Literatura na quarentena: Philip K. Dick

Imagem: Germana Monte-Mós (Jornal de Resenhas)
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Por JURANDIR FREIRE COSTA*

Comentário obra de ficção científica do escritor norte-americano

Philip K. Dick é conhecido como um outsider de enorme talento no campo da ficção científica. Sua originalidade é sublinhada, entre outras coisas, pela maneira como renovou a panóplia de personagens e enredos da ficção científica clássica. Na modalidade tradicional do gênero, romances, contos e novelas são povoados por naves espaciais, seres extraterrestres, robôs, colônias de outros planetas, cenários pós-apocalípticos etc.

Esses ingredientes são dispensados ou subutilizados por Dick, em favor de uma pergunta crucial: o que é o genuíno cerne da condição humana? O assunto, obviamente, não é novo na literatura, na psicologia ou na filosofia. A novidade de Dick é a lucidez quase insana com que explora a interrogação.

Para ilustrar suas obsessões ontológicas, ele provoca, de saída, um estranhamento cognitivo no leitor, deslocando as funções subjetivas de seus costumeiros suportes orgânicos para suportes inorgânicos inusitados. Os personagens de suas histórias assumem as mais esdrúxulas aparências, a fim de fazer-nos distinguir o fundamental do acessório, em matéria de subjetivação ou de humanização, como ele prefere. As esquisitices ou monstruosidades de suas criaturas, porém, nunca surgem do ventre de coisas verdes disformes, cruéis ou assassinas. O inquietante é sempre um predicado corriqueiro elevado, de modo ilegítimo, à condição de representante quintessencial de nossa humanidade. Esta é sua grande tese.

Ao contrário do estranho familiar de Freud, por exemplo, para Dick o estranho não é o desconhecido que vem à tona com o retorno do recalcado. O estranho, o inquietante, é sempre uma expressão parcial do sujeito tomada como sendo a totalidade da vida subjetiva. Do ponto de vista epistêmico, portanto, o correlato do estranhamento é o engodo que consiste em hipostasiar uma dada manifestação psíquica, acreditando que, assim, podemos entender facilmente o que não entendemos ou controlar o incontrolável.

Portas insolentes

Um exemplo é o da idealização teórica da habilidade cognitiva como metáfora ou metonímia da complexidade da “função sujeito”. Para ilustrar esse equivoco, Dick inventou personagens que são objetos inanimados com um modo de pensar logicamente irrefutável. Alguns deles são portas insolentes que ameaçam delatar indivíduos à polícia, se eles não inserirem moedas em suas ranhuras metálicas, condição para que elas os deixem sair, como manda a lei. As portas repressivas agem sem consideração alguma pelos motivos que levam o miserável personagem a querer fugir de sua casa, sem ter as moedas por elas exigidas [1].

Além de engenhocas parecidas, Dick criou táxis sem motoristas, que, automaticamente estimulados pelas lamentações de um passageiro, disparam seus sistemas de aconselhamento racionalmente impecáveis, sem o menor respeito pelo fato de que o aconselhado não deseja tal tipo de ajuda. Criou, igualmente, elevadores, autofalantes e quinquilharias de toda sorte que se intrometem no cotidiano atribulado dos personagens com propósitos semelhantes. Por fim, inventou uma maleta-computador-psicanalista, que num tom de voz irritantemente afável e estereotipado, repete as mesmas fórmulas terapêuticas aos clientes com sintomas similares.

Sua intenção é mostrar que a coerência lógica dos artefatos subjetiviformes, em vez de virtude intelectual, torna-se loucura raciocinante, por estar dissociada da singela habilidade humana de saber quando fazer exceção. Visto de outro ângulo, seguir regras, de forma racionalmente correta, transforma-se em aberração, se tal atividade não se ajusta à singularidade dos indivíduos ou situações às quais se aplica. O aparato lógico-cognitivo, isolado de outras dimensões da conduta humana, torna-se uma caricatura ridícula, malévola ou desvairada do que poderia ser um sujeito.

