Má-consciência e narcisismo às avessas

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Considerações sobre o cinema da Retomada.

“A nossa modéstia começa nas vacas (…) Cabe então a pergunta – e por que atá as vacas brasileiras reagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade – não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima. Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Um simples “bom dia” já nos gratifica”. (Nelson Rodrigues, crônica “A vaca premiada”, da coletânea A  cabra vadia).

A fratura de classes da sociedade brasileira está presente de modo recorrente em nosso cinema. Expressa-se no que podemos chamar, na alteridade, de “representação do popular”. Depois do intervalo da década de 80 (quando a produção nacional mais criativa estabelece um diálogo fechado com o cinema de gênero) os clássicos motivos da representação do popular (a favela, o sertão, o carnaval, o candomblé, o futebol, o folclore nordestino) retornam na Retomada dos anos 1990 e 2000. Vemos, outra vez, a fisionomia do povo na tela. Alguns elementos diferenciais, no entanto, marcam este momento.

O eixo que orienta a questão ética na representação do popular no Cinema Brasileiro, a partir dos anos 60, é o sentimento de má-consciência. Esta má-consciência está relacionada ao fato dessa representação do popular ser a representação de um “outro”, a assunção de uma voz que não é a de quem a emite. Trata-se de uma rachadura que, seguindo a sensibilidade crítica da Antropologia Visual, poderíamos chamar de epistemológica. Em sua complexidade contemporânea, já pode ser sentida com toda sua intensidade em Deus e o Diabo na Terra do Sol/1963), tomando sua feição mais precisa em Terra em Transe (1966).

Este é o filme no qual eclode a contradição ética intrínseca à representação do popular enquanto “outro”, dilema que compõe o fulcro central da obra de Glauber Rocha. No campo do pensamento sobre cinema, o livro Brasil em Tempo de Cinema (Civilização Brasileira, 1967), de Jean-Claude Bernardet, sente nitidamente a pressão desta rachadura epistemológica e a constata em tom recriminatório: este “outro” que representa o povo, que possui ambições de um saber pelo povo, nada mais é do que a classe média olhando para seu próprio umbigo. Temos um cinema de classe média, em vez de um cinema popular, e isto incomoda a geração que fez o Cinema Novo. “Já imaginaram Gerônimo no poder?”, nos diz num certo distanciamento brechtiano o protagonista de Terra em Transe/1967, Paulo Martins (Jardel Filho), com um líder sindical nas mãos, agarrado pelos ombros e olhando fixo para o espectador, encarnando as desconfianças e angústias desta alteridade. Pois “Gerônimo” chegou ao poder e o Cinema Brasileiro ainda se debate com sua sombra, na forma de uma má-consciência.

Narcisismo às avessas

Neste artigo vamos dar um nome à expressão contemporânea desta má- consciência: a chamaremos de “narcisista às avessas”, e vamos considerar que sua manifestação embute uma forma de crueldade. A má-consciência para com a alteridade popular desloca-se e, ao querer negar-se, assume uma postura acusativa. As dúvidas para com o potencial do povo e sua cultura (presentes no primeiro Cinema Novo e, em particular, nos longas de Glauber da década de 60) desaparecem para serem substituídas pela imagem idealizada deste mesmo povo. Na outra ponta do pólo popular, no pólo negativo, não está mais a classe média, mas a nação como um todo e, em particular, o Estado e suas instituições. Estabelece-se então a dualidade maniqueísta, povo idealizado/Estado incompetente, que percorre a produção da chamada Retomada. A satisfação e a catarse espectatorial realizam-se à custa desta polaridade, na forma de um “masoquismo primário” que, seguindo Nelson Rodrigues, chamaremos de “narcisismo às avessas”.

Estamos nos referindo às estratégias desenvolvidas por filmes-chave da Retomada, para promover emoções no espectador, através de mecanismos de catarse que incidem sobre uma representação, acentuadamente negativa, de aspectos da vida social brasileira. Em uma rota de fuga, a satisfação catártica deste espectador não se direciona mais para o universo representado propriamente, mas identifica-se com a postura acusatória que a narrativa sustenta, enquanto instância enunciadora. A postura acusatória face à nação incompetente, emerge como a prova do não pertencimento da classe média ao universo sórdido representado. Rimos e nos admiramos com este universo, mas não é nossa a responsabilidade, pois estamos, junto com a narrativa, também acusando. Se a nação como um todo e, em particular, o Estado brasileiro, é coberto com o “estatuto da incompetência”, aquele que acusa marca, pela iniciativa de acusar, seu não pertencimento à comunidade dos incompetentes.

