Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*
A narrativa fílmica de “Romero” exemplifica a resistência cristã contra a violência institucionalizada e a injustiça econômica
O cinema, assim como a sociologia, tem vertentes voltadas para o desvendamento das máscaras sociais. O campo católico, em especial, é dividido por tendências, linhas de pensamento conflitantes entre si. Convite para ler Antonio Gramsci e Pierre Bourdieu. “Catolicismos”? Dentre as suas correntes, destaco a teologia da libertação, retratada no filme Romero (1989), dirigido por John Duigan.
O título fílmico é uma alusão ao arcebispo Dom Oscar Romero, uma das referências católicas quando refletimos sobre a imagem de um Cristo libertador, na sua opção preferencial e solidária pelos pobres. Em Romero, a narrativa fílmica mostra o processo da construção de uma liderança religiosa na corporificação dos princípios teológicos de um Cristo comprometido com os ideais de liberdade e justiça social. Com os seus limites institucionais, uma religião em sua faceta não opiácea?
Um sacerdote no enfrentamento de estruturas sociais geradoras de desigualdades, apartações e cerceamentos ao ir e vir. Contextos ditatoriais, autoritários, negadores da cidadania em tempos de violência institucionalizada e morte civil. Diante da iniquidade de situações de atentado contra a vida, qual deve ser a postura de quem diz ser cristão? Cumplicidade, indiferença ou indignação? O que fazer? Nos tribunais coríntios, o exemplo apostólico de Paulo, nos atos dos apóstolos, recebe uma mensagem de encorajamento: “Não tenhas medo; continua a falar e não te cales, porque eu estou contigo” (At 18,9-10). Palavras tortas e cortantes enunciadas pelos discípulos perseguidos e candidatos ao martírio.
Na El Salvador do ano de 1977, sob uma ditadura militar, rebenta um discurso profético, de anúncio evangélico e denúncia contra um regime opressivo, violento e perseguidor de quem ousa combatê-lo. Enfrentamento com risco de perda da própria vida por defender uma sociedade justa, igualitária e livre. Na luta, em nome de um Deus libertário, equânime, aliado das classes sociais exploradas, ecoa uma voz cristã que incomoda e desperta o ódio dos opressores.
No seguimento de um Jesus do lado dos oprimidos, aquele que foi assassinado por desafinar o coro dos contentes do seu tempo histórico, discursa um cristão indignado, inconformado, resistente, seguidor do mestre de um cristianismo voltado para revolucionar um mundo farisaico, de sepulcros caiados, desumano, a serviço do Deus dinheiro.
“Donde estan los desaparecidos”. Pergunta doída de um povo massacrado por uma das bárbaras ditaduras latino-americanas. Diante do grito dos excluídos, desponta um questionamento clerical: “Como posso abençoar uma situação em que pessoas inocentes desaparecem noite após noite?” Com a palavra profética, Dom Oscar Romero nega a sua benção a um ditador serviçal de um capitalismo selvagem, colonizado, incompatível com os valores humanitários, cristãos: “Sou um pastor que junto a seu rebanho começou a aprender uma bonita e difícil verdade. Nossa fé requer que vivamos atentos ao que ocorre neste mundo. Continuo acreditando que a injustiça econômica é a causa principal de nossos problemas. É dela que provém toda a violência. A igreja tem que se identificar com os que lutam pela liberdade, tem que defendê-los e compartilhar de sua perseguição”.
Nas pagelas de um calendário franciscano, encontro as seguintes mensagens: a primeira, do Padre Júlio Lancellotti: “Não adianta falar ‘Deus acima de tudo’ e colocar as pessoas abaixo do nada”. A segunda, do Santo Oscar Romero: “Uma igreja que busca o prestígio sem a dor da cruz não é a igreja autêntica de Cristo”. Dois cristãos discursam em sintonia com uma singular visão sobre quem foi e o que fez Jesus.
