. Alguns analistas avançam a possibilidade de que esteja sendo pensado pelos EUA uma recomposição pactuada do poder entre a China, a Rússia, e Washington, deixando a Europa a ver navios.
Essa possibilidade se apoiaria na impossibilidade dos Estados Unidos de se defrontar militarmente com a China, mesmo isolada de Moscou, sem o apoio da Europa, ou seja, da Otan, que o Partido Democrata e Joe Biden pensavam, ao contrário, fortalecer e ampliar. Conflito que o Bloco euro-estadunidense pretendia avançar, depois da derrota da Federação Russa, servindo-se possivelmente da declaração de independência de Taiwan, como espoleta de um conflito regional, como se serviu da Ucrânia, para lançar o ataque à Rússia, no qual fracassou. A declaração de independência de Taiwan é uma linha vermelha posta por Pequim.
Nacional-imperialismo
A administração Trump, inclinada ao confronto econômico e comercial, parece interessada em rediscutir suas relações comerciais com todas as nações, espremendo-as, sem exceções. O que poderia ser, também, um passo atrás, para um posterior confronto mais duro com a China, com os Estados Unidos tornados “great again”. Se for possível. O certo é que novas e múltiplas possibilidades se abrem, apenas mais ou menos assustadoras, para os destinos das populações mundiais.
O trumpismo é, atualmente, apesar de suas ameaças retóricas à Groenlândia, ao Canadá, ao Panamá, etc., um novo ativismo mundial imperialista não belicista, que pôs fim ao conflito aberto na Palestina e pretende concluir a guerra na Ucrânia. O que é relativa e transitoriamente pra lá de positivo. Política e ideologicamente, é uma proposta de direita pré-moderna, um nacional-imperialismo autista, de viés irracionalista, obscurantista e antidemocrático, pouco amigo dos direitos dos trabalhadores e das populações.
A cara feia e brutal do trumpismo tem servido, mesmo na esquerda, como escusas para lamentações pelo recuo e perda de protagonismo mundial das cordiais instituições internacionais, como a ONU, a União Europeia, O Tribunal Penal Internacional, e, sobretudo, do ainda mais gentil imperialismo globalista democrata, defensor do wokismo, dos múltiplos identitarismos, de uma transição verde envenenada, de pós-modernidade que enterra, em todos os sentidos, as classes populares e trabalhadoras.
Viúvas do liberalismo
Se deixa de lado e se esquece rapidamente que o imperialismo globalista democrata (ou republicano) foi o grande responsável pelo genocídio na Palestina e mortandade na Ucrânia, na Iugoslávia, na Síria, no Afeganistão, na Líbia, para não irmos mais longe, não raro apoiado, desculpado ou deixado de mãos livres, pelas ditas instituições internacionais. É patética a choradeira pelos tropeços do liberalismo imperialista na sua versão democrática formal.
O que embaralha ainda mais as cartas lanças atualmente à mesa é que, paradoxalmente, o trumpismo é uma expressão política de facções do grande capital não hegemônico ao nível mundial, onde domina, ainda, o capital transnacional globalizado que perdeu as rédeas, espera-se que momentaneamente, da poderosa nação do Ocidente, em decadência relativa, mas ainda com garras afiadas e dentes atômicos.
Trata-se de um capítulo novo de uma velha novela, com abertura surpreendente, que temos que seguir com extrema atenção, pois os atuais sucessos rocambolescos atingem, envolvem e ferem a sociedade como um todo, com destaque para as classes populares e trabalhadores. Classes trabalhadoras e populares que necessitam invadir os cenários e escrever os roteiros para dominar e por nos eixos um comboio mundial em permanente e cada vez mais perigoso descarrilhamento.[2]
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).
Notas
[1] Entrevista: Josef Christ, juiz do Tribunal Constitucional alemão. Migalhas, 23 de abril de 2024. Disponível aqui.
[2] Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni, da UFRGS.
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