O naturalismo cruel

Este é o prazer perverso, embutido na volúpia de representar o sórdido, que percorreu o cinema brasileiro contemporâneo. Podemos identificar uma espécie de “naturalismo cruel” que atravessa a produção da Retomada, tanto em sua vertente ficcional, como em sua produção de cunho documentário. Seja dentro de uma perspectiva mais intimista, ou seja a partir da má-consciência social do narcisista às avessas, a representação naturalista cruel aparece em obras-chave da produção cinematográfica brasileira dos anos 1990/2000: de Central do Brasil/1998 à Cronicamente Inviável/2000, passando por documentários como Notícias de uma Guerra Particular/1999; Boca do Lixo/1992; Os Carvoeiros/2000; O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas/2000; Ônibus 174/2002; O Prisioneiro da Grade de Ferro/2003. Também a encontramos em Orfeu/1999; O Primeiro Dia/1998; Dezesseis Zero Sessenta/1996; Como Nascem os Anjos/1996; Um Céu de Estrelas/1996; O Cego que Gritava Luz/1996; Bocage o Triunfo do Amor/1997; Estorvo/2000; Um Copo de Cólera/1999; Lavoura Arcaica/2001; Bicho de Sete Cabeças/2000; Latitude Zero/2001. No pioneiro Carlota Joaquina, Princesa do Brasil/1995, ou ainda nos posteriores Uma Onda no Ar/2002; O Príncipe/2002; O Invasor/2002; Dois Perdidos em uma Noite Suja/2002; ou nos dois grandes sucessos de público da produção nacional da época, Cidade de Deus/2002 e Carandiru/2003.

Dentro de sua gama diversa, este “naturalismo cruel” pode ser definido pelo prazer que toma a narrativa em se deter na imagem da exasperação ou da agonia. São constantes os longos planos dedicados para a representação de berros ou momentos de crise existencial. A exasperação dramática é mostrada em detalhe e exagerada ao extremo, para além da motivação realista. O deboche, os personagens sórdidos, os risos histéricos são representados em destaque, de modo lento e prolongado. A imagem da miséria, da sujeira, a ação dramática em ambientes fechados e abafados (como prisões ou favelas), surge de modo recorrente. Mortes, sangue, ações com requintes cruéis de violência são exibidas com toda sua crueza.

Esta imagem constitui-se dentro de uma estratégia que eleva a intensidade ao limite da agressão ao espectador. O naturalismo cruel incomoda, agride, provoca constrangimento e considera esse constrangimento um trunfo. À estratégia do espectador para obter prazer nesta situação chamamos de “narcisismo às avessas”. O naturalismo cruel costuma sair da esfera intimista-psicologizante (onde, em diversos casos, permanece) para cristalizar-se na representação de uma nação socialmente cindida. Os filmes em que isto acontece são o que nos interessam aqui.

A composição e sobreposição do naturalismo cruel com o narcisismo às avessas marca um percurso que embute uma forma de recepção. O genial da expressão rodrigueana (“o brasileiro tornou-se um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”) é conseguir resumir um traço essencial de sua própria obra (onde a crueldade excele) à forma de recepção que dela pressente: o caráter humilde, bovino, no limite masoquista, da personalidade do brasileiro, espectador ideal para ter prazer com a cascata iconoclasta de seus dramas. O gosto, o prazer “narcisista” (a ironia rodrigueana aqui é clara) que o brasileiro tem em cuspir na própria imagem, é expresso com humor em uma figura recorrente de suas crônicas futebolísticas: a intensidade e a facilidade (singular, segundo o autor, no cenário das nações), com a qual vaia-se o símbolo único, no qual a nação realmente destaca-se: a “seleção”.

Retomando o percurso esboçado: existe uma dimensão cruel no cinema nacional contemporâneo e essa crueldade embute uma agressividade – na forma do narcisista às avessas de Nelson – às instituições e ao Estado brasileiro (em particular), ou ao Brasil e ao “brasileiro” (em geral). Aventamos a hipótese que uma representação de caráter dual e maniqueísta (Estado incompetente/povo idealizado), acompanhando um motivo recorrente da história do cinema brasileiro (a má-consciência própria à representação do popular e dos temas que lhe são correlatos), constitua uma forma dramática predominante que dá vazão ao mecanismo narrativo tradicional de catarse e identificação do espectador.