Um “Deus encarnado” em uma missão libertadora, a serviço dos oprimidos, na luta por liberdade e justiça social. Missionários que correm riscos de vida por evangelizarem a favor dos pobres invisíveis, apartados e criminalizados. No filme Romero, o padre Rutilio Grande é assassinado por suas ações subversivas, de um agitador cristão. Morto com as mesmas adjetivações lançadas contra o seu mestre Jesus. Este foi adjetivado de subversivo e desordeiro pelas autoridades religiosas e políticas do seu tempo. Os poderosos daquele contexto histórico eliminaram aquela criatura afrontadora e dissonante dos seus interesses diversos.
Uma teologia pé no chão, não encastelada, orientou a práxis do Padre Grande. Os generais e a Guarda Nacional de El Salvador, da segunda metade dos anos 1970, seguiram uma diretriz circulante naquela conjuntura histórica ditatorial: “Seja um patriota mate um padre”. Padres alinhados, proferindo améns para as atitudes dos militares governistas, não corriam perigo. Padre Grande incomodou com as suas pregações libertadoras.
Sem açucaramentos discursivos, tocava nas feridas das relevantes questões, as geradoras de aflições e sofrimentos para as classes populares sob os seus cuidados pastorais. Com a palavra, um clérigo defensor de um Cristo torturado e morto por peitar os podres poderes classistas, exploradores e persistentes na história de todas as sociedades. Bala para quem ousar afrontá-los. Também lutando com as palavras, Padre Grande foi baleado e baleou com a sua ira santa verbal: “Jesus Cristo não está em algum lugar nas nuvens, deitado numa rede. Jesus está aqui embaixo conosco! Construindo seu reino. …Eu não posso amar a Deus, a quem eu não posso ver, se eu não amar a meus irmãos e irmãs, aos quais eu, sim, posso ver”.
“Qualquer um que diga o que pensa sobre a reforma agrária, os salários, ou Deus ou os direitos humanos é automaticamente tachado de comunista. Ele vive atemorizado, eles o levam, o torturam, o matam”.
Jesus Cristo e os seus apóstolos, em especial, foram perseguidos por denunciarem as “estruturas de morte” sustentadas pelas “doutrinas perversas”, dos “lobos ferozes”, em conformidade com expressões evangélicas. Os perversos, reunidos em assembleia, eram representantes dos poderes religiosos e seculares daquele contexto histórico no qual o cristianismo enunciava os seus princípios e valores. Contrários a estes, os aliados políticos eram liderados pelos doutores da lei, o Conselho dos anciãos, o Partido dos fariseus, os saduceus, os sumos sacerdotes. Lideranças judaicas viam, nos partidários de Jesus, uma ameaça aos seus projetos de dominação. A denúncia contra estes, enunciada pelos cristãos, provocou o ódio voltado para os anunciadores do evangelho da justiça social.
“De que formas a religião pode representar uma força tanto para a estabilidade social quanto para a transformação social?” (GIDDENS, 2005, p.453). Uma questão sociológica básica quando pensamos sobre os sentidos das ações religiosas em uma sociedade de classes. A serviço de que interesses agem os sujeitos religiosos? Quais as demandas dos ricos privilegiados? E as dos desfavorecidos?
Na perspectiva do pensamento de Karl Marx, o “elemento ideológico”, ocultador da realidade social e entranhado aos empreendimentos religiosos, levaria o sujeito religioso a “justificar desigualdades em termos de riqueza e de poder”. Nesta direção, as justificativas religiosas da pobreza conduziriam os seus adeptos a um quietismo e a uma aceitação das suas precárias condições materiais. No estímulo a uma postura conformista, de um amém ao ser pobre, o ato religioso representaria “a auto-alienação humana”. Este é um ponto de vista sobre a complexidade das práticas dos usuários do nome de Deus. Os religiosos, modelados pelos Romeros, revelam uma outra faceta, não alienadora, das suas atuações?
