Literatura na quarentena: Oração para um pé de chinelo

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Alcir Pécora*

Comentário sobre a peça de Plínio Marcos

Enquanto preparava a edição da das Obras Teatrais, de Plínio Marcos, que acabou saindo em seis volumes pela Funarte, tive acesso a versões e documentos que me alertaram para a relevância de certas peças do repertório de Plínio, nem sempre as mais conhecidas. Na ocasião, uma das que mais me impressionou foi Oração para um pé de chinelo, de 1969, ano em que Plínio Marcos era o autor teatral mais proibido do Brasil.

A peça começa ex abrupto com a entrada de Bereco, um fugitivo da polícia, no barraco onde dormem Rato, um bêbado tuberculoso, e Dilma, prostituta decadente. Essa irrupção imprevista leva Rato a acordar assustado e automaticamente a proclamar-se inocente sem haver qualquer acusação contra ele, o que evidencia o costume de se ver submetido a interrogatório policial. Quando percebe que o seu barraco havia sido invadido por um marginal e não pela polícia, a sua reação é de alívio, o que também dá um matiz cômico para a cena brusca.

O alívio, entretanto, não se traduz por qualquer camaradagem entre eles, ao contrário: a desqualificação mútua e o rebaixamento do outro constituem o sistema de comunicação entre as personagens trancafiadas juntas no cômodo exíguo, que lembra em tudo a situação incômoda e violenta de uma cela. A exasperação é acentuada por um gesto repetitivo, e repetido, em cena: o vasculhar nervoso de Rato entre as garrafas vazias em busca de alguma que ainda contenha um resto de bebida.

O vazio reiterado delas amplifica as agressões mútuas assim como confirma os sintomas da degradação física, social e moral em que se encontram: Rato está “chué da cuca, dos peitos, escarrando sangue e tudo”; Dilma “fede”, dá “dó” e “nojo”, espalha “chato”; Bereco tem “pinta de pé de chinelo”, que “não leva jeito de ser de nada”, o que, dentro da lógica torta em jogo, implica em falta de autoridade até como marginal.

Contra a sua sina de “pé de chinelo”, Bereco garante estar com muito dinheiro, e Rato confirma a periculosidade dele por seu nome constar de uma lista de execução da força policial, a qual já agora revela seu caráter igualmente marginal: trata-se não da força do Estado a serviço da Justiça, mas de um grupo de extermínio a serviço de particulares, talvez por conta de assaltos cometidos por Bereco.

Ainda assim, a grandeza ou heroísmo do marginal é inverossímil: ele não tem para onde correr e precisa desesperadamente de um esconderijo que o salve. A bem considerar a situação dos três, Bereco é mesmo o que apresenta maior fraqueza e temor, numa situação de verdadeiro cerco. Dilma não sente medo porque não tem esperança, e Rato tem apenas a urgência momentânea da bebida, sem qualquer expectativa de futuro, sabendo ambos que o tempo está perdido desde o nascimento na miséria.

Ao impedir Dilma de sair do barraco, por desconfiança de que ela aponte seu paradeiro aos policiais que o procuravam, Bereco evidencia também a trama paranoica que flagela as três personagens. A discussão que travam para saber quem seria mais confiável para sair e buscar comida e bebida só amplifica as suspeitas que alimentam entre si, especialmente quando se explicita a atuação de Rato como informante da polícia. As ameaças de Bereco, bem como a sua promessa de recompensas cada vez maiores a quem o ajudar, expandem a suspeita até o paradoxo, pois a venalidade que excita não pode garantir a confiança que ela mesma testemunha não existir.

Há outro paradoxo em cena. Fugindo dos policiais matadores, Bereco se dirigira justamente para o barraco de um alcagueta da polícia, movido por um plano borrado pelo desespero: quer comprar o Rato para que negocie a sua rendição, pois supõe que a condição dele como informante lhe daria alguma credencial junto aos policiais. A hipótese se revela delirada desde o início, seja pelo estado de miséria do Rato, seja pela menção especular que este faz à apavorante história do “Cheirinho”, informante fuzilado pela polícia justamente por dar “cobertura” a um marginal.

Nessa ciranda de medo, suspeita e, ao mesmo tempo, carência e necessidade de confiar, Dilma aparenta ter alguma vantagem em relação aos outros, simplesmente porque parece indiferente a qualquer fim, o dela ou o dos demais. Cética sobre qualquer saída, ela tanto estimula a desconfiança de Bereco em relação ao Rato, como incentiva o fugitivo a enfrentar os policiais e, ao contrário de se esconder, buscar cumprir o seu destino como bandido, no âmbito do mal: “É assim que tem de ser. Foi ruim. Morre ruim. Nada de dar moleza”. As suspeitas apenas podem ser sustadas com a liquidação da esperança e a aceitação do mal que lhe coube fazer na vida.

Essa escolha deliberada da vida que não se pode escolher não implica em ter chance de sobreviver, nesta ou em outra vida, mas sim numa espécie de ganho moral da morte. A pacificação do estado frenético de desconfiança e loucura só é possível pelo gesto livre de morrer descontando “as sacanagens que sempre fizeram pra nós”. Miserável, seu único verdadeiro dever é “fazer miséria”. Ou seja, para Dilma, a única vingança possível é a da aceitação decidida de uma condição criminosa. Nos termos de uma existência sem valor, a conquista da liberdade residiria exclusivamente em fazer o mal, renunciando a todo amor à vida, própria ou alheia.

