Por MARIAROSARIA FABRIS*
As relações entre as narrativas breves e as peças teatrais do escritor italiano
1.
Aclamado autor do romance Il fu Mattia Pascal (O falecido Mattia Pascal, 1904) e de Novelle per un anno (Novelas para um ano, coletânea publicada entre 1922 e 1928 e entre 1934 e 1937), Luigi Pirandello é conhecido pelo grande público mais como dramaturgo do que como narrador, principalmente graças a Sei personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor, 1920-1921), Questa sera si recita a soggetto (Esta noite se improvisa, 1928-1929) e I giganti della montagna (Os gigantes da montanha, 1931-1933), peça que deixou incompleta.
Embora arrolando apenas alguns títulos, citá-los significa apontar para a sinergia textual que caracteriza a vasta produção do escritor siciliano, uma vez que quase todas as suas obras narrativas podem ser consideradas matrizes de realizações que ele levará para os palcos, e não faltam exemplos em sentido contrário.
O capítulo IV de Il fu Mattia Pascal, junto com a novela “La mosca” (“A mosca”, 1904), deu origem à peça Liolà (Liolá, 1916); Sei personaggi in cerca d’autore – assim como o romance homônimo que a antecedeu, apenas esboçado no período da Primeira Guerra Mundial – baseia-se nas narrativas breves “La tragedia di un personaggio” (“A tragédia de um personagem”, 1911), uma novela de fundo teórico da qual “Personaggi” (“Personagens”, 1906) pode ser considerada uma espécie de primeira versão, e “Colloqui coi personaggi” (“Conversas com personagens”, 1915); Questa sera si recita a soggetto tem sua fonte na ficção curta “Leonora, addio!” (“Leonora, adeus!”, 1910); I giganti della montagna, derivada de “Lo storno e l’Angelo Centuno” (“O estorninho e o Anjo Cento e um”, 1910) e, em pequena parte, de “Certi obblighi” (“Certas obrigações”, 1912), incorporou ainda o libreto La favola del figlio cambiato (A fábula do filho trocado, 1934) – ópera em três atos de Gian Francesco Malipiero –, extraído da novela “Il figlio cambiato” (“O filho trocado”, 1902).
Deixando de lado os incipientes atos esboçados desde a passagem da infância para a adolescência até a idade adulta, a crítica considera L’epilogo (O epílogo, 1892) a primeira peça pirandelliana, da qual se originará a narrativa breve La paura (O medo, 1897); mas, entre a escrita do drama e sua encenação, o caminho é longo e L’epilogo, sob o novo título de La morsa (O torniquete), será montada em Roma apenas em dezembro de 1910, representando, junto com Lumìe di Sicilia (Limões da Sicília), baseada na novela homônima (1900), a estreia de Pirandello nos palcos.
2.
Essa pequena amostra vem atestar como, no laboratório da escrita pirandelliana, cada trama constituía uma espécie de work in progress, uma vez que podia ser retomada, reelaborada, esmerilhada. Ou ainda, como apontou Luigi Squarzina: os “personagens narrativos […] não querem saber de desaparecer como lhes imporia a página, e pedem para sobreviver e se tornarem verdadeiros em cena”. Ao lembrar os primórdios da dramaturgia do autor siciliano, vale destacar também, conforme assinalou Rino Caputo, aquela “intuição que Luigi Pirandello tem, desde moço, de fazer uma comédia sobre como se faz uma comédia. E eis, então, o título, Provando la commedia, que temos já por volta de 1893-1894, e não se pode deixar de pensar no subtítulo de Sei personaggi in cerca d’autore: ‘Commedia da fare’”.
Na realidade, Provando la commedia [Ensaiando a comédia] data do início de 1891, e junto com o subtítulo da peça dos primeiros anos 1920, “Commedia da fare” [Comédia a ser feita], já apontava para a questão da metalinguagem na obra pirandelliana[1] e acenava para esse aspecto de não “acabado” seja na redação, seja na montagem de uma peça.[2] De fato, com o tempo, tendo se tornado também encenador, Luigi Pirandello, ao levar para o palco as próprias obras, passou a prestar mais atenção “no corte teatral da ação” (como apontou Nino Borsellino), embora sem diminuir as constantes, quando não excessivas, indicações cênicas,[3] o que permitiria soltar as amarras que prendiam o texto dramático ao texto narrativo.