No filme Romero, um membro da elite aliada da ditadura salvadorenha, dispara: “A igreja é como uma puta. Ela abrirá as pernas a quem faça a melhor oferta”. Os opositores da teologia da libertação, referenciada por Oscar Romero, entre outros nomes, perseguem a quem discursa a favor dos Lázaros, os seres humanos “anônimos” e tratados como “peças descartáveis”, “fadados à insignificância” no capitalismo neoliberal do dominante Deus mercado.
Deificação descontrolada, não submetida a uma ética e prenhe de injustiças, desigualdades e apartações muradas. Uma sociedade escandalosa, de ostentações, precariedades e negações dos fundamentos ético-cristãos e humanitários. Os teólogos da libertação encaram a pobreza como um “desafio à teologia”, em “um século fascinante e cruel”. “Ao lado dos pobres”, na “solidariedade em Cristo” e no anúncio profético do evangelho, os Romeros indagam: “onde dormirão os pobres?” (GUTIÉRREZ, 2014, p.129).
Em mais uma fala fílmica, Oscar Romero atualiza a crucificação cristã do tempo histórico dos evangelhos para a conjuntura ditatorial de El Salvador do final dos anos 1970. Ao transplantar o drama da cruz para a conjuntura antidemocrática experimentada pelos salvadorenhos, ele revela a atemporalidade da mensagem evangélica libertadora, em sua opção pelos pobres sofredores: “Vocês devem saber que não sofreram sozinhos. Porque vocês são a igreja. São o povo de Deus. São Jesus Cristo, aqui e agora. Ele está crucificado em vocês. Ele está sendo crucificado do mesmo modo que foi crucificado há dois mil anos sobre uma colina de Jerusalém. E quero que saibam que sua dor e seu sofrimento, assim como a dele, contribuirá para a liberação e a redenção de El Salvador”.
Modelos eclesiásticos, em disputa campal, dão visibilidade a posições extremadas. Conservadores e progressistas em dissonâncias sobre o como articular fé e política. Assumindo um posicionamento crítico mais radical, em conexões com os guerrilheiros, o padre Manuel Morantes, com uma arma em punho, questiona Oscar Romero sobre a luta armada nas situações em que são esgotadas as possibilidades de uma solução amistosa, dialogada e pacífica para os conflitos. Ao aludir ao pensamento de Karl Marx, ele abre reflexões em torno de um Cristo adjetivado de revolucionário: “Sou um sacerdote que, como os marxistas e os cristãos, lutamos para libertar o mesmo povo. Jesus Cristo faz parte desta luta. Ele não ficaria sem fazer nada enquanto estivessem assassinando a seu povo. …Como o Senhor pode continuar renunciando à violência quando estão assassinando nossos seres mais queridos? Mesmo o Senhor reconhece nosso direito de nos defender. … Então, que remédio nos resta?”.
Oscar Romero seguiu a trilha dos desafinadores do coro dos contentes e experimentou a sua crucificação por ter sido solidário à luta dos oprimidos. Atento ao grito dos excluídos, sofreu com o seu calvário e trilhou o final reservado para todos os ousados defensores do direito à vida digna para quem é expropriado das condições para sorvê-la. No drama de um seguidor do Jesus Cristo libertador, um epílogo violento: “O Arcebispo Romero foi assassinado em 24 de março de 1980. Ele tinha dito uma verdade preocupante. Muitos preferiram não escutar. Como resultado, entre 1980 e 1989, mais de 60000 salvadorenhos foram mortos. Mas a luta pela paz, pela liberdade, justiça e a dignidade humana continua”.
Consciente dos riscos corridos pelos profetas denunciadores das iniquidades promovidas pelos poderosos dos seus tempos históricos, Oscar Romero legou uma mensagem de resistência histórica: “Muitas vezes me ameaçaram com a morte. Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho. Que meu sangue seja a semente da liberdade e o sinal de que a esperança logo vai se tornar realidade. Morrerá um bispo, mas a igreja de Deus, que é o povo, jamais perecerá”.
*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Referências
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
GUTIÉRREZ, Gustavo & MÜLLER, Gerhard Ludwig. Ao lado dos pobres: Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2014.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA