Lágrimas por um jovem prefeito

Imagem: Onur
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por MARCO MONDAINI*

Quando um gestor é celebrado como ídolo pop, mas desconhece os clássicos que moldaram seu próprio chão, algo está fora do lugar. Pernambuco, terra de insurreições e poesia, merece mais do que lágrimas de fãs e citações improvisadas

1.

Estávamos eu e meu filho de oito anos num dos polos das festividades de São João na cidade do Recife quando uma pequena aglomeração nos chamou a atenção. Tratava-se da passagem do jovem prefeito da capital pernambucana, João Campos, pela avenida que leva até o ponto originário da cidade – o Marco Zero.

Como costuma acontecer em tais ocasiões, um amontoado de aparelhos celulares ergueu-se na direção do alcaide com a intenção de registrar o seu desfile. Porém, aquilo que mais me impressionou foi a cena de uma jovem mulher que, com o rosto molhado, dizia para que todos a ouvissem: “Eu vi o prefeito! Ele me fez chorar!”.

Já vi pessoas se emocionarem até as lágrimas por terem visto (de perto ou de longe) lideranças políticas do campo de esquerda como o ex-governador Leonel Brizola e o presidente Lula, mas as lágrimas da jovem acima citada tinham um caráter novo, mais assemelhadas àquelas que são vertidas por adolescentes diante de estrelas da música pop.

Pois bem, há poucos dias, li que o jovem alcaide tem conselhos a dar ao governo Lula a fim de que este melhore a sua avaliação em queda numa sequência de pesquisas. Do alto do meu pessimismo, desconfio que o sucesso de João Campos nas redes digitais não o credencia ao posto de conselheiro do governo Lula 3, da mesma forma que a entrada de Sidônio Palmeira na Secom não impactou positivamente a sua popularidade até o momento, muito pelo contrário.

Comunicação é meio e deve estar sintonizada a um “fazer política” que tenha raízes intelectuais no campo que o originou historicamente, para além de familismos. Narro, a seguir, um episódio que parece ter passado despercebido pelos ambientes comunicacionais com o propósito de ilustrar o que acabo de afirmar.

2.

Reeleito prefeito da cidade do Recife, em 6 de outubro de 2024, com uma votação recorde de 725.721 votos (78,11% dos votos válidos), João Campos foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, no dia 28 de outubro, três semanas após a retumbante vitória eleitoral ainda no primeiro turno.

Então, no último bloco do programa, a jornalista Maria Cristina Fernandes, do jornal Valor econômico, fez uma pergunta ao jovem gestor de 31 anos, que o deixou visivelmente desconcertado: quais teriam sido os três livros que o ajudaram a formar a sua visão de Brasil?

Sob certa pressão da jornalista, o filho do ex-governador de Pernambuco por dois mandatos, Eduardo Campos, e bisneto do igualmente ex-governador de Pernambuco por três mandatos, Miguel Arraes, citou os três livros, na seguinte ordem: (i) Como as nações fracassam, dos economistas Daron Acemoglu e James Robinson (2012); (ii) Utopia para realistas, do historiador Rutger Bregman (2014); (iii) Getúlio Vargas – a biografia em 3 volumes escrita pelo jornalista Lira Neto (2012-2014).

Causou-me certo constrangimento não ter ouvido da boca de uma jovem liderança do campo político de centro-esquerda, ex-estudante da mesma Universidade Federal de Pernambuco onde leciono (inobstante o fato de ter feito a sua graduação no curso de Engenharia Civil) e com uma longa vida política pela frente, uma única referência sequer a obras constitutivas da forma (em chave progressista) como a compreensão do Brasil foi sendo construída no decorrer dos séculos XIX e XX, a exemplo daquelas de cinco renomados intelectuais nascidos no Recife e de dois nascido na Paraíba, mas que têm as suas vidas vinculadas visceralmente à cidade do Recife, governada atualmente por João Campos:

(1) O abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1883); (2) Libertinagem, com o clássico “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira (1930); (3) Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1955); (4) Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1955); (5) Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado (1959); (6) Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1974); (7) Crítica à razão dualista Ornitorrinco, de Francisco de Oliveira (1972 e 2003).

É possível que tal lembrança não passe de um ato de pedantismo intelectual frente ao jovem prefeito e presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que surfa na comunicação levada a cabo no espaço cacofônico das redes digitais.

Seja como for, aproprio-me do título do clássico frevo pernambucano composto por Luiz Bandeira para dizer que, isso sim, “é de fazer chorar”.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia. Autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda). [https://amzn.to/3KCQcZt]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES