Por MATTHEW KARP*
Os republicanos têm um tripé de governo, mas a blitzkrieg de Donald Trump ocorreu quase inteiramente por meio de ordens executivas – um sinal de fraqueza, não de força
O mundo político dos EUA hoje pode ser dividido não apenas em direita e esquerda, mas também por outro eixo: maximalistas e minimalistas de Donald Trump. Os maximalistas estão inclinados a ver Donald Trump como um agente ou condutor de uma ruptura histórica repentina, seja essa a transformação do sistema partidário, a destruição da democracia americana ou a implosão da ordem liberal mundial.
Minimalistas veem Donald Trump não como uma quebra fundamental, mas como um símbolo sombrio de desenvolvimentos de maior duração, ou como um sintoma de outras crises – um buraco negro que rouba a atenção dos verdadeiros problemas políticos.
Essa não é um recorte limpo do ponto de vista partidário ou ideológico, o que o torna interessante. Muitos liberais conhecidos são maximalistas, é claro – alguns recentemente se mudaram para o Canadá por medo ou do ou em protesto ao regime tirânico; existem conservadores maximalistas também, em geral colunistas de jornal com inclinação à direita, que mobilizaram poucos votos, mas tiveram um impacto desproporcional na forma e no tom da política anti-Trump.
Apesar de alguma discordância, liberais e conservadores maximalistas se unem ao enxergarem o Presidente como o principal e muitas vezes único assunto na política nacional; os dois também rapidamente se alistaram nas “guerras do fascismo”, frequentemente brandindo a “palavra do F” como uma clava para disciplinar a esquerda durante as eleições e em outros contextos.
No entanto, existe também um minimalismo compensatório do centro. Isso foi articulado por James Carville, que em fevereiro aconselhou os democratas a “rolar de lado e se fingir de morto” – eles são excelentes nisso, pelo visto – porque a administração de Trump “colapsaria” nos próximos trinta dias. O grupo democrático do Senado (Senate Democratic Caucus) também contém uma boa dose de minimalistas.
Na visão deles, Donald Trump é seu próprio pior inimigo político e, em todo caso, não representa uma verdadeira ruptura com a política habitual; os democratas simplesmente precisam manter um perfil baixo e se preparar para uma vitória contundente nas eleições de meio de mandato de 2026.
Maximalistas de esquerda recaem em dois campos. Existem aqueles que celebraram Trump por ter demolido a ordem neoliberal, pintando o presidente de reality show como uma figura histórica da maior significância – “a alma do mundo navegando em um elevador dourado” – como o podcast Aufhebunga Bunga colocou em novembro passado. E existem também os esquerdistas da “emergência nacional” quem veem os ataques de Trump a estudantes ativistas, imigrantes não-documentados e direitos civis como uma crise urgente que se sobrepõe a outras camadas de análise e exige respostas imediatas.
Ambos esses campos maximalistas consideram que Donald Trump oferece uma oportunidade para a esquerda. Para os primeiros, as repercussões apresentam uma chance para recolher fragmentos do descontentamento no agora estraçalhado sistema neoliberal, abrindo a possibilidade de algum tipo de realinhamento com a classe trabalhadora que se revoltou contra os democratas.
Para os segundos, é ocasião para uma ampla frente popular contra Donald Trump em nome de uma forma de antifascismo que permitirá à esquerda exercer alguma influência ao lado de seus aliados liberais. Aqui, contudo, quero defender um minimalismo de esquerda – crítico e qualificado – focando, para ser breve, em apenas um apanhado de questões chave que surgiram nos primeiros meses de Donald Trump no cargo.
Primeiro, as tarifas
No “Dia da Libertação”, Donald Trump apareceu para anunciar uma demolição da economia internacional que muitos maximalistas temiam e outros desejavam. Mas ao primeiro sinal de ansiedade do mercado, ele mudou a trajetória, de realinhamento do comércio mundial a uma simples guerra comercial com a China – e então, algumas semanas depois, recuou disso também.
Tarifas significativas sobre a China permanecem em vigor, e novas manobras provavelmente virão, mas mudanças transformacionais parecem estar descartadas. Em Wall Street, o que o Financial Times chamou de “the Taco trade” – baseado na teoria de que Donald Trump Sempre Desiste – fez os mercados voltarem com força aos níveis anteriores às tarifas.
Em segundo lugar, o Doge (Departamento de Eficiência Governamental, em português). Agora que Elon Musk se afastou definitivamente do projeto, não é cedo demais para avaliarmos seu impacto. De acordo com um monitoramento do New York Times, mais de 58.000 funcionários federais foram demitidos e outros 149.000 cargos estão programados para redução (eu colocaria os funcionários que aceitaram indenizações em uma categoria um pouco diferente).
Isso corresponde a uma demissão de cerca de 7% do que era uma força de trabalho civil federal de 3 milhões; 7%, talvez não por acaso, coincide com o aumento da força de trabalho federal no período pós-Covid, entre 2019 e 2023.
Não se trata de um simples retorno ao Donald Trump 1.0. O Doge destruiu a USAID para além de um possível reavivamento judicial, estrangulou parte do financiamento científico federal, e deixou uma trilha de caos, disfunção e sofrimento espalhada pelo serviço civil. Mas eu sugiro que levemos a sério o veredito dos radicais ideólogos de cortes governamentais, como Jessica Riedll, do Instituto Manhattan, que tem desde o começo defendido claramente que isso é um teatro político e não uma real tentativa de reorganizar a força de trabalho federal, muito menos de enxugamento do Estado.