Em todo caso, numa rubrica do terceiro ato de Non si sa come (Não se sabe como, 1934-1935) – baseada nas ficções curtas “Nel gorgo” (“No abismo”, 1913), “La realtà del sogno” (“A realidade do sonho”, 1914) e “Cinci” (“Cinci”, 1932) – acabou por afirmar: “Deixa-se aos intérpretes a atuação de uma cena que corresponda ao estado de espírito do protagonista e ao momento da ação” (afirmação reproduzida por Luigi Squarzina).
Além disso, o autor siciliano começou a valorizar antes a “estrutura dramática das sequências narrativas”, nos dizeres de Borsellino, focalizando a psicologia dos personagens e sua evolução na trama, do que a moldura ambiental, isto é, aderiu progressivamente à teatralização do romance, na esteira das teorias do escritor norte-americano Henry James: por exemplo, o início da edição de 1927 de L’esclusa (A excluída, 1908), na opinião de Giovanni Macchia (reproduzida por Borsellino), “é, ao mesmo tempo, a página de um romance e a detalhada rubrica de uma comédia”.
Apesar de alguns críticos – dentre os quais Francisco Degani – considerarem as ficções curtas uma espécie de “‘reservatório’ de temas e personagens para a obra teatral”, a existência de mais de uma versão, segundo Erica Salatini, provoca “uma sobreposição de níveis narrativos no texto”.
Francisco Degani vê, nessa constante reutilização do material novelístico, “uma espécie de intertextualidade interna ao próprio conjunto” da obra pirandelliana, incluindo nesse jogo autorreferente também as narrativas de maior fôlego: “o que […] se verifica é uma espécie de movimento circular e intercomunicativo entre os três gêneros, o que torna cada obra ao mesmo tempo única e completa em si mesma e passível de novas leituras, aperfeiçoamentos e combinações para melhor representar um universo fragmentado, repleto de sofrimento e de tensões que regulam as relações entre os homens”.
Luigi Squarzina já havia assinalado essa diferença entre as obras dramáticas e a fonte novelística, “uma diferença tão acentuada que leva a pensar que a partitura narrativa de partida se coloque, a cada vez, diante dele não como uma página, mas como um dado da natureza sobre o qual exercitar os direitos da mimese”.
Ao contrário de outros estudiosos, Renato Barilli (citado por Maurício Santana Dias), ao abordar a transformação das narrativas breves de Pirandello em peças, afirmava, tomando como exemplo “O di uno o di nessuno”/O di uno o di nessuno (“Ou de um ou de nenhum”/Ou de um ou de nenhum): “A novela e a comédia são bastante próximas, o que quase configura o caso, muito difuso em toda a produção pirandelliana da segunda década, de uma mesma ‘história’ oferecida em dois estados distintos: um pouco como um remédio que é comercializado sob forma de comprimidos ou de ampolas para injeção; a composição não muda, mudam quando muito os efeitos, a possibilidade de absorção. No caso, a única diferença sensível entre a administração por via narrativa ou dramática está na diversa temporalidade referente ao destino do filho: na novela, esse acontecimento distribui-se num espaço de tempo dilatado, enquanto, em cena, ele ocorre ipso facto, recorrendo ao expediente técnico chamado justamente golpe de cena”.
Por mais que o gênero narrativo e o texto teatral estivessem “ligados um ao outro, frequentemente interpenetrados um no outro, representando uma mesma humanidade, uma mesma sociedade e, às vezes, o mesmo drama” (segundo Giovanni Macchia), a passagem de uma escrita a outra, no entanto, não é tão simples, uma vez que ela implica outras mudanças além das apontadas por Barilli.