Vejamos, de modo mais detido, como este universo maniqueísta se expressa dentro de um eixo temático preciso. Dois grupos podem ser destacados (deixamos de lado o intimismo dilacerado de Um Copo de Cólera, Latitude Zero, Estorvo, Um Céu de Estrelas, Lavoura Arcaica): os filmes que expõem a repre- sentação das mazelas da nação face ao personagem anglo-saxão (dicotomia estrangeiro idealizado/nação incompetente) e os que centram a construção do naturalismo cruel acentuando a oposição povo idealizado/nação incompetente. Os dois grupos não são estanques entre si.

O complexo de vira-lata

No primeiro caso, colocamos os filmes Carlota Joaquina, Princesa do Brasil; Como Nascem os Anjos e O Que é Isso Companheiro?. No segundo, são emblemáticos Central do Brasil; Notícias de uma Guerra Particular; Orfeu e Cronicamente Inviável. Filmes um pouco mais tardios como Cidade de Deus e Carandiru adaptam-se plenamente a uma análise centrada nestas categorias, mostrando sua pertinência.

A representação do estatuto da incompetência nacional percorre Carlota Joaquina, Princesa do Brasil de ponta a ponta. A essência do Brasil aparece mostra- da no universo baixo e servil da corte portuguesa que contamina irremediavel- mente nossas origens. Já os personagens anglo-saxões exercem duplamente seu papel moderador. O narrador escocês, além do poder de origem que a enunciação lhe confere, diverte-se e espanta-se com a incompetência dentro da qual desenrola-se o quadro histórico tupiniquim. No universo diegético propriamente, é o diplomata inglês que domina a situação política de maneira altiva.

Defende de modo preciso seus interesses, percorrendo com agilidade a eterna balbúrdia e as orgias nas quais mergulham os dirigentes luso-brasileiros. Neste momento chave de nossa fundação como nação, nosso mito de origem, por assim dizer, a referência anglo-saxã serve como parâmetro para medirmos nossa incompetência. Também característico, é o prazer exibicionista (autentica- mente “narcisista às avessas”) com que o traço de inferioridade é figurado. O tom é de autêntica humildade, restando, ao incompetente, o prazer de divertir a ponderação do estrangeiro que avalia. Uma fala oculta parece repetir: “Que ao menos valorizem nossas trapalhadas pois elas são inocentes, infantis, e só querem o espaço marginal de aprovação que é próprio do riso”.

Em Como Nascem os Anjos o estatuto da incompetência é figurado, de modo dual, entre os pólos povo positivo/Estado negativo. E também aqui, a figura do personagem anglo-saxão surge exercendo seu poder moderador, face à nação bra- sileira exposta em suas misérias. O lado institucional desta nação, a polícia, é mostrado em oposição às demandas ponderadas e humanistas do americano, mantido como refém, que solicita a presença de ONGs para evitar o assassinato dos menores e também de uma Comissão de Direitos da Criança quando de seu resgate.

A atividade da polícia é evidenciada como exemplo de incompetência, preconceito e irracionalidade. Também a mídia nacional é apresentada no mesmo tom. No lado “popular” da história, predominam personagens que não conseguem articular de modo coerente suas demandas: duas crianças volúveis e um bandido no limite da loucura. Este bandido, personagem meio bobo, gritando muito e de modo irritante, responde a uma tradição antiga do Cinema Brasileiro que remonta ao Cinema Marginal nos anos 1960.

Salles recupera este tipo, como forma de lidar e representar o universo popular do morro, preparando-o para a interferência “construtiva” do personagem anglo-saxão. O filme desloca o conflito para o aspecto institucional da nação (a brutalidade policial), buscando preservar o lado “popular”. A figuração do universo do morro através de um bandido retardado e duas crianças inseguras, parece ter a função de fazer com que a contraposição estrangeiro/nação incompetente se realize de modo inteiramente favorável ao primeiro. Um personagem popular mais espesso e coerente, consciente, comprometeria a polaridade maniqueísta e a postura narcisista às avessas.

O bandido retardado é, na realidade, a configuração de um mal-estar, que se delineia logo nas primeiras cenas. Configura uma visão masoquista da sociedade brasileira que oferece o que existe nela de pior para o exercício da condescendência do personagem anglo- saxão, com o qual o espectador se identifica com via de escape.

