Levados pelas marés

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Por ROBERTO NORITOMI*

Considerações sobre o filme dirigido por Jia Jia Zhangke

A obra de Jia Jia Zhangke, como é bem sabido, franqueia a entrada para um amplo espectro de leituras sobre a China contemporânea, notadamente aquelas voltadas para a vigorosa modernização econômica e suas consequências sociais e ambientais. Com Levados pelas marés (2024) isso fica mais acentuado, afinal, trata-se de uma espécie de antologia, incomum, da trajetória do cineasta.

Não cabe aqui discutir se foi, ou não, resultado de uma artimanha cômoda para contornar o período pandêmico, mas o fato é que o filme foi composto em grande medida por sobras de sua produção anterior e articulado a um segmento dramático, mais curto, rodado como parte final com o intuito de fazer o arremate. Jia Zhangke recorreu à sua filmografia desde o início dos anos 2000, cobrindo um material imagético, entre ficção e documentário, que coincide com o período do colossal salto chinês no âmbito econômico e tecnológico, desde a adesão à Organização Mundial do Comércio, em 2001, até a consolidação como potência no mercado global.

Assim, a síntese fílmica acabou convergindo com a histórica e se converteu num épico sobre China recente. Como lastro diegético para criar a urdidura narrativa, Jia Zhangke aproveitou, desse repertório de imagens, cenas com dois personagens (e intérpretes) recorrentes desde Prazeres desconhecidos (2002), Qiaoqiao e Guo Bin, e concebeu as desventuras de um casal da cidade de Da Tong, região igualmente recorrente, ao longo de vinte anos.

Levados pelas marés, portanto, reapresenta o escopo temático, a baliza temporal e geográfica e a tipologia de personagens que caracterizam Jia Zhangke. Logo, não haveria nada de novo no front e qualquer comentário sobre seu conteúdo pisaria terreno batido. No entanto, a fatura peculiar da obra, particularmente no que seria a sua primeira parte, permite ir muito além do que o enredo e o referencial temático oferecem.

E isso se deve ao trabalho de montagem. Como foi dito, Jia Zhangke revisitou sua filmografia, extraiu as imagens de seus contextos originais, conferiu-lhes autonomia e as tornou disponíveis para ganharem combinações inéditas em uma nova obra. Um material vasto, de diversos gêneros e formatos de tela, foi recortado e manipulado para obter sentidos atualizados. Com todo o poder que chancela a mesa de edição, o cineasta liberou sequências e cenas do peso narrativo de nascença para que elas pudessem ser recompostas em novas justaposições, dissonantes temporal e espacialmente, e com novos e maiores ganhos semânticos.

Uma expressão direta desse procedimento foi ter evitado disfarçar o artifício de remontagem, ou seja, não houve um ajuste técnico da manipulação que as imagens sofreram para sustentar o percurso no qual o filme se assenta. Isso não quer dizer que se rompeu totalmente com a solução de continuidade, mas há momentos em que isso é bem abalado. Uma cena não é seguida necessariamente por outra que lhe seja diegeticamente associada, como no corte clássico.

Aliás, a diegese é apenas uma pálida presença no que seria a primeira parte da obra. Cada ato se encerra nos limites entre os cortes, sem conexão direta e lógica com eventos anteriores ou posteriores. Isso fica nítido na longa sequência inicial, na qual se sucedem várias cenas independentes: um grupo de mulheres cantando numa pequena sala; closes no monumento para a missão espacial tripulada; pessoas, Qiaoqiao entre elas, sob chuva e vento à beira de uma estrada; homens sentados numa escadaria aguardando para serem fotografados; um trem de carga passando; trabalhadores conversando durante o descanso.

Ainda que pudessem ser vistas como a contextualização de uma possível história que se inicia, nada permite dizer que ali há qualquer relação espacial, temporal ou dramática. As dificuldades aumentam quando vemos Qiaoqiao dançando numa danceteria e, repentinamente, corta-se para o espetáculo de um homem que ergue dois baldes pesados com uma corrente espetada nas pálpebras. Numa outra cena desponta a imagem de uma sala de jogos eletrônicos que não tem a mínima relação com qualquer outro momento do filme.