Ao considerar a novela e a comédia “uma mesma ‘história’ oferecida em dois estados distintos”, o crítico levou em conta apenas os textos escritos, esquecendo que uma obra dramática não foi feita tão-somente para ser lida, mas que, para sua plena realização, pressupõe uma encenação, portanto uma interpretação, uma intermediação entre o autor e o público, e Pirandello, com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais ciente disso ao transpor para o palco seus textos literários.
Para exemplificar as diferenças entre as duas modalidades, serão abordadas três peças apresentadas pelo grupo Tapa em 2012 – Lumìe di Sicilia e Il dovere del medico (O dever do médico), reunidas sob o título de Amargo siciliano[4], e O di uno o di nessuno, encenada como De um ou de nenhum –, derivadas de novelas homônimas.[5]
3.
“Lumìe di Sicilia” narra a história de Micuccio Bonavino, modesto flautista da banda municipal de Messina, que empreende longa viagem até uma cidade do Norte da Itália, para fazer uma visita surpresa a Teresina, jovem cantora que ele descobriu e ajudou a projetar-se. Agora famosa, Sina Marnis, no entanto, em nada lembra a simples garota que, anos antes, trocava juras de amor com o músico, enquanto ele lhe bancava as aulas de canto.
A chegada do flautista coincide com uma ceia em homenagem à diva, em sua luxuosa residência, onde ele é bem acolhido apenas por tia Marta, mãe da moça. Ao ver rapidamente Sina adornada de roupas e joias caríssimas, o músico entende por fim que o comportamento dela mudou e que a imagem que ele tinha de sua amada não corresponde mais à realidade. Sentindo-se humilhado, Micuccio vai embora, mas antes entrega a tia Marta os limões que havia trazido da Sicília, impregnados do cheiro da terra natal. Limões que Sina levará a seus convidados como se fossem frutos exóticos.
Ao transformar a novela numa comédia em um ato, Pirandello fez várias modificações. Os dois criados, Ferdinando e Dorina ganham destaque, porque serão os interlocutores do protagonista, e as conversas entre os três ocuparão dois terços da peça, resultando da redistribuição dos diálogos da ficção curta e, principalmente, das lembranças que o músico guarda de sua relação com Teresina, quando ela morava numa esquálida água furtada em Palma [di] Montechiaro (Agrigento).
Enquanto, na novela, o flautista se sente constrangido diante da desenvoltura e da elegância do criado, sem ousar declarar-se noivo da cantora, na peça, ele confraterniza com a criadagem e chega a tocar seu instrumento, sem perceber os olhares de chacota.
O início da segunda cena, com a chegada da comitiva festiva, corresponde às intenções da novela; em seguida, os dois gêneros se diferenciam. No momento da despedida do músico, a súbita irrupção de Teresina torna o final melodramático e sugere uma solução mais moralizadora do autor: a moça, depois que o rapaz lhe impede de apropriar-se dos limões e lhe enfia no decote o dinheiro emprestado quando ele adoeceu e que veio devolver, ao ver-se tratada como uma prostituta, sente-se humilhada e chora.
Os personagens dos jovens sofreram alterações em sua psicologia. Na narrativa, em sua simplicidade, Micuccio é coerente do começo ao fim – ingênuo, ao acreditar nela e num futuro para os dois; resignadamente desesperado, ao ver seu castelo de areia ruir; na peça, o gesto final dele não condiz com seu comportamento, parece quase um rompante de machismo, uma tentativa de Pirandello de resgatá-lo do fascínio da mulher fatal.
O caráter de Sina é mais declarado, menos facetado do que na novela, na qual, é claro, o autor foi dando pistas: são as ardentes carícias que dispensava ao músico como demonstração de sua gratidão e promessa de uma recompensa futura; é a referência às calúnias dos parentes dele contra tia Marta e Teresina; é a silenciosa vergonha da mãe pelo comportamento da filha; é a facilidade com que a cantora espanta um momentâneo sentimento de piedade pelo flautista – pistas estas ausentes na peça.