O feito mais significativo desse esforço foi a bem-sucedida traumatização de funcionais federais liberais. Se havia alguma racionalidade por trás desse esforço, além da gratificação do ego do seu maior doador, o Doge serviu para Donald Trump atingir alvos fáceis, enfurecer democratas e depois dizer para sua base, e para as parcelas ideológicas de sua coalização: “não precisamos fazer todos esses cortes legislativamente – não seria possível – porque estaremos fazendo o Doge no seu lugar”. Mesmo se os números são pequenos, os sentimentos não são.
Depois, o Congresso – complacente, quieto, quase patético.
Mas o que o Congresso não fez é significativo. Comparado com os primeiros cem dias de FDR, Ronald Reagan e mesmo Barack Obama em 2009, houve virtualmente nenhuma ação do Congresso.
Os republicanos, em tese, têm um tripé de governo, mas a blitzkrieg de Donald Trump ocorreu quase inteiramente por meio de ordens executivas – um sinal de fraqueza, não de força. O “Grande e Lindo Projeto de Lei” que tropeçou na Câmara nesta semana provavelmente representa o auge, senão o total, da agenda legislativa do primeiro mandato de Donald Trump.
É uma bagunça grotesca, mas também é extremamente familiar. Enormes concessões para corporações e os ricos, agrados simbólicos para muitos trabalhadores e cortes cruéis para os pobres, financiados por uma explosão da dívida e envoltos na linguagem do patriotismo: isso não é uma ruptura histórica, é o padrão previsível da governança republicana há mais de meio século.
De longe o maior elemento da Lei é a simples extensão de 3,8 trilhões nos cortes de impostos que Donald Trump fez em 2017, eles mesmos um comentário sobre a falta de novas prioridades da administração. Outras disposições, como um imposto sobre doações direcionado às “elites woke” da Ivy League, são mais simbólicas do ponto de vista político do que transformadoras em termos materiais.
O aspecto mais severo do projeto aprovado na Câmara — os cortes no Medicaid que poderiam negar cobertura de saúde a milhões de pessoas — pode ou não sobreviver no Senado. Mas mesmo esse ataque direto nos mais pobres e doentes não é um artefato do trumpismo, ele é o feroz anti-assistencialismo que domina a ala direita do Partido Republicano desde a era de Newt Gingrich. Se houver um realinhamento ideológico digno de nota em 2025, ele só viria na forma de uma rebelião MAGA bem-sucedida contra os cortes no Medicaid.
Finalmente, existem eleições especiais que aconteceram em abril. Os democratas se tornaram um partido que se fortalece em eleições especiais: quanto menos eleitores, melhor o resultado. Nessa ocasião, parecia possível que depois de todo entusiasmo e os milhões que Elon Musk investiu em Wisconsin, as dinâmicas poderiam ter sido diferentes – que possa ter havido uma onda de apoio popular ao que Donald Trump tem feito.
Mas enquanto os republicanos conseguiram trazer maior participação eleitoral, também houve maior participação de democratas – o que fez com que as margens de Donald Trump, mesmo na Florida, fossem cortadas ao meio. Nesse sentido, vale dizer, Chuck Schumer e todos os evidentemente minimalistas do Senado democrata estão corretos: as leis de gravidade política parecem ser as mesmas de 2022 e 2018. De acordo com mercados de apostas, os democratas têm aproximadamente 80% de chance de recuperar a Casa em 2026.
Pensando sobre o fenômeno Donald Trump, lembrei de Estrada perdida (1997), de David Lynch. O filme começa com um músico de jazz vivendo em uma versão antisséptica e ultramoderna da Califórnia. Ele não tem uma conexão com sua esposa e não consegue performar na cama. A atmosfera do filme é pesada, seu ritmo arrastado. É uma série de sequências opressivamente lentas, em que o herói não consegue superar seu bloqueio interno.
E então, no meio do filme, com surrealismo lynchiano, ele é transformado, sem nenhuma explicação, em outro personagem, um jovem mecânico que é lançado numa trama típica do noir clássico, incluindo um triângulo amoroso. Sua mulher é reencarnada como uma femme fatale que está desesperadamente apaixonada por ele. Ele não tem nenhum problema em satisfazê-la, mas ele é ameaçado por um gângster feroz, um vilão caótico e raivoso que está atrás dele a todo momento.
Slavoj Žižek, que escreveu um livro inteiro sobre Estrada perdida, vê essa transformação como uma espécie de deslocamento, o gângster uma projeção das inibições e ansiedades que assombravam o jazzista. Sua falha em agir, em ser um agente no mundo, foi transposta nesse criminoso odiento.
Essa é a função de Donald Trump para muitos hoje, não só no mundo liberal, mas também entre alguns maximalistas de esquerda também. Donald Trump encarna ação, poder, movimento, emoção: uma incitação para abrir uma insurgência contra fascistas, talvez, ou pelo menos um sintoma do colapso do liberalismo. Mas essa pode ser ao final uma forma atraente e conveniente de externalizar um bloqueio interno: a profunda e desalentadora cisão separação entre a esquerda histórica e a classe trabalhadora histórica.
Essa é a principal história da América e do mundo rico de os anos 1970: um drama longo e desolador em que Donald Trump não aparece. O espetáculo monstruoso do trumpismo, que já conseguiu reavivar objetos mortos no centro canadense e australiano, certamente oferece oportunidades políticas de algum tipo. Mas, para aproveitá-las, precisamos reconhecer e enfrentar essa questão interna, a maré baixa e mais profunda dentro de nós.
*Matthew Karp é professor de história na Universidade de Princeton.
Tradução: Julio Tude d’Avila.
Publicado originalmente no blog Sidecar da New Left Review.
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