Fica-se desorientado quanto ao que pertence à “história”, pois o lance de dados parece dar o rumo. O encadeamento “acidentado” de cenas solicita do espectador atenção, interesse e reflexão para vislumbrar ali a existência ou irrelevância de qualquer enredo.

Essas exigências são reforçadas pela justaposição de imagens extraídas de registros diversos. Uma cena ficcional pode ser sucedida por um trecho documentário, uma entrevista ou planos fixos de objetos ou pessoas imóveis. Até mesmo a variação de formatos de tela é explícita, sendo notória a sucessão de diferentes proporções de tela, o que imprime a visão de uma costura de retalhos.

Como apontado acima, a montagem não se quer invisível e deixa entrever os desníveis de captação e contrastes de textura. Ao realizar essa justaposição, Jia Zhangke dilui a linhas divisórias entre os gêneros e coloca no mesmo patamar o drama encenado e a realidade documental, ou seja, não há uma hierarquia clara entre o diegético e o extra-diegético. Os personagens perdem o protagonismo e se fundem ao ambiente, que vem ao primeiro plano.

Na sequência em Fengjie, em sua saga atrás de Guo Bin, Qiaoqiao é mais uma na multidão de moradores, caminhando a esmo e se misturando a eles. A câmera se desvincula do personagem, ganha autonomia e se abre em panorâmicas e planos longos sobre os remanescentes da cidade condenada a dar lugar para a futura represa. O que importa é perscrutar tudo que o campo visual oferece, sem que haja uma “pista” a ser identificada e seguida. Por isso a postura ativa, desperta, do espectador é fundamental.

A montagem confere relevo a cada cena, independente de eventual função narrativa que ela tenha, e isso impõe a necessidade de atenção com a verticalidade, não apenas com a horizontalidade fílmica. O olhar é incitado a desacelerar, se tornar menos ansioso quanto ao que virá e descer na profundeza das imagens. Evidentmente que é fundamental pensar a cena na sua relação com a anterior e com a posterior, e com qualquer outra, afinal se trata de cinema, mas também é preciso se deter na densidade singular do campo visual em si, na sua plástica e sonoridade.

Mais uma vez, o caso do grupo de mulheres que ensaia canções populares para a celebração do dia da mulher é particularmente interessante. Em que pese o fato de que aquela situação adquira uma rica carga significativa ao ser contrastada com o processo de difusão do padrão pop estrangeiro que se verá em cenas posteriores, a cena merece ser apreendida enquanto tal. O foco demorado e o deslocamento lento com os quais a câmera capta as mulheres e os objetos em cena convoca a paciência do olhar para que se vislumbre uma experiência social única.

Um modo de vida está inscrito nos cantares, risos, posturas e gestos daquelas pessoas, e também na parede e no mobiliário, em especial na chaleira fumegante no fogão à lenha e no pote de conserva logo acima. A sequência se encerra carregada de simbolismo, com a câmera se deslocando do pote de conserva, passando pela fumaça vinda da chaleira e enquadrando, através da janela, um monumento feito para a primeira missão espacial tripulada (Shenzhou-5); na banda sonora ouve-se o anúncio da Phoenix InfoNews.

Outra sequência que deve ser lembrada aqui ocorre quando Qiaoqiao caminha pelo cenário de destruição de Fengjie. A panorâmica sobre os destroços sofre um corte, um plano fixo é interposto e nele se tem ao centro uma bota de borracha azul disposta sobre o entulho às margens do rio Yangtsé. O plano congela o instante e ressalta, quase em close, a bota, conferindo-lhe a autonomia de um objeto que merece atenção como um dado concreto e significativo.

Ainda nesse plano, é possível notar a remissão direta que o objeto faz a Em busca da vida (2006), filme do qual provém a quase totalidade de imagens dessas sequências em que Qiaoqiao e Guo Bin estão em Fengjie. A diferença, importante, é que no filme anterior a bota é mais um objeto entre outros e não chama atenção dentro do plano de conjunto. Portanto, não se trata apenas de uma citação, mas de algo que suscita uma observação mais acurada.