O final da novela é mais “cínico”, com a moça vendo nos frutos cítricos não seu passado, mas algo tão folclórico quanto aquele que os trouxe de presente (isso assinalaria o embate entre o velho mundo rural e a nova sociedade urbana), enquanto, na peça, os limões que Micuccio impede Sina de tocar são o símbolo de uma pureza que ela não deve conspurcar, em oposição ao vil dinheiro, que é a única coisa que lhe cabe.
Ao basear-se principalmente na descrição dos sentimentos do protagonista e em suas lembranças, a novela resulta mais concisa e coesa, enquanto a peça se desequilibra ao confiar aos diálogos toda essa parte, principalmente na primeira metade, que resulta excessiva em relação ao acontecimento central: o adeus do jovem músico a suas ilusões, seu rito de passagem à idade adulta.
“Il dovere del medico” (“O dever do médico”, 1911) – derivada de uma novela anterior, “Il gancio” (1902) – inicia-se focalizando um drama familiar: a traição de Tommaso Corsi, que, apanhado com a amante pelo marido desta, tenta matar-se depois de ter assistido ao suicídio da mulher e de ter assassinado o rival. Levado para casa, a fim de que possa recuperar-se antes de ir preso, Tommaso, em suas elucubrações não se sente culpado pelo acontecido e tenta obter o perdão de sua esposa, a qual, apesar das súplicas da mãe, não abandona o marido, só permitindo que esta leve consigo as crianças.
Superada a fase crítica, o paciente revolta-se com o fato de ter sido salvo pelo médico para ser entregue à lei por um crime que ele considera já ter pagado com o próprio sangue e pelo qual não sente nenhum remorso. Tomado pela raiva, Tommaso fere-se no rosto e, com o esforço, a ferida no peito torna a abrir-se. Quando o médico vai socorrê-lo, o paciente impede-o com o olhar e este entende que não deve mais tentar salvá-lo.
Na passagem da narrativa breve para a peça homônima (1911), todos os personagens, exceto o protagonista, tiveram seus nomes mudados e, enquanto alguns dos secundários ganharam destaque, a maioria foi eliminada.[6] A ação cênica e os diálogos foram praticamente retirados da sétima e última parte da novela, que corresponde a três das quatro cenas em que pode ser dividido o ato único; as demais informações foram extraídas da quinta, sexta e quarta partes.
A primeira cena gira ao redor da prisão de Tommaso, provavelmente no próprio dia, e do embate entre a mãe, indignada com a situação, e a filha, que tenta defender o marido. Na segunda, o médico e o advogado, antes de irem falar com o delegado, pedem à esposa que prepare o paciente para a eventual prisão, o que ela não consegue fazer na cena seguinte, porque Tommaso está interessado em explicar-se e ser perdoado por sua mulher.
A volta do médico e do advogado marca a passagem para a quarta cena, quando o acusado recusa a ideia do processo e se rebela aos argumentos de seu defensor, julgando que ele já se puniu e responsabilizando o doutor pelo castigo que o espera, uma vez que o arrancou da morte.
As duas últimas cenas podem ser consideradas o fulcro da peça, um libelo contra a hipocrisia da sociedade e sua intromissão na vida pessoal. Ao condensar acontecimentos e sentimentos, o texto dramático ganha mais consistência em relação à novela e joga uma luz mais intensa sobre a esposa, destinada a ficar na sombra se tivesse seguido os conselhos maternos e o que ditavam o orgulho e o senso comum.
4.
“O di uno o di nessuno” (1915) focaliza um triângulo amoroso que não corresponde ao tradicional arranjo burguês – esposa-marido-amante –, porque formado por dois rapazes e uma prostituta. Quando estudantes na nativa Pádua (Vêneto), Tito Morena e Carlino Sanni tinham conhecido Melina e, ao se transferirem a trabalho para Roma, haviam pedido à moça para alcançá-los. Agora Melina não tinha outros clientes e mantinha com eles um ménage à trois isento de ciúmes.