A constelação da postura humilde face ao personagem estrangeiro encontra- se igualmente em O Que é Isso Companheiro?, de Bruno Barreto. O diplomata americano seqüestrado possui a única voz sensata, em meio a adolescentes desvai- rados, torturadores e militares autoritários. Personagem de maior densidade do filme, o embaixador norte-americano é o único a ter conflitos existenciais que permitem uma evolução complexa de sua personalidade. Apesar de representante da nação imperialista, desenvolve uma simpatia humanista pelos seqüestradores, interessando-se pela bibliografia esquerdista apresentada, além de possuir uma delicada visão poética de sua situação (ao descrever, por exemplo, a pele e as mãos dos seqüestradores).

Estes, ao contrário, são bem mais planos. Encarnam tipos particulares (o durão, a mocinha, o intelectual, o menino deslumbrado), servindo como parâmetro para o estabelecimento de eixos através dos quais o personagem do embaixador cresce. O único seqüestrador que poderia concorrer em maturida- de e complexidade à personalidade do embaixador, o personagem do velho líder comunista que supervisiona a operação, permanece em plano secundário sem nenhum desenvolvimento. O deslumbramento com o universo ideológico da contracultura norte-americana e a elegia à postura existencial do liberal anglo-saxão, constituem o ponto de vista escolhido pelo filme para retratar o momento histórico capital vivido pelo Brasil naquele instante.

A representação da incompetência do grupo brasileiro no planejamento e realização do seqüestro é explícita. A postura humilde face ao personagem estrangeiro, fazendo dupla com a exibição da cultura popular, é recorrente em outros filmes da produção da Retomada podendo ser detectada em Bela Donna, de Fábio Barreto; For All – Trampolim da Vitória, de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz; Natal da Portela, de Paulo César Sarraceni; Jenipapo, de Monique Gardenberg. Em Amélia, de Ana Carolina, a postura humilde é mais tencionada e o quadro do narcisista às avessas não surge tão claramente. A dupla caipira desenvolve estratégias concretas para enfrentar e driblar a opressão da prima-dona européia. O documentário Banana is My Business, de Helena Solberg, constitui uma exceção neste quadro, retratando a humilhação de Carmen Miranda e de modo negativo a humildade nacional face à arrogância anglo-saxã. Neste filme a satisfação narcisista às avessas não decola.

O resgate de má-consciência na idealização popular e na crítica acirrada ao estado incompetente

Se a dicotomia “personagem anglo-saxão idealizado/Brasil inviável” exemplifica bem a dimensão humilde do narcisismo às avessas, a segunda dualidade apon- tada, entre “povo idealizado/Estado incompetente”, marca do modo ainda mais emblemático a representação naturalista cruel. Três filmes-chave da produção cinematográfica brasileira dos anos 1990/2000, Central do Brasil, Orfeu e Cronicamente Inviável, se articulam de modo emblemático atualizando, em uma expressão contemporânea, os dilemas próprios à “ruptura epistemológica”, mencionada acima, da dualidade povo/classe média dos anos 60. O ponto que realçamos aqui é o retorno da temática da representação do popular na Retomada (sua cultura, sua fisionomia voltam à tela), relacionando-o à postura humilde do espectador, na forma de um narcisismo às avessas. Esta postura humilde constitui-se através da crítica acirrada à incompetência do Estado brasileiro, contraposta à idealização do popular que raia como via de escape. O narcisista às avessas nega-se através da elegia idealizada do outro (por isso é humilde) e se redime na catarse desta idealização.

Em Central do Brasil a má-consciência da protagonista (Dora) para com o povo humilde é evidente e sua oscilação constituirá o principal móvel dramático do filme. Trair ou não trair o povo é um dilema presente de forma recorrente no cinema brasileiro dos anos 60. Na década de 90, a tragédia existencial-política é mais rala e melodramática. Em Central do Brasil o percurso da narrativa é claro. Parte de uma visão do país que é acentuada em seu negativismo, para, em seguida, desenvolver um movimento de redenção pela catarse da piedade. O mais cruel dos crimes (o assassinato de crianças pobres para extração de órgãos), surge como algo corriqueiro na “central”, no coração, do Brasil.

Aos pequenos crimes de Dora sobrepõe-se este, maior em escala, em cuja participação existe um “quê” de ação cotidiana banal. Também na “Central”, o assassinato de crianças que cometem pequenos furtos é corriqueiro. O motor da ação, que irá configurar a má-consciência de Dora, é concebido para ser pesado ao extremo, refletindo a necessidade de mostrar um quadro de sordidez na qual o país está mergulhado. Dora é movida pela má-consciência, figurando em si o sentimento de classe dos diretores do filme (e de boa parte do público), com relação ao universo popular que circula na Central do Brasil.