O niilismo de Dilma parece introduzir algum valor moral na existência, conquanto igualmente a declare impossível de ser vivida. Não é surpresa, portanto, mas fruto da mais perfeita lógica — por mais que seja sentida pelo público como surpreendente, pois é inevitável apiedar-se dos miseráveis e não levar a sério a sua capacidade de fazer mal –, ser Dilma a trair a confiança de Bereco e denunciá-lo, depois de ficar com o seu dinheiro. Esta é uma hipótese plausível, embora mantida sabiamente irresolvida na peça, sem que se conheça a exata medida da traição.

Ao final, quando a luz se apaga, como Plínio fez questão de explicitar na rubrica da peça, o seu foco deve estar sobre o rosto de Bereco, mostrando-o com uma “expressão torturada”, o que significa que foi consumada a morte previsível, mas também que não há qualquer redenção à vista. O “bom negócio” da morte quando a “vida é uma merda”, postulado por Dilma, é apenas outra face vazia da loucura. A afirmação de si (“eu sou mais eu”) pelo instrumento da força, no qual o revólver é o grande “trunfo”, não muda nada, pois o destino é cumprido, afinal, fora da vontade individual: “as coisas acontecem sem a gente poder miar”.

Assim, na peça de Plínio, o crime é efetuado não como transfiguração da condição ou do valor moral do “pé de chinelo”, mas apenas como continuidade da insignificância da vida. Não há concessão alguma ao patetismo romântico, ao idealismo vitimista ou ao marginalismo heróico. No vocabulário final da peça, até o niilismo postulado por Dilma é ainda uma ilusão de grandeza na morte. O que resta, de verdade, é o varejo da violência e da dor, cuja origem os que a sofrem sequer a podem sonhar.

*Alcir Pécora é professor no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Referência

Plínio Marcos. Oração para um pé de chinelo. In: Obras teatrais, vol. 1: Atrás desses muros. (Funarte, 2016) (https://amzn.to/3QHBHI3).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Luís Fiori Eugênio Bucci Luiz Renato Martins Vladimir Safatle Lincoln Secco Valerio Arcary Flávio R. Kothe Luiz Marques Airton Paschoa Ari Marcelo Solon Kátia Gerab Baggio Tales Ab'Sáber Luis Felipe Miguel Rafael R. Ioris Gilberto Lopes Michel Goulart da Silva José Geraldo Couto Heraldo Campos Benicio Viero Schmidt Eugênio Trivinho Jorge Luiz Souto Maior Igor Felippe Santos Daniel Brazil Eleonora Albano Ladislau Dowbor Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Capel Narvai Eduardo Borges Jean Marc Von Der Weid Flávio Aguiar Anselm Jappe Fernão Pessoa Ramos Tarso Genro Leonardo Sacramento Celso Favaretto Annateresa Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Bernardo Ricupero João Carlos Salles Caio Bugiato Bruno Fabricio Alcebino da Silva Walnice Nogueira Galvão Luiz Eduardo Soares Alexandre de Freitas Barbosa Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Lucas Fiaschetti Estevez João Adolfo Hansen Rodrigo de Faria Marcos Aurélio da Silva Atilio A. Boron Berenice Bento João Carlos Loebens Ronald León Núñez Daniel Costa Rubens Pinto Lyra João Sette Whitaker Ferreira Elias Jabbour Luciano Nascimento Sandra Bitencourt Manchetômetro José Machado Moita Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronaldo Tadeu de Souza Lorenzo Vitral Antônio Sales Rios Neto Antonino Infranca Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Eliziário Andrade Thomas Piketty Jorge Branco José Costa Júnior Marcelo Módolo José Raimundo Trindade Valerio Arcary Henry Burnett Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carlos Tautz Liszt Vieira Mário Maestri Manuel Domingos Neto Luiz Roberto Alves André Márcio Neves Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Priscila Figueiredo Jean Pierre Chauvin Claudio Katz Andrés del Río Renato Dagnino Osvaldo Coggiola Marilena Chauí Luiz Bernardo Pericás Dênis de Moraes Gabriel Cohn Bruno Machado João Lanari Bo Ricardo Antunes Remy José Fontana Chico Alencar Sergio Amadeu da Silveira Paulo Fernandes Silveira Marcelo Guimarães Lima Henri Acselrad Michael Löwy Leda Maria Paulani Chico Whitaker Vanderlei Tenório Francisco de Oliveira Barros Júnior Everaldo de Oliveira Andrade Denilson Cordeiro Gilberto Maringoni Boaventura de Sousa Santos Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Pereira de Farias Paulo Sérgio Pinheiro Luís Fernando Vitagliano Ronald Rocha Slavoj Žižek Érico Andrade Marcos Silva Afrânio Catani Luiz Werneck Vianna Juarez Guimarães Paulo Nogueira Batista Jr Otaviano Helene Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Celso Frederico Andrew Korybko Michael Roberts Eleutério F. S. Prado Julian Rodrigues Marcus Ianoni Gerson Almeida Alysson Leandro Mascaro Maria Rita Kehl Ricardo Abramovay Daniel Afonso da Silva João Feres Júnior Leonardo Boff Matheus Silveira de Souza José Micaelson Lacerda Morais Antonio Martins André Singer Ricardo Fabbrini Salem Nasser Paulo Martins João Paulo Ayub Fonseca Armando Boito Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez Francisco Fernandes Ladeira José Dirceu Fábio Konder Comparato Ricardo Musse Tadeu Valadares Leonardo Avritzer Bento Prado Jr.

NOVAS PUBLICAÇÕES