Cada um dos rapazes havia estabelecido com ela uma relação familiar, o que lhes permitia se sentirem ainda em seu ninho como na agora distante cidade natal. Quando a garota anunciou que estava esperando um filho de um dos dois, para Tito e Carlino a solução mais simples era Melina ter a criança, destiná-la à adoção e voltar livre para eles. A jovem, no entanto, tinha outros planos: começou a preparar o enxovalzinho e a pensar em trabalhar para sustentar o filho, sem depender da ajuda de ninguém. É o que confidenciou a Carlino, quando de uma de suas visitas noturnas, o que provocará uma reação irada de Tito e uma desavença entre os dois quanto ao comportamento a ser seguido.
Apesar do remorso que sentiam, os amigos deixaram de procurar a moça e, no fim do mês, quando tiveram de mandar-lhe o dinheiro das despesas e do aluguel, optaram pelo correio. Melina respondeu à carta implorando para que a visitassem e dizendo estar disposta a aceitar a vontade deles.
Os rapazes, porém, não atenderam a seu apelo e, como nenhum dos dois queria ceder, transformaram a antiga amizade em ódio, evitando ficar juntos mais do que o necessário. Tampouco atenderam ao chamado da moça quando a criança nasceu e foram visitá-la apenas porque uma vizinha comunicou-lhes que Melina estava à morte. O menino foi confiado a uma ama de leite de Alatri (cidade ao sul de Roma), que o havia amamentado nos dois dias de agonia da mãe.
E assim os rapazes passaram a visitar a criança em meses alternados, sem se afeiçoarem a ela, por causa da dúvida quanto à paternidade, até que Nillì começou a andar, a falar e cada um passou a buscar traços seus nele, o que fez aumentar os ciúmes recíprocos. A ama de leite, espertamente, ouvia as confidências de um e de outro, e aconselhava o menino a não se indispor com nenhum dos dois.
Quando Nillì completou cinco anos, a ama foi alcançar o marido na América; então, Carlino e Tito, separadamente, se dirigiram ao mesmo jovem advogado que conheciam, o qual os aconselhou a colocar a criança num colégio interno ou a procurar alguém que quisesse adotá-lo. No colégio, o menino fez amizade com o filho de um coronel: este e a esposa gostavam muito de Nillì, que protegia o amigo, mais frágil e mais tímido.
Ao cabo de um ano, a criança faleceu e os pais pediram aos “tios” do pequeno órfão para adotá-lo. Os dois acharam que essa seria a melhor solução, e o menino, ao concordar com a adoção, pediu que os “tios” continuassem a visitá-lo, mas juntos. Agora que o filho não era mais nem de um nem de outro, os dois rapazes, aos poucos, reataram a velha amizade.
Se a novela colocava de chofre a questão da paternidade – “Quem foi? Um dos dois com certeza.” –, na comédia homônima em três atos (1929), ela é postergada. O espectador é introduzido no cômodo que Tito e Carlino dividem na pensão de Elvira Pedoni, que os está repreendendo porque acredita que, nos últimos tempos, os dois passam as noitadas na farra.
Os rapazes pedem-lhe para sair e chamar outro hóspede, o advogado Merletti, com quem querem se aconselhar sobre a questão que os manteve acordados a noite inteira: o que fazer diante da inesperada notícia comunicada por Melina Franco, a doce e modesta amiga que um dos dois engravidou.
No segundo ato, Carlino, adoentado, recebe a visita de Melina, acolhida com maus modos por Dona Elvira, escandalizada com sua presença no quarto de um rapaz solteiro. A moça mostra ao amigo o tecido que foi comprar para o enxoval do bebê com suas economias e afirma-lhe que sustentará a criança sozinha, com o próprio trabalho. Quando Carlino relata a visita a Tito, este se irrita porque a garota procurou o outro; os dois discutem a situação e decidem não mais vê-la, continuando, porém, a sustentá-la.