Em outros exemplos, o que é discutido não é o fetiche da lógica cindida da emoção, mas da ação. Neste caso, os personagens são seres humanos que ignoram a causa e a natureza de seus estados de consciência ou que possuem dons cognitivos conscientes paranormais. Nos dois exemplos, Dick mostra que assim como a completa ignorância do que somos, a onisciência relativa ao que podemos ser também nos incapacita a definir o perfil de um verdadeiro sujeito.

Por exemplo, telepatas e précogs, cujos dons premonitórios lhes permitem conhecer todo o passado e todo o futuro, terminam sem poder agir porque a ação perde o sentido. Se o futuro se torna presente, desaparece como dimensão particular do tempo, pois futuro nada mais é do que a intenção de realizar certas ações, as quais se tornam supérfluas quando tudo é presentificado.

Pesadelo claustrofóbico

Observe-se, assim, que no caso dos objetos sábios, mas despidos de emoção, e no dos seres superdotados intelectualmente, mas privados de liberdade de ação, o sonho onipotente de predizer o impredizível torna-se um pesadelo claustrofóbico e demoníaco. Entregues a si mesmas, a lógica e a cognição ficam paralisadas na repetição do mesmo. Cognição sem emoção e sem abertura para novas ações é apenas um fóssil do que um dia foi o movimento da vida do sujeito.

Finalmente, o último grupo das criaturas experimentais de Dick é formado pelos andróides. Aqui, o autor ilustra o papel da memória num hipotético sujeito privado de história, ou seja, de passado relacional com um outro emocionalmente relevante. Os andróides são máquinas que desconhecem a própria natureza mecânica, pois lhes foi implantada a memória de um ser humano.

A memória do andróide, portanto, não reflete a “história” de sua existência. Ela é um enxerto inassimilável ao resto de sua vida, já que, de antemão, teve os elos cortados com a emoção e com a ação. Por deliberação de seus fabricantes, o andróide não pode utilizar os traços mnésicos mecanicamente rememorados para orientar sua conduta diante da interpelação do outro. O único mandamento seguido por ele é o princípio utilitário da sobrevivência.

Resultado: pelo fato de nunca ter podido se identificar a atos mentais de outros emocionalmente significativos, o andróide é incapaz de sentir o que Dick chama de empatia, isto é, de reconhecer no outro alguém idêntico a si. Por essa razão, o outro, para o andróide, é apenas um objeto neutro que funciona como gatilho para seus dispositivos de ação e nunca como fonte de dúvidas quanto a decisões morais. Despojado do saber tácito de que o outro é um semelhante, a alteridade torna-se mera diferença de forma e função, e não fonte de inquietação afetiva.

Dick, com a figura do andróide, afirma que não basta entender o funcionamento material da memória para ver as entranhas do sujeito. É preciso, além disso, ter em mente que a memória humana é sempre a memória da relação com um outro. Em outros trabalhos, essa consciência é levada ao paroxismo do refinamento teórico e da angústia, como no romance O homem duplo (Rocco), em inglês, Scanner Darkly [2].

O substrato do sujeito

O homem duplo trata da experiência de Fred, um policial encarregado de prender usuários e traficantes de entorpecentes. No exercício da função, Fred recebe um “traje misturador”, dispositivo tecnológico que, ao ser vestido, permite que o portador assuma a aparência física de qualquer outra pessoa. O policial, no curso da investigação, termina por descobrir, trocando de identidade, que ele próprio é suspeito de fazer uso da droga ilícita, e vê-se na paradoxal posição de perseguidor e perseguido. A duplicidade identitária de Fred é o mote para Dick expor a estreiteza das explicações científicas acerca do substrato do sujeito.

Numa longa passagem do texto, o policial é levado à presença de dois psicólogos que lhe explicam a origem do sentimento de identidade partida. Seus hemisférios cerebrais, dizem os dois, funcionam de forma autônoma. Por esse motivo, cada um envia uma imagem do sujeito e do mundo que, em vez de se sintonizarem, concorrem entre si. Fred fica atônito e começa a pedir cada vez mais detalhes da disfunção que o acomete. As perguntas são entrecortadas por picos de espanto e parecem tropeçar o tempo todo num enigma irredutível à decifração.