A câmera de Jia Zhangke é voraz, porém não tem pressa. As sequências, com poucos cortes, se esforçam para compreender e colher cada átimo, cada detalhe ínfimo e limítrofe, da vida em suas variadas manifestações. A duração estendida dos planos sobre pessoas, objetos e situações, por mais banais que sejam, manifesta um respeito ao transcurso do tempo de um mundo cujo andamento é diverso daquele de quem está atrás das câmeras. Jia Zhangke pretende absorver a íntegra essa realidade contínua e ao mesmo tempo reconhece a tarefa inútil, revelada pela descontinuidade da montagem.

Mas todo esse respeito procura fixar e resguardar, em sua inteireza física e moral, seres que estão com seus dias contados. Não se pretende, contudo, embalsamar aquelas figuras e acondicioná-las numa redoma, como num ato museológico, mas garantir-lhes alguma forma de permanência viva. São trabalhadores, pequenas comunidades, práticas culturais, formas de existir, espaços coletivos e ambientes naturais que se tornaram anacrônicos e não têm mais lugar na ordem que emerge (ou se atualiza). Reconhece-se que não há nada a ser feito, e Jia Zhangke não é um reacionário lutando contra o processo, mas as imagens de seu cinema oferecem solidariedade a quem foi ou está sendo levado pela maré dos novos tempos.

Quanto a isso, a sequência que abre o filme é bastante eloquente. É noite. Um homem em pé, provavelmente um operário, visto de perfil e depois pelas costas, segura uma chave inglesa e observa firme uma fogueira um pouco à frente e um conjunto de fábricas mais adiante, ao fundo. Ocorre um close na fogueira crepitante e começa-se a ouvir a base pesada e os versos de uma música de heavy metal. Os versos dizem: “nem mesmo um incêndio na floresta vai queimar todas as ervas daninhas; elas voltarão a crescer sob a brisa primaveril”.

A “mensagem de abertura”, praticamente uma epígrafe visual e verbal, dá o tom do que se verá. Aquele operário postado como um guerreiro não é acidental. A persistência das “ervas daninhas” se depreende do rosto exaurido dos trabalhadores, da animação das mulheres cantando coletivamente, das apresentações musicais em teatros populares, dos pedestres na rua pacata ao cair da tarde no centro de Da Tong, dos moradores removidos de Fengjie etc. A maneira compreensiva de filmar de Jia Zhangke indica que ele usa sua lente para salvar as pessoas do tempo cronológico e dar-lhes eternidade.

Essa postura estética, que desvela uma ética, confronta a perspectiva de progresso, impulsionado por vetores capitalistas, contido no discurso grandiloquente que pontua o filme por meio dos noticiários. Tais noticiários em over, com entonação oficial mesmo quando de redes privadas, irrompem como uma voz divina, ou do estado onipotente, de localização indeterminada – extra-diegética – que destaca a datação da ascensão épica chinesa.

Começa-se com a adesão à Organização Mundial do Comércio, pelas mãos de Jiang Zemin, passa-se pela primeira missão espacial tripulada (Shenzhou-5), a construção da represa de Três Gargantas, os Jogos Olímpicos de Pequim etc. À essa demarcação histórica, e abstrata, posta pelos anúncios dos grandes acontecimentos, Jia Zhangke contrapõe suas longas e contemplativas sequências com flagrantes da vida cotidiana e “retratos” das pessoas comuns e concretas.

Além dessa contraposição entre a grandiloquência dos feitos oficiais e a vida comesinha, o filme também alveja, com certa ironia, o progresso técnico e econômico. A estátua em referência ao voo espacial se torna uma homenagem envelhecida e indiferente; a alardeada entrada no mercado mundial (via OMC) é rebatida pela privatização e exploração comercial do Palácio de Cultura dos Trabalhadores de Da Tong. O progresso, da maneira como está avançando, atropela os próprios beneficiários potenciais dele. Desse modo, ao dar acolhida e singularidade aos que vão sendo relegados às margens, Jia Zhangke subverte o sentido épico da história oficial. Mas o embate é árduo e o caminho parece se estreitar inapelavelmente a passos largos.