O terceiro ato começa com Melina e uma vizinha aguardando a ama de leite, quando sobrevêm o advogado Merletti, que reprova o comportamento dos jovens, e, logo em seguida, o médico, preocupado como estado de saúde da mãe e com o futuro da criança diante do descaso dos dois. Pouco depois chega Tito, que discute com Merletti, pois o advogado lastima que o ódio recíproco que os cegou levou-os a deixar a moça entregue a si mesma. Quando finalmente aparece Carlino, antes que os dois rapazes comecem a brigar, entra Melina, irreconhecível, pedindo-lhes que amem Ninì, o filho que é só dela, e que deixem que a ama cuide do menino; enquanto lhes mostra as várias peças do enxoval, exala o último suspiro.
Diante do cadáver da garota, os dois começam a brigar, para grande espanto dos presentes, que reprovam sua conduta, até que o médico lhes propõe uma solução: o senhor Franzoni, cuja esposa acaba de perder um filho no parto, está disposto a ficar com a criança. Segundo o médico e o advogado, com isso o ódio se apaziguará e, em memória de Melina, os dois poderão reconciliar-se. Chorando, Carlino e Tito se atiram um nos braços do outro.
Na passagem de uma escrita a outra, são várias as mudanças feitas pelo autor; em primeiro lugar as que dizem respeito aos personagens: o trio central permanece inalterado (mas Melina agora tem um sobrenome), porém são acrescentados Elvira Pedoni e uma velha senhora também hóspede da pensão, o médico e alguns figurantes (um padre, um sacristão, alguns jovens farristas); eliminados Nillì, seu amigo e a esposa do coronel; transformados o jovem causídico (no advogado Merletti) e o coronel (no senhor Franzoni); e, enquanto a ama de leite se torna apenas uma figuração, a vizinha de Melina ganha um pequeno destaque.
Quanto ao primeiro ato, há o acréscimo da cena inicial na pensão e do bate-papo dos dois rapazes com o advogado Merletti, no qual as informações contidas na parte inicial da narrativa breve se esparramam na forma dialogada. No segundo ato, a conversa de Melina com Carlino e a subsequente altercação entre os amigos guardam muitos elementos da ficção curta. O terceiro ato, a princípio fiel ao espírito da novela, depois dela se afasta com o destaque dado ao médico e ao advogado, e com a rápida solução encontrada para o destino da criança.[7] O leve cinismo que exalava das últimas páginas do texto de 1915 é deixado de lado em prol de um final catártico.
5.
Nas três peças em tela – nas quais, como em outras obras pirandellianas, os acontecimentos que desencadeiam o drama são anteriores ao início da ação cênica –, o autor, como de costume, convoca e provoca o público, ao chamar a atenção para as múltiplas facetas da realidade, ao questionar onde está a verdade dos fatos, ao alertar para as armadilhas do destino.
Bastaria pensar na contraposição que se cria entre os atos dos protagonistas e o “coro”, que está lá comentando (pela maledicência ou pelo escárnio), julgando (sempre baseado no senso comum), reprovando (em nome da moral vigente) o comportamento desses personagens, um coro mais atenuado quando não ausente nas novelas. É o caso da criadagem e, em certa medida, de tia Marta em Lumìe di Sicilia; do doutor, do defensor e da sogra (que incorpora também os sentimentos de vizinhas e curiosos excluídos) em Il dovere del medico; da dona da pensão, do advogado, do médico e da vizinha em O di uno o di nessuno.
É uma forma de cativar “a consciência do público, colocado diante da alternativa entre a aceitação da verdade e a obediência às regras do jogo”, como escreveu Borsellino; uma forma de fazer cair a máscara social pela revelação de um fato que põe em xeque a respeitabilidade burguesa, em suma, é o drama entre o ser e o parecer.
Como apontou Caputo, “a máscara não consegue mascarar a realidade. Antes ou depois, o homem surge nu, isto é, despido de todos aqueles trajes que servem para esconder a realidade”. Por isso o título Maschere nude (Máscaras nuas) que o escritor atribuiu ao conjunto de suas peças – mas, poderia ser de suas obras – publicado entre 1918 e 1921 (primeira coletânea), entre 1920 e 1929 e entre 1929 e 1935 (segunda) e entre 1933 e 1938 (terceira).
Na opinião de Borsellino, “o desnudamento da máscara não comporta a morte do histrião. Descobrir-se não mais marionete significa começar a raciocinar, a usar outra máscara: o discurso, a lutar contra a mentira da palavra”. Segundo Pirandello, o espectador não devia assistir a uma peça sossegadamente instalado em seu assento, mas, como já referido, tinha de ser solicitado a participar.
Como salientou Macchia, o público “não era uma massa inerte, incompreensível e incomensurável, que desperta tão-somente no fim do drama. Deve-se acordá-lo durante a representação, envolvê-lo no espetáculo. Não era apenas o palco, mas a plateia também que tinha seu papel no drama. E, sobre a plateia, o autor descarregava, sem meios termos, sua paixão, a de estar presente, discutir, irritar, lançar dúvidas e ironias […]. Ele não exige do espectador nem o consenso, nem a admiração, nem o entusiasmo retórico e tranquilizador. Ao contrário, exige que a dúvida instale dentro de nós suas raízes profundas, até que ele exploda no dissenso e na rejeição. O espectador do mais negro teatro trágico, no qual quem pecou é inexoravelmente atingido pelo destino que mereceu, volta para casa como se estivesse apaziguado. O espectador pirandelliano é tomado de um mal-estar vago, irritado”.
Embora, em termos gerais, se possa concordar com a observação de Macchia, no caso de Lumìe di Sicilia, no entanto, segundo Borsellino, há uma espécie de “desvio em nossa expectativa teatral, quase um distúrbio de recepção” e a irritação que se instala, principalmente em virtude do final divergente entre e novela e a peça, é de outra ordem.
Como destacou Borsellino: “é significativa – enquanto concessão de Pirandello a previsíveis pedidos de comiseração do público, ou seja, de reabilitação de um vago personagem feminino – a transformação em choro – e, portanto, em nostalgia e remorso de uma pureza perdida – dos gritos festivos com os quais, no final da novela, a jovem diva acompanha a oferta dos limões sicilianos aos hóspedes de seu salão: como para marcar uma distância, impreenchível também nos sentimentos, em relação à autenticidade das pobres origens, uma distância que nenhuma repentina presença ou fragrância pode recuperar”.
Essa concessão já foi apontada, embora com outros argumentos: em vez de comiseração e reabilitação de Teresina, foi destacada a humilhação a que foi submetida o personagem, o que demonstrariauma concepção muito mais melodramática da peça do que da novela.
Colocadas essas observações, fica difícil aceitar a simplificação que Barilli fez da passagem de um gênero para outro, baseado no textocentrismo. As questões implicadas são muito mais complexas e vão de transformações dos textos a problemas de encenação e de recepção que não podem ser liquidados enfatizando apenas meras diferenças de forma.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neorrealismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).
Referências
AMICO, Alessandro d’. “Pirandello e il teatro”. In: PIRANDELLO, Luigi. Maschere nude. Milão: Mondadori, 2005.
BORSELLINO, Nino. Ritratto e immagini di Pirandello. Roma-Bari: Laterza, 2000.
CHIARELOTTO, Arivane; PASQUALINI, Joseni. “Pirandello a 360º, intervista a Rino Caputo”. Mosaico, Rio de Janeiro, ano IX, n. 120, jan. 2014.
DEGANI, Francisco. Pirandello “novellaro”: da forma à dissolução. São Paulo: Nova Alexandria-Humanitas, 2009.
DIAS, Maurício Santana. “Baú de máscaras: o laboratório teatral de Luigi Pirandello”. In: PIRANDELLO, Luigi. 40 novelas de Luigi Pirandello. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MACCHIA, Giovanni. “Premessa”. In: PIRANDELLO, Luigi. Maschere nude, op. cit.
PIRANDELLO, Luigi. “O dever do médico”; “Limões da Sicília”; “Ou de um ou de nenhum”. In: ________. 40 novelas de Luigi Pirandello, op. cit.
PIRANDELLO, Luigi. Il dovere del medico; O di uno o di nessuno. Disponível em <pirandelloweb>.
PIRANDELLO, Luigi. Lumìe di Sicilia. Disponível em <http//www.classiciitaliani.it>.
SALATINI, Erica. “I giganti della montagna di Pirandello: dramma metanarrativo e autoreferenziale”. Mosaico, op. cit.
SILVA, Juliana Yukiko Akisawa da. Ou de um ou de qualquer um: apropriações do teatro de Luigi Pirandello para a representação e para a leitura. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 2016.
SQUARZINA, Luigi. “Tre madri”. In: PIRANDELLO, Luigi. Tre madri: Così è (se vi pare); Come prima, meglio di prima; La vita che ti diedi. Roma: Newton Compton Editori, 1995.
Notas
[1] Em 23 de julho de 1917, numa carta endereçada ao filho Stefano, Pirandello escreveu: “já tenho a cabeça cheia de coisas novas! Muitas novelas… E algo estranho, tão triste, tão triste: Sei personaggi in cerca d´autore: romanzo da fare. Talvez você entenda. Seis personagens, presos num drama terrível, que ficam atrás de mim para serem compostos num romance, uma obsessão, e eu que não quero saber deles, e eu que lhes digo que é inútil e que não ligo para eles e que não ligo para mais nada, e eles que me mostram todas as suas chagas e eu que os mando embora… – e assim, no fim, o romance a ser feito resultará feito” (registrada em Amico).
[2] Conforme observou Juliana Yukiko Akisawa da Silva: “Diante da arte de interpretar e encarnar personagens, pode-se dizer que os textos teatrais, de modo geral, são obras por fazer, pois uma mesma peça pode ser encenada das mais variadas formas, sem perder a essência contida no texto”.
[3] A abundância de emprego de rubricas na dramaturgia pirandelliana, nas palavras de Borsellino, “responde tanto à necessidade de suprir uma falta de direção nas montagens italianas entre as duas guerras, com a diretiva recôndita do autor, quanto à exigência de experimentação do próprio Pirandello diante de sua palavra teatral”.
[4] Talvez seja apenas uma coincidência, mas é interessante assinalar que o título escolhido pelo grupo Tapa ecoa aquele dado por Ettore Petrolini à sua versão em dialeto romanesco da peça de 1910, Agro de limone (1923), em que “agro”, como o termo “acre” em português, pode referir-se tanto a um sabor amargo quanto ao que provoca amargura.
[5] A escolha foi determinada pelo fato de as peças terem sido montadas: a partir da encenação – quando estão presentes aspectos como o próprio espaço cênico, que pode variar de teatro para teatro, cenário, figurinos, iluminação, marcação, atuação, oralidade etc. –, torna-se mais evidente que as duas escritas têm finalidades diferentes de recepção.
[6] A esposa Adriana Montesani virou Anna; Dona Amalia, mãe de Adriana, tornou-se a Senhora Reis; o Doutor Vocalòpulo, Doutor Tito Lecci; o advogado Camillo Cimetta, Franco Cimetta. O filho (que, como a irmã, era apenas nomeado) e a empregada ganharam um nome: Federico e Rosa. Dois policiais se transformaram num guarda e quatro voluntários num enfermeiro, enquanto foram eliminados o segundo médico, Cosimo Sià, o jornalista Lello Vivoli, o zelador, as vizinhas e a multidão de curiosos.
[7] Na montagem do grupo Tapa, dirigida por Eduardo Tolentino, a fusão de diálogos tornou o fim da peça ainda mais abrupto. Isso, no entanto, acabou dando uma projeção maior à morte de Melina, personagem valorizado também pela atuação de Natalia Moço, secundada por Bruno Barchesi (Carlo) e Daniel Volpi (Tito).
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