Karl Marx e Carl Sagan

Imagem: Suzy Hazelwood
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Por GABRIEL TELES*

Não haverá viagem às estrelas sem revolução na Terra.

1.

Carl Sagan sonhou com a humanidade atravessando as vastidões do espaço. Sonhou com naves singrando o escuro infinito, levando a vida — essa centelha tão rara — a outros mundos. Mas havia, em seu sonho, um pressuposto silencioso não percebido por ele: antes de romper as fronteiras do cosmo, seria preciso que a humanidade vencesse a si mesma. Que rompesse suas cadeias internas. Que aprendesse, aqui neste pequeno planeta azul, a se libertar das engrenagens da exploração e da dominação. Sem revolução social, não haverá viagem às estrelas.

Karl Marx jamais falou de buracos negros ou nebulosas. Seu olhar estava voltado para as galáxias invisíveis da produção e reprodução materiais de existência, para as engrenagens que, no chão sujo das fábricas e nas praças revoltosas, determinam quem vive e quem morre. Marx revelou que a história humana não é uma sucessão de progressos inevitáveis, mas a história concreta de luta de classes: entre aqueles que produzem e aqueles que se apropriam da produção, entre aqueles que sonham e aqueles que esmagam sonhos.

Imaginar um encontro entre Karl Marx e Carl Sagan é mais do que ficção: é desenhar a cartografia de uma necessidade histórica. De um lado, a infinita promessa do universo. De outro, a urgente necessidade de transformação aqui na Terra. Não há travessia das estrelas possível sem a travessia do abismo social que ainda separa seres humanos de si mesmos.

Hoje, vivemos a farsa grotesca dos capitalistas que sonham com a colonização espacial: bilionários que, incapazes de partilhar a riqueza da Terra, prometem extrair riquezas de Marte. Construtores de foguetes privados que veem em outros planetas não a possibilidade de novos começos, mas a reprodução de velhas dominações. Querem levar ao cosmos a mesma lógica que apodreceu os rios, devastou as florestas e construiu cidades erguidas sobre a fome: a lógica da mercadoria, da propriedade, do valor.

Essa corrida espacial contemporânea – travada entre magnatas entediados e conglomerados financeiros – não é a continuação do sonho de Carl Sagan. É sua negação caricatural. Em vez da expansão da vida, planejam a expansão do lucro. Em vez da comunhão cósmica, preparam novos enclaves de privilégio, novas fronteiras para a segregação social.

Enquanto as classes dominantes erguem muros e destroem as pontes entre os homens, que direito têm de sonhar com a conquista das estrelas? Enquanto reduzem os campos da Terra a desertos para alimentar a máquina insaciável do lucro, que jardins ousam imaginar em Marte? Enquanto esmagam as vozes dos oprimidos sob o peso do capital, que mensagem poderiam levar a outros mundos, senão o eco de sua própria barbárie?

2.

A verdadeira viagem interestelar começa com a revolução “terrestre”. Começa quando os explorados rompem as correntes que os prendem a uma ordem social fundada na expropriação e na violência. Começa quando as mãos que constroem o mundo recusam-se a aceitar que o mundo seja propriedade de poucos. A emancipação não é apenas uma etapa a ser vencida antes da expansão cósmica: é a própria condição para que essa expansão tenha algum sentido.

Sem transformação radical, a conquista do espaço será apenas a exportação das misérias humanas para novos horizontes. A história da colonização da Terra – feita de genocídios, escravidão e pilhagem – se repetirá em outros mundos, talvez com ainda mais brutalidade. A luta pelo socialismo, pela libertação da humanidade de suas amarras econômicas e políticas, é, paradoxalmente, a luta pela sobrevivência cósmica da espécie. Sem a reorganização radical da vida social, o destino provável da humanidade não será a colonização de outros planetas, mas a própria extinção.

Carl Sagan dizia que somos “poeira das estrelas”. Karl Marx, que somos “trabalho vivo”. Unidos, seus pensamentos revelam um mesmo impulso: a recusa de que a vida seja dominada pela morte, de que a liberdade seja refém da dominação. Viajar às estrelas sem transformar radicalmente nossas relações sociais seria apenas levar nossa barbárie em viagem de turismo interplanetário.

Talvez, em alguma dobra do tempo ou da matéria, Karl Marx e Carl Sagan caminhem juntos, não mais apenas como metáforas, mas como anunciadores de um futuro possível: um futuro em que a Terra seja livre, e os céus, abertos a todos. Um futuro em que não se trate de escapar do planeta, mas de levá-lo conosco – na memória, na potência, na forma de uma vida finalmente reconciliada consigo mesma.

É desse sonho – radical, terrestre e cósmico – que precisamos. Antes que seja tarde demais.

*Gabriel Teles é doutor em sociologia pela USP. Autor, entre outros livros, de Análise marxista dos movimentos sociais (Edições Redelp).

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