Lilia Schwarcz, Beyoncé, George Floyd e João Pedro

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Novos ângulos da polêmica à luz da obra de Frantz Fanon

Gostaria de iniciar essas breves linhas ressaltando que o autor destas é um homem negro. E o faço não para conferir autoridade ou legitimidade, advinda por alguma espécie de pertencimento étnico ou racial, às questões que levanto, e sim para reafirmar a pluralidade e multiplicidade das perspectivas negras. Obviamente como negro me coloco veementemente nas trincheiras da luta antirracista em seus vários aspectos reprodutivos na sociedade brasileira.

Dito isso, passo à polêmica da vez, o texto publicado por Lilia Schwarcz no jornal Folha de S. Paulo sobre o filme Black is King de Beyoncé. Afirmo nesse sentido, que não tenho a pretensão desnecessária de fazer algo que a própria pesquisadora não o fez: a defesa de seu texto. A historiadora e antropóloga admitiu seu erro e se desculpou com a comunidade negra brasileira em geral. Ademais não possuo a competência e talento de meus colegas e minhas colegas negros e negras para tratar o assunto da perspectiva que o fizeram, pois, feliz ou infelizmente, a agenda de pesquisa a que dediquei minha formação como pesquisador na academia é outra.

Minha voz aqui é dissonante, por isso, iniciei estas linhas ressaltando a pluralidade e a multiplicidade das perspectivas negras.Desloco-me, de certo modo, de muitas crítica (qualificadas) tecidas por meus pares, pesquisadores e pesquisadoras negras. O ponto de partida da polêmica é o filme Black is King de Beyoncé e a crítica que Schwarcz fez a ele. Em si mesmo tanto o filme como a crítica, e a crítica da crítica são fundamentais e positivos para nossos debates públicos acerca de questões candentes. No caso o racismo nas sociedades estadunidense e brasileira.

Ao fazer uma crítica à ressignificação que Beyoncé faz da ancestralidade negra – agora, segundo o crivo da antropóloga, glamourizada via os padrões atuais da dita indústria cultural – Lilia Schwarcz recebeu desaprovações de intelectuais, pesquisadores, ativistas e figuras públicas negras. Argumentou-se que ela fala do espaço de mulher branca; que ela não problematiza sua branquitude (um conceito fora de lugar, mas esse é tema para outro debate); que ela de modo arrogante e prepotente desejou ensinar e dizer a Beyoncé como se faz luta antirracista; que ela, por ser branca privilegiada não compreende a importância da posição da maior artista pop viva, assim como da potência educativa e representativa de ela encenar o passado belo dos povos negros em África.

Assim, por localizar-se no território da branquitude, Lilia Schwarcz não está autorizada a expressar a crítica nestes termos, isto é criticar uma artista negra elaborando teatral e musicalmente o passado de seus ancestrais em África. Que seja. Mas alguns e algumas estão, como nos mostra o legado de Frantz Fanon. O problema de reivindicar o passado da negritude já foi tratado por ele na sua obra [Peles Negras Máscaras Brancas, Edufba, 2008] e atividade intelectual. (Não obviamente do mesmo lugar que faz sua enunciação Lilia Schwarcz.) Percorrendo a trilha da obra do psicanalista martiniquense vemos o alerta que fazia, quando atuante em congressos, encontros de escritores negros e trabalhando em hospitais psiquiátricos,sobre o ardil de considerar-se o passado produzido em algum lugar do tempo histórico (africano) como recurso para as lutas contra o racismo. Seguindo, também aqui, o pesquisador que melhor vem interpretando Fanon no Brasil, o sociólogo Deivison M. Faustino da Unifesp [ver Frantz Fanon: um revolucionário peculiarmente negro, Ciclo Contínuo Editorial, 2018] importa observar que este modo de travar a luta é um inconveniente duvidoso, dado que a consideração positiva de aspectos da cultura africana feita inteiramente é agir como o branco europeu. Estes abordam sua cultura enquanto fundamento existencial geral e completo para toda a “humanidade”. Fanon via aquilo como efeito insinuante e problemático do racismo. Nos termos de Faustino: era (e é) um fetichismo que “inverte os polos da hierarquia”. É como se ao incensar Black is King estivéssemos inocentemente transformando a luta antirracista em elogio à essencialidade da nossa “musicalidade”, “ritmo”, emoção – estes sendo “superiores e desejáveis ante” a cultura branca europeia. Ou seja, uma inversão pouco efetiva do ponto de vista político.

Seria equivocado, portanto, argumentava Fanon ir em busca de um lugar cultural e simbólico longínquo em “detrimento de uma realidade objetivamente desumanizada” (Deivison M. Faustino). Com efeito, é urgente dirá Fanon, estarmos a impulsionar nossas ações a partir das pessoas reais que sofrem o racismo e que de certa maneira produzem cultura de resistência.Por outras palavras, é “necessário ir além da afirmação das especificidades culturais, historicamente negadas”.