Os primeiros sinais desse estreitamento surjem quando Guo Bin envia mensagem de texto para Zao Thao explicando sua decisão de partir sozinho de Da Tong. Na tela do celular desfilam os ideogramas. A palavra escrita vem em socorro do espectador cioso do “fio da meada” e a situação fica menos cifrada. A partir desse momento, há um motivo sabido para as atitudes dos personagens. O filme adquire “sentido”, a unidade dramática se instaura e a câmera assume, alternadamente, o ponto de vista dos dois personagens, que até então estavam despersonalizados e enredados nas imagens coletivas que não lhes definiam uma centralidade clara.

A convergência narrativa se dará em Fengjie, onde se encontrarão Guo Bin e Qiaoqiao, durante a demolição e evacuação da cidade para a construção de Três Gargantas. Aqui a inserção de cenas documentais extra-diegéticas cessará e a dispersão imagética vista até então cederá lugar ao enfeixamento das cenas em sequências delimitadas e menos crispadas pela montagem descontínua.

Ainda haverá longas panorâmicas dos escombros e dos moradores que serão removidos, há também algumas outras sequências de errância por plantas industriais ou edificações abandonadas, mas isso ocorrerá pelo olhar de Qiaoqiao, que assume o protagonismo e conduzirá o espectador. É ela que encontrará Guo Bin e romperá a relação com ele. O vínculo que mal se dava a conhecer na fase inicial do filme agora se finda, novamente com apoio na palavra escrita (intertítulos, desta vez), que esclarece aquilo que as imagens arredias não entregavam facilmente. Nesse momento o filme começa a perder fôlego e a entregar os pontos. A montagem ousada e elíptica será substituída pela linearidade e a segurança do drama encenado da parte final.

A decisão de Qiaoqiao de pôr a termo a relação fecha o que seria a primeira parte do filme. A transição para o final é abrupta, simulando a troca de um rolo de filme por outro, como se fazia na sala de projeção antes da era digital. Esse ato resume o salto diegético até o presente (2022) e a mudança estética já apontada. Daí segue-se uma sequência na qual em primeiro plano há um agricultor empurrando um arado motorizado e em segundo plano se vê um avião de passageiros decolando.

Dentro do avião está Guo Bin, iniciando sua tortuosa jornada de volta a Da Tong em plena pandemia. A transição artificiosa indica a entrada do filme na completa estabilidade narrativa, sem as dispersões e os sobressaltos das cenas dos documentários. O múltiplo e diverso do início dá lugar para o unificado e padronizado. Da Tong não é mais a cidade das variadas e inesperadas experiências. Tudo converge para o enredo bem aparado do reencontro, que chega ao ápice na “coincidência” dos olhares no caixa do supermercado. O destino suplanta o acaso.

O filme envereda para um esquematismo ostensivo, principalmente no contraste entre as precariedades do passado e as comodidades e o consumismo do presente. O progresso venceu e o futuro chegou sob a forma de celulares sofisticados, da afluência material, dos telões digitais nas ruas, dos robôs em hipermercados, dos edifícios assépticos etc. A vida é desbastada das suas arestas e se homogeiniza numa grande arena mercantil em que prevalecem o consumo e a sofisticação tecnológica. Não há mais figuras e práticas anacrônicas atritando o fluxo das cenas e do progresso nacional.

Jia Zhangke optou por resolver as dissonâncias coletivas iniciais ancorando-se no drama privado de seus dois personagens. É a capitulação de um filme que inicialmente usou a lida com as imagens e a desobediência narrativa para se solidarizar com as multidões que estavam saindo de cena.

De toda forma, Levados pelas marés traz inquietação estética e posicionamento político.

*Roberto Noritomi é doutor em sociologia pela USP.

Referência


Levados pelas Marés (Feng Liu Yi Daí).
China, 2024, 111 minutos.
Direção: Jia Zhangke
Roteiro: Jia Jia Zhangke / Wan Jiahuan
Elenco: Zhao Tao, Li Zhubin, Pan Jianlin, Lan Zhou, Zhou You


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