Assim, após ouvir do psicólogo que um hemisfério de seu cérebro percebe o mundo como se ele estivesse refletido em um espelho, Fred pensa perplexo: “Então, eu tenho me visto ao contrário. Talvez, depois que eu enxergar as duas formas de uma só vez, corretamente e invertidas, eu seja a primeira pessoa na história a ver virado e não virado simultaneamente e tenha um vislumbre do que vai ser quando estiver correto. Embora eu também tenha o outro, o normal. E o que é o quê? O que é invertido e o que não é?” [3].

Forma invertida

Fred reluta em aceitar a explicação recebida. Se, pergunta ele, os hemisférios cerebrais funcionam normalmente de modo complementar e por inversão cruzada, o quê, no organismo, poderia decidir qual seria a verdadeira realidade subjacente ao semblante mediado pela ação neural? A percepção da verdadeira realidade, e não sua aparência neurofisiológica, exigiria uma metafunção independente da mediação cruzada dos dois hemisférios? Mas em qual lugar anatômico ou metafísico esta metafunção estaria sediada?

Mais ainda. Se a arquitetura cerebral exige que nos vejamos de forma indireta e invertida como em espelhos, que outra arquitetura ou que outro arquiteto nos faz querer ver além dos limites do que podemos conhecer? Por que, insiste ele, embora sabendo que o acesso direto à realidade do que somos é impossível, persistimos imaginando que tal acesso é concebível? Isso quer dizer que o pensável não é idêntico ao conhecível? Mas, se for assim, quem ou o quê dá origem a um tipo de pensamento que não pode ser traduzido em conhecimento?

Dick assume o papel de boca ingênua, obrigando a ciência a se calar sobre o que não pode falar. A seu ver, querer positivar a função sujeito significa desembocar numa pergunta que não pode ser respondida de modo empírico. Com sua retórica literária, ele mostra que o sujeito vem à tona justamente no lugar teórico no qual sua existência e seu funcionamento não podem mais ser cognitivamente fundados ou justificados. Este lugar é aquele em que a questão do genuíno e do falso, do invertido e do não invertido, do real e do semblante, só poderia ser destrinchada por um agente que não estivesse comprometido com as condições imanentes do conhecimento.

Dito de outra forma, a função sujeito emerge onde nossas explicações parciais emperram. Onde há sujeito não há qualidade e onde há qualidade há apenas subjetividade. A função sujeito em Dick converte as limitações assinaladas pela transcendência epistêmica em potência da transcendência ontológica. O déficit se torna superávit. É nas fraturas da imanência que o sujeito surge como pergunta sobre si, irrespondível pelo saber científico. A transcendência é o que resta da insatisfação do ser humano com aquilo que sofre ou conhece sobre si mesmo, ou seja, com o que resta da interpelação do outro às suas propriedades imanentes.

Não por acaso, Dick, corta a conversa mencionada com uma observação aparentemente gratuita e arbitrária de Fred: “Como faz frio nessa abóbada subterrânea. É claro que faz frio, ela é tão profunda”. Em seguida completa: “Tenho de me afastar dessa merda. Já vi pessoas passando por isso. Meu Deus, pensou ele, e fechou os olhos”.

Em busca da fundação perdida, o sujeito esbarra na morada de sua transcendência, abóbada fria e profunda. Podemos temê-la e fechar os olhos a ela, ou podemos continuar a falar dela de olhos bem abertos.  O policial de Dick escolheu a primeira opção; ele a segunda. A cada um segundo sua decisão.

*Jurandir Freire Costa é professor titular no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor, entre outros livros, de O vestígio e a aura (Garamond).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 4, agosto de 2009.

Notas

[1] Para consultar as obras de Dick nas quais aparecem os personagens citados, ver: Costa, Jurandir Freire,“Bergson dans le monde de Philip K. Dick”, in Henri Bergson: receptions, Cahiers critiques de philosophie, nº 7, Paris, Hermann éditeurs & Paris VIII, Philosophie, 2009. p. 133-152

[2] Dick. Philip. K., O homem duplo, Rocco.

[3]. Ibid., p. 240.

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