Isto significa dizer que a posição de Beyoncé (ainda que não se saiba efetivamente quais as suas intenções) pode ser colocada em questão. Senão por Lilia Schwarcz ao menos por aqueles que discordam deste evento da cultura iniciado por aquela e que também não se encantam irrestritamente pelas argúcias do mainstream.Black is King (e os que o defendem) pressupõe os negros como que vivendo no “mesmo saco” histórico e contemporâneo. É como se todos os negros e negras tivessem em um passado de glória e riqueza existido (e vivido) como o quer a cantora pop, e como se na contemporaneidade (e no futuro) todos os negros e negras pretendessem a reivindicação virtuosa de um lugar histórico-cultural completa e “incondicionalmente” (Fanon/Faustino) elogioso. Haveria que se perguntar, num exercício imaginativo, a Rafiki o sentido histórico-existencial mesmo de ele ter segurado Simba com a força de seus braços no alto da montanha; e devolvendo a pergunta a nós, negros e negras espalhados pelo “Atlântico Negro” se as exigências antirracistas de Beyoncé e dos que a defendem é a mesma da de George Floyd, João Pedro, Miguel, do entregadores de aplicativos e tantos outros e outras?

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Priscila Figueiredo Francisco Pereira de Farias Sergio Amadeu da Silveira Marcos Aurélio da Silva Celso Favaretto Henri Acselrad Celso Frederico Yuri Martins-Fontes Carla Teixeira André Márcio Neves Soares Boaventura de Sousa Santos Andrés del Río Luiz Marques Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Leonardo Sacramento Annateresa Fabris Ronald Rocha Walnice Nogueira Galvão Ladislau Dowbor Paulo Martins Salem Nasser Caio Bugiato Luciano Nascimento Michael Roberts Rafael R. Ioris José Costa Júnior Andrew Korybko Rubens Pinto Lyra José Dirceu Paulo Nogueira Batista Jr José Geraldo Couto André Singer Milton Pinheiro Benicio Viero Schmidt Julian Rodrigues Jorge Branco Antonino Infranca Ricardo Abramovay Francisco Fernandes Ladeira Elias Jabbour Marilena Chauí Manchetômetro Eugênio Trivinho Daniel Afonso da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Gilberto Lopes Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza Antonio Martins Armando Boito Igor Felippe Santos Alexandre de Freitas Barbosa Maria Rita Kehl Mariarosaria Fabris João Adolfo Hansen José Luís Fiori Chico Alencar José Micaelson Lacerda Morais Gabriel Cohn Sandra Bitencourt Bernardo Ricupero Gilberto Maringoni Vinício Carrilho Martinez Fábio Konder Comparato Jorge Luiz Souto Maior Valerio Arcary Vladimir Safatle Samuel Kilsztajn Alysson Leandro Mascaro Mário Maestri Luiz Renato Martins Fernando Nogueira da Costa João Paulo Ayub Fonseca Luiz Carlos Bresser-Pereira Leda Maria Paulani Everaldo de Oliveira Andrade Rodrigo de Faria Eliziário Andrade Airton Paschoa José Raimundo Trindade Tarso Genro Bento Prado Jr. Érico Andrade Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Eduardo Soares Flávio Aguiar Juarez Guimarães Alexandre Aragão de Albuquerque Ronald León Núñez Renato Dagnino Luiz Bernardo Pericás João Carlos Salles Valerio Arcary Atilio A. Boron Otaviano Helene Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Guimarães Lima João Feres Júnior Luís Fernando Vitagliano José Machado Moita Neto Vanderlei Tenório Thomas Piketty Marilia Pacheco Fiorillo Marjorie C. Marona Leonardo Avritzer Paulo Sérgio Pinheiro Michel Goulart da Silva Daniel Costa Francisco de Oliveira Barros Júnior Manuel Domingos Neto Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Luiz Werneck Vianna João Carlos Loebens Bruno Machado João Sette Whitaker Ferreira Claudio Katz Gerson Almeida Lucas Fiaschetti Estevez Lincoln Secco Ricardo Antunes Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges Eleonora Albano Luis Felipe Miguel Lorenzo Vitral Osvaldo Coggiola Antônio Sales Rios Neto Chico Whitaker Marcelo Módolo Jean Pierre Chauvin Ari Marcelo Solon Paulo Fernandes Silveira Berenice Bento Michael Löwy Leonardo Boff João Lanari Bo Dennis Oliveira Slavoj Žižek Dênis de Moraes Marcos Silva Tales Ab'Sáber Afrânio Catani Carlos Tautz Liszt Vieira Daniel Brazil Luiz Roberto Alves Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Capel Narvai Ricardo Musse Anselm Jappe Eugênio Bucci Fernão Pessoa Ramos Eleutério F. S. Prado Tadeu Valadares Henry Burnett Marcus Ianoni Kátia Gerab Baggio Denilson Cordeiro

NOVAS PUBLICAÇÕES