Margem equatorial – disputa dos interesses convergentes

Imagem: Lars H Knudsen
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Por SANDRO FRANCISCO DETONI*

Com 45,58% da Petrobras nas mãos de “investidores” estrangeiros, a exploração da Margem Equatorial revela-se como sofisticado mecanismo de ajuste fiscal disfarçado de soberania energética. Assim, o governo atua como mero facilitador dos lucros privados

1.

O conflito existente entre os propósitos produtivos e os preservacionistas se expõe nos intensos debates que envolvem a extração das reservas de hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) da Margem Equatorial. A questão, frequentemente, apresenta-se imbuída de dogmas que contribuem para escamotear o cerne dos interesses existentes.

Entende-se que a análise acerca da exploração desses recursos naturais pressupõe três perspectivas político-ideológicas, um triângulo ilustrativo que representa os campos opostos da disputa, mas convergem num interesse comum – o aprofundamento da dominação imperialista.

Em um dos vértices do triângulo aqui proposto se insere os grandes grupos empresariais petroleiros