Por FLÁVIO VALENTIM DE OLIVEIRA*
Comentário sobre o filme dirigido por Marianna Brennand, em exibição nos cinemas.
Para Jamilli Corrêa
1.
O barulho da maré e do vento introduz o espectador do filme Manas, dirigido por Marianna Brennand, na experiência sensitiva com a região do Marajó. Ali ninguém pode ter dúvidas de como a natureza é poderosa e difícil de subjugar. Um pouco mais tarde, no desenrolar do filme, o espectador vai perceber também que a resistência de meninas é uma outra força daquela região. São meninas que aprendem pela experiência sensitiva que o prazer é uma imposição dos homens.
Ressalto aqui a palavra resistência por causa do seu significado político no contexto do filme, afinal, as mulheres dessa região vivenciam o peso do darwinismo social e sua regra universal da adaptação. Que menina, após o trauma dos abusos sexuais, não ouviu a expressão: Você precisa ser forte!
Mas, antes dessa constatação mencionada acima é com uma certa surpresa que olhamos na primeira cena que Danielle (Fátima Macedo) e Marcielle (Jamilli Corrêa) são mãe e filha. Surpresa porque ambas são meninas. Essa imagem revela outra força, a saber: a violência masculina, violência essa que impõe a essas meninas a condição indesejável de mãe e, por isso mesmo, salta aos olhos o sentimento de perplexidade de que mães e filhas parecem irmãs, de tão jovens que são essas genitoras.
Essa situação nos leva a uma cena sutil e dramática: a mãe e as crianças entram na floresta para apanhar açaí, uma cena que, aparentemente, mostra o lado íntimo de uma família simples e extrativista, mas que, na verdade, mostra que nessas plagas não se respeita o tempo das colheitas, a saber: o amadurecimento das meninas. Elas é que são arrancadas violentamente dos cachos da infância.
Marcielle, menina curiosa, olha para uma fotografia da irmã que nunca mandou notícias. Não é por acaso que a foto aparece desfocada. Aliás, essa é uma questão narrativa central do filme que pode ser traduzida na pergunta: Quem vai contar a história dessas meninas? Marcielle já ouviu dizer que elas eram parecidas e que partiu para o Rio de Janeiro pegando a balsa.
Ora, a balsa que vai se constituindo no argumento do filme como uma representação enigmática para quem não está acostumado com o realismo amazônico e, contudo, é quase percebido como um mito diabólico para todos aqueles que sabem que nela se transporta o peso da exploração sexual infantil. Como se o barqueiro Caronte (o barqueiro que atravessa as almas mortas) fosse um personagem familiar no Marajó.
É por esse motivo que somos induzidos, por um instante, a ter simpatia pelo pai Marcílio (Rômulo Braga) que nos faz acreditar na ilusão de que ele é um pai protetor quando diz que filha sua não é pra subir na balsa. Frase que só irá revelar o sentimento doentio da posse patriarcal.
2.
O filme acompanha a curiosidade sexual de Marcielle. Ela perscruta um velho livro de biologia sobre os órgãos reprodutores femininos. Livro canônico e ultrapassado que não vai preveni-la do seu destino de abusos. Vejamos que em outra cena muito importante, Marcielle e a amiga Cynthia dançam numa festa de aparelhagem cujo cenário são as luzes fortes e coloridas.
Deslumbradas como pequenos insetos, elas estão ali muito mais brincando do que erotizando, embora Cyntia já seja iniciada no jogo de sedução com seu pequeno batom. Abusadores estão ali à espreita e sob o som de uma música ao fundo que a cantora grita: “Eu sou do Pará”, nota-se nesse ambiente um sentimento muito mais de vergonha do que de orgulho local. Talvez, não seja por acaso, que Marcielle sinta vertigem e ânsia de vômito. Saindo do banheiro, vê pela primeira vez uma prostituta sendo maltratada e enquadrando um homem com sua navalha. Olha com espanto e admiração aquela mulher que nada se parece com a mãe submissa.
Tudo é um labirinto de armadilhas sexuais. No comércio de Dona Jacy tudo se vende e se troca. É ela que manda recados dos balseiros para a menina Cyntia. Enquanto isso, Marcielle apenas dança na igreja a música “Conquistando o impossível”, marcada pelo refrão “Campeão, vencedor. Essa fé que te faz impossível”. Mas após o estupro a personagem silencia, erra todos os passos no dia da apresentação e percebe que até mesmo o menino Jesus não irá lhe proteger, descobre que esse mundo não é para as meninas. Assim, quando Marcielle vai tirar a sua foto de identidade (ela que queria apressar o rio da maturidade) já sabe que isso é uma coisa que ela não terá.
Digno de nota é o belo trabalho de Fátima Macedo (Danielle, mãe de Marcielle). Essa personagem conduz com maestria o ritmo do silêncio e todo espectador sentirá com ela a dura experiência de autocontrolar a raiva em situações de tanta injustiça.
Com a sua personagem, percebemos que a submissão não é algo que cabe nas descrições sociológicas e, talvez, somente a arte da atuação nos ensine como é difícil sair dessas armadilhas da servidão. Ela dá banho na filha, olha para Marcielle quando esta pede ajuda: desejando apenas sua rede de volta para fugir das investidas do pai; ela segura o choro, dizendo pelo olhar que a ama, mas não pode fazer nada.
