a terra é redonda

Jeremy Corbyn entra em campo

A plataforma eleitoral do líder do Partido Trabalhista britânico reconhece a indignação das multidões. Mas em vez de atiçar seu ressentimento, acena com uma enorme transformação social e ambiental

Por Antonio Martins*

Em época especialmente áspera, quando o neoliberalismo
teima em não sair de cena e emerge, ao mesmo tempo, uma ultradireita pronta
para capturar o sentimento anti-establishment das
maiorias – que espaço resta à esquerda? Fazer concessões à aristocracia
financeira? Assumir a defesa da ordem burguesa, ameaçada pelos protofascistas?

Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista britânico
e personagem incomum na política institucional, acaba de colocar na mesa uma
saída audaciosa, que nega as alternativas anteriores. O Manifesto, a plataforma com a
qual concorrerá às eleições de 12
de dezembro, reconhece a indignação das multidões, diante de um sistema que as
amedronta e as despossui, e de uma “democracia” que já não lhes dá voz alguma. Mas
em vez de atiçar seu ressentimento, em falatório hipócrita contra o sistema,
acena com uma enorme transformação social e ambiental.

Quer financiá-lo por meio de uma reforma tributária de
dimensões históricas e de uma visão heterodoxa sobre finanças públicas. Corbyn
tem apenas três semanas para descontar os cerca de 15 pontos percentuais de vantagem
que as pesquisas dão a seu rival conservador, Boris Johnson – uma espécie de
Donald Trump inglês. Tem contra si o poder econômico e a mídia. Nestas
condições, uma eventual virada – difícil, mas não impossível – terá imensa
repercussão internacional e abrirá novos horizontes para os que defendem e
constroem lógicas pós-capitalistas.

Três eixos essenciais compõem o núcleo do manifesto
trabalhista. O primeiro é um choque de direitos sociais – algo já presente na
trajetória de Corbyn. Em 2015, ele partiu do quase anonimato, derrotou a velha
burocracia do partido e assumiu sua liderança ao propor que o velho Labour reassumisse sua condição de defensor das maiorias, contra
a brutalidade do capital.

Quatro anos depois, apresentou um programa vasto e
coerente de transformação dos serviços públicos. Quer, por exemplo, o fim das
taxas nas universidades públicas – introduzidas, sintomaticamente, por Tony
Blair, trabalhista acomodado. Em compensação, acabará com os subsídios à
educação privada. Defende a revalorização do Sistema Nacional de Saúde (NHS,
inspiração para o SUS), elevando seu orçamento em 4,3% ao ano e tornando
novamente públicos os serviços transferidos, ao longo do tempo, a corporações
empresariais.

Sugere uma vasta reforma urbana. Quer restaurar o
sistema de habitação social que marcou o Reino Unido no pós-guerra, oferecendo
um milhão de casas em uma década. Para ajudar a enfrentar a especulação
imobiliária e a segregação, proporá que as prefeituras sejam autorizadas a
congelar ou mesmo a estabelecer preços máximos para os aluguéis. No programa do
Labour, os transportes serão reorganizados, com a garantia de
passe livre urbano também para os menores de 25 anos e com a expansão da rede
de trens rápidos. Aliás, além das ferrovias, serão renacionalizados a geração
de energia, os correios e a banda larga de internet – gratuita para todos, em
dez anos. A renacionalização dialoga com a crítica contra a piora generalizada
dos serviços entregues à iniciativa privada – um fenômeno global.

Um segundo eixo do Manifesto é de construção mais
recente. Corbyn defende uma sólida agenda de transformações ambientais. Mas, em
sintonia com o Green New Deal proposto
pela deputada latina Alexandra Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, quer dar
também a ela sentido social, articulando-a com a ideia de emprego garantido
para todos. A lógica é simples. Em ruptura com o descaso paquidérmico dos
governos diante do aquecimento global, o Partido Trabalhista tenciona a reduzir
drasticamente as emissões de CO² até 2025.