A figuração da má-consciência, no entanto, parece ser excessivamente incômoda para ser deixada nessa forma, sem um horizonte no qual possa ser resgatada. E é a esse resgate que se dedica a segunda parte do filme. Dora é purgada de suas oscilações sobre o sacrifício do menino na seqüência da procissão, quando mergulha fisicamente no povo e encontra-se embebida em sua fé e sua cultura. Um dos momentos-chave do filme, a sequência da procissão, traz a comoção pessoal vivenciada internamente, produzindo como resultado a conversão defini- tiva da protagonista ao menino.

A virada é bem marcada e a dimensão conflitiva, que impedia o congraçamento do espectador com a causa popular, desaparece do horizonte. Até a atriz Fernanda Montenegro está agora mais à vontade para realçar seu personagem. Através da catarse pela piedade, explora-se o dilatado espaço entre a sordidez do crime pensado e o tamanho da conversão. Através da catarse, a narrativa resgata a passividade dos personagens para com a dimensão sórdida da nação, que assassina suas crianças ou as trafica para o exterior. É a nação inviável que recebe o ônus de sustentar a conformação dos pólos extremos da equação, necessários para a figuração da catarse pela piedade: “congraçamento na negação do pertencimento à nação inviável” (e minha adesão à postura crítica é a prova de que não pertenço à coletividade incompetente) versus “congraçamento na piedade do povo idealizado”. O naturalismo cruel serve como estilística que acentua as dicotomias. É interessante notar aqui como a postura narcisista às avessas abre espaço para a constelação de emoções de caráter exaltativo.

Em Orfeu (1999), de Cacá Diegues, a representação da cultura popular compõe o eixo dramático do filme, enquanto pólo opositor à sordidez que cerca a dimensão institucional da nação. É interessante notar a volta de Cacá a um tema que, no final dos anos 50, conformou um consenso, para o Cinema Novo, em torno de como não tratar a cultura popular. O Orfeu de Camus (Orfeu do Carnaval, 1959) encarnava a postura humilde do popular folclórico que se oferece à fruição do espectador estrangeiro. No segundo Orfeu, o clima idílico do morro do primeiro filme é completamente deixado de lado.

Temos no horizonte o quadro desesperador da nação inviável, representada pela polícia corrupta e insensível. O sargento protagonista é preconceituoso, violento e advoga, entre outras coisas, a esterilização dos pobres e seu extermínio. Orfeu afirma explicitamente que este tipo de polícia é “a única coisa do Estado que sobe o morro”. A cultura popular aparece como manifestação idílica de resgate da identidade, a partir da qual instaura-se o mito de Orfeu e o tom fantasista que permeia o universo ficcional positivo.

A favela idílica do primeiro Orfeu desaparece para dar lugar à representação da nação inviável, mas o lado idealizado da cultura popular permanece. Este é o deslocamento central exercido no mito pelo segundo Orfeu com relação à representação do popular na primeira adaptação. A ela devemos acrescentar a cisão do universo popular, que agora também surge representado em seu lado negativo (a violência do grupo de traficantes, incorporando a figura mítica da Morte). No entanto, mesmo dentro da dimensão negativa, o recorte do popular possui uma ética de valores que é negada aos agentes institucionais do Estado, permitindo o estabelecimento do pólo de contraposição necessário para a identificação redentora que modula a crua intensidade do naturalismo cruel.

Cronicamente Inviável é a obra que conseguiu delinear de modo mais preciso esse estatuto da incompetência do Estado brasileiro, carregado de crueldade ao detalhar a representação do sórdido. As figuras do popular não estão aqui no eixo central do filme, construindo a oposição redentora ao Estado incompetente. A figuração da incompetência é horizontal. Todos são acusados. Não se abre uma exceção na qual o espectador consiga sustentar-se para salvar qualquer intuito de identificação. Não encontramos a porta para a recuperação do ego pela catarse na figura do popular idealizado. Nem tampouco está presente a figura redentora do personagem anglo-saxão.

A nação como um todo é inviável e o filme vai percorrendo, um a um, seus agentes sociais, querendo demonstrar essa tese. Do movimento sem-terra, passando pelas lideranças indígenas, movimento negro, jornalistas, homossexuais, burguesia, professores, ONGs, centros de caridade, projetos alternativos de recuperação de menores, todos são reduzidos à evidência da incompetência, do oportunismo e das intenções menores e egoístas. Qualquer tentativa pontual de se lidar de forma positiva com o caos social é desconstruída com uma ponta de prazer.