O pai carinhoso que está iniciando a filha nos rituais da coragem por meio da caça, se transfigura no predador sexual. Sua respiração excitada por detrás de Marcielle e o barulho do tiro não deixa dúvidas. O banho no rio só vai mostrar ao longo do filme que estás águas não purificam, não tiram as manchas da vergonha. Esse homem violento é o mesmo que promete proteção.
É angustiante ver uma menina que confia no pai ter sua sexualidade violentada lentamente. O filme está todo na intimidade e, nesse aspecto, Marciel é exatamente o personagem que mostra a violenta intimidade que nossa hipocrisia não quer ver. Ora, o que dizer diante de uma menina que apenas quer um suporte (um punho de rede, como se diz na linguagem local) para se livrar do assédio?
Desse modo, o personagem do pai abusador é objeto de repulsa do público. Ele é tipicamente o homem amazônico espoliado e quem é espoliado quer também espoliar no capitalismo. Marx diz que a mercadoria é misteriosa porque ela encobre as “características sociais do próprio trabalho dos homens”. A mercadoria assume uma vida própria, como se fosse independente e assim quando se produz mercadorias se produz fetiche. Marcielle é ao mesmo tempo uma “mercadoria” e um “fetiche”.[i]
Marciel despacha a esposa como uma mercadoria usada e pelo fato de ver a filha como outra mercadoria, ele não permite que outros homens se aproveitem dela; ele sabe também que um balseiro fisga as meninas como peixes e sua função é apenas indicar a cabine do freguês. Sua posse é a filha e ele reivindica o prazer sexual com toda autoridade de pai diante da delegada Aretha (Dira Paes).
Deixa claro que ela, como representante do Estado, não pode invadir sua intimidade – essa intimidade que garante a sobrevivência das meninas. A esposa Danielle deixa claro, por exemplo, que foi Marciel que lhe deu um teto e comida. Quando a delegada Aretha o confronta por abuso sexual o espectador pode até suscitar uma nova esperança. Mas depois que Marciel vai buscar a filha de volta, numa casa em que só vivem mulheres, sabemos que o direito social vale muito pouco nessa região.
3.
Quando o corpo do pai é enterrado no manguezal pelas filhas o espectador regressa a imagem adâmica primitiva da volta do patriarca ao barro. Esse barro que fundou, inclusive, muitas das nossas crenças missionárias e civilizatórias sobre a região amazônica. Difícil não notar que Marciel vai para a igreja para receber a benção de homem decente e isso não será um problema, desde que ele leve a família, ninguém contestará esse título. Afinal, igrejas cheias com famílias é também um contrato.
Mas o filme Manas não é propriamente um julgamento moral. Não basta apenas odiar Marciel para entender o filme. Vale lembrar que nos anos 1970 o famoso cineasta italiano Pier Paolo Pasolini foi acusado, inclusive por seus companheiros do cinema e da literatura, de nutrir uma nostalgia retrógrada da “Italieta” (termo pejorativo que designava uma Itália do passado, profundamente provinciana).
Pier Paolo Pasolini respondeu a essas críticas dizendo que ele era o próprio inimigo da “Italieta” porque tudo nela é “pequeno-burguesa, fascista, democrata-cristã; é provinciana e à margem da história”.[ii] Contudo, Pasolini distingue essa mentalidade provinciana do “mundo camponês pré-nacional e pré-industrial”. Desse mundo Pasolini extraiu muito de sua linguagem crítica contra a vida supérflua da burguesia nacional italiana.
Por que faço essa interpolação com o filme Manas? Porque talvez um público provinciano de Belém aplauda o filme e aponte o dedo para o personagem Marciel. Justo esse personagem que é potencialmente o espelho mais primitivo da masculinidade e do poder local. Assim como Pasolini, a diretora de Manas mergulhou nas águas do mundo ribeirinho (um mundo nada mítico e que se desenrola em submundos).
Aliás, quando um certo ditador nacional disse que a floresta amazônica não queima porque ela é úmida, isso não poderia deixar de ser escutado como uma alegoria perversa sobre as mulheres, especialmente de meninas do Marajó. Espera-se delas, por conta da exploração sexual, que elas estejam sempre úmidas.
*Flávio Valentim de Oliveira é professor de filosofia. Autor, entre outros livro, de Arte, Teologia e Morte. Filosofia e literatura em Franz Kafka e Walter Benjamin (Appris). [https://amzn.to/3xAH44f]
Referência
Manas
Brasil, 2025, 101 minutos.
Direção: Marianna Brennand.
Roteiro: Felipe Sholl, Marcelo Grabowsky, Marianna Brennand, Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Carolina Benevides.
Elenco: Jamilli Corrêa, Rômulo Braga, Fátima Macedo, Dira Paes
Notas
[i] Karl Marx. O capital. Crítica da Economia Política. Livro I. (2014). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.94.
[ii] Pier Paolo Pasolini. Escritos Corsários (2020). São Paulo: Editora 34.
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