Mas sabe que, para tanto, não bastam apelos à boa
vontade individual. Quer fazê-lo por meio de uma transformação da matriz
energética do Reino Unido. Sabe que isso exigirá enorme investimento em
infraestrutura. Esta necessidade pode ser uma vantagem: permitirá ocupar milhões
de trabalhadores, hoje desempregados, na construção de centrais eólicas e
solares, na garantia de eletricidade aos que não podem pagar por ela ou na
adaptação de 27 milhões de casas a novas tecnologias mais eficientes.

O desdobramento mais importante, contudo, é político.
Associar a agenda ambiental à garantia de ocupação para todos permite quebrar a
resistência de parte dos trabalhadores (e, em especial, dos sindicatos) às
causas ecológicas.

Ao lançar o Manifesto Corbyn referiu-se explicitamente
aos trabalhadores na indústria do petróleo – que, segundo o programa
trabalhista, deverá ser gradativamente desativada. Propôs que tenham emprego
garantido; direito a retreinamento por seis anos; reincorporação às novas
centrais de energia limpa. A nova postura abre uma enorme avenida política.
Pense, no Brasil, nas milhões de ocupação – das mais elementares às mais
sofisticadas – que seriam necessárias à despoluição dos rios, à garantia de
saneamento básico para todos ou à construção de metrôs e ferrovias.

O terceiro aspecto central do Manifesto é o
financiamento dos dois eixos anteriores. Corbyn propõe um grande esforço para
reduzir a desigualdade, por meio de uma reviravolta tributária. Um “livro cinza” anexo ao programa
explica de onde virão os recursos para realizar as propostas sociais e
ambientais. Em sentido oposto ao neoliberalismo, defende-se o aumento
expressivo dos impostos sobre as grandes corporações (especialmente
multinacionais); cobrança de tributos suplementares das empresas poluidoras;
novos impostos sobre patrimônio (grandes fortunas) e renda (até 50% de desconto
sobre os maiores salários).

Há refinamentos: tributos pouco importantes em
potência arrecadatória, mas de forte caráter dissuasório: um “imposto
milkshake” aos doces e bebidas açucaradas. Uma taxa sobre as embalagens
pretende obrigar os produtores de líquidos engarrafados a eliminar os
vasilhames descartáveis (como as garrafas pet) e reintroduzir os retornáveis.

Embora o resultado da eleição seja incerto, o caminho
percorrido pelo Labour nos últimos
quatro anos é notável. Em 2015, além de derrotado eleitoralmente, o partido vivia
crise existencial. Os trabalhadores o abandonavam, a militância envelhecia. As
campanhas que levaram Corbyn à liderança e lá o mantiveram (ele foi duas vezes
derrubado pela bancada parlamentar e, em seguida, reconduzido pelas bases)
também resultaram em dezenas de milhares de novas filiações. O fantasma
político voltou à vida. Nas eleições parlamentares de 2017, o Labour obteve um resultado surpreendente, que quebrou a
maioria absoluta dos conservadores no Parlamento. Sua volta ao governo parecia
uma questão de tempo.

O processo foi interrompido, porém, pela intensa
polêmica em torno do Brexit. Uma “nova”
direita – expressa principalmente pelo atual primeiro-ministro Boris Johnson e
por Nick Farage, do Partido Independentista do Reino Unido (UKIP) – passou a
apontar a União Europeia (UE) como causa do empobrecimento das maiorias. Os
setores populares lhes deram razão.

A frustração aumentou com as divisões e a incapacidade
do Parlamento para negociar a saída da UE, decidida num plebiscito em 2016.
Assessorado por Steven Bannon, Johnson construiu uma narrativa simplória, por
meio da qual divide o país entre o establishment – que resiste a separar-se do bloco europeu – e ele
próprio, que supostamente quer garantir o desejo da maioria. Seu programa
resume-se, em essência, a concretizar o Brexit.
Sua liderança nas pesquisas vem daí.

O Manifesto lançado pelos trabalhistas é também, nesse
sentido, uma tentativa de resgatar o debate coletivo sobre o futuro, de
livrá-lo das mistificações e fake news, de restaurar o espaço da Política. Por isso, não é só
o destino da Inglaterra que estará em jogo nas próximas semanas.

*Antonio Martins é jornalista, editor do site Outras Palavras

Artigo publicado originalmente no site Outras Palavras.

Jeremy Corbyn entra em campo – 24/11/2019 – 1/1
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