Cronicamente Inviável, no entanto, abre espaço para uma postura espectatorial cômoda. A crítica acirrada, em sua horizontalidade, estabelece o eixo redentor de identificação com a voz narrativa que enuncia a acusação. Uma vez nessa posição, podemos nos direcionar, sem má-consciência, à coletividade inviável, pois está prova- do que dela não fazemos parte (a prova é que a criticamos acirradamente), e confortavelmente nos instalarmos na humildade narcisista às avessas. Trata-se do mecanismo descrito de embate (e defesa) com o naturalismo cruel.

É interessante notar que o próprio filme, e os cineastas que o compuseram, estão excluídos da metralhadora iconoclasta que percorre a sociedade brasileira. Está ausente do filme qualquer dimensão reflexiva que tematize a enunciação do quadro exibido. Com efeito, a postura crítica não pode abarcar a instância enunciadora dessa mesma crítica, no caso o filme em si mesmo. Na medida em que isto se configure, o círculo se abre e o exercício da redenção, através da exclusão do pertencimento, estará dificultado. A representação negativa da nação dilacerada em Cronicamente Inviável permite um tipo de satisfação do espectador que embute uma identificação à coletividade, próxima da representação nacionalista exaltada, com o narcisismo às avessas beirando um nacionalismo às direitas.

O fato de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, não figurar a dualidade povo idealizado/Estado incompetente como eixo redentor do naturalismo cruel talvez esteja na raiz das reações desencontradas que provoca. Em Cidade de Deus o pólo “Estado brasileiro” continua a ser definido de modo negativo. Não ocupa, no entanto, no filme, a função de resgate emocional pela crítica, estabelecendo assim o contraste com o idealizado pólo positivo-popular. Isso incomoda, pois a postura humilde, embutida no narcisismo às avessas, não consegue realizar-se em sua plenitude.

Neste filme, a mistura da cultura popular com elementos da contracultura dos anos 60 (uma cultura essencialmente de classe média) e com a cultura de massa veiculada pela mídia, é um dos fatores na quebra da dualidade. Os personagens de classe média também não se configuram em clara oposição ao eixo popular (o personagem da jornalista, por exemplo). O povo em Cidade de Deus não é bonzinho, nem a exibição de sua cultura tradicional (samba, candomblé, futebol) ocupa espaço de destaque.

Na realidade, a representação naturalista cruel atinge também o eixo do popular e não há resgate como em Orfeu ou Central do Brasil. Em uma das figurações marcantes do naturalismo cruel no cinema brasileiro da Retomada, o filme representa em detalhes o assassinato e a tortura de duas crianças. A função do detalhamento da cena parece ser a de um puro sadismo agressivo para com o espectador. O salto clássico do narcisismo às avessas em busca da redenção está dado, mas não é apertado seu laço no pólo “Estado incompetente”.

Em Carandiru o movimento já é mais clássico e podemos delinear a temática do Estado incompetente como eixo catártico. Babenco é um cineasta com claras raízes argentinas, de forte intensidade visual, que sempre teve uma caída para o lacrimoso ao representar o lado sórdido da realidade social brasileira. Em Carandiru, a última meia-hora do filme parece estar à vontade para a figuração do Brasil infame que já encontramos em Pixote, a Lei do mais Fraco/1981; Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia/1977; O Beijo da Mulher Aranha/1985; Brincando nos Campos do Senhor/1991.

A cena do massacre, onde é dada vazão plena ao detalhamento naturalista cruel, começa com a entoação do hino nacional na partida de futebol e termina com os acordes de Aquarela do Brasil, logo no início dos créditos. O Brasil dos coqueiros que dão coco e das noites claras de luar não pode ser deixado em paz. O embate com o choque que a representação naturalista do massacre provoca é modulado pelo endosso da ironia fácil que, através da canção, contrapõe o Brasil idílico ao Brasil cruel do Estado incompetente.

Essa necessidade recorrente de identificação na postura crítica (de novo Nelson), exacerbada dramaticamente pela representação cruel é, sem dúvida, testemunha de um mal-estar social ao qual chamamos de má-consciência. Trata-se de uma forma de purgação (sinônimo de “catarse” para a estética clássica) de uma classe média perplexa, face a uma realidade social dilacerada pela qual se sente, além de amedrontada, responsável.

*Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Co-autor de Nova História do Cinema Brasileiro (Ed. SESC).

Publicado originalmente na revista Crítica Marxista, no.19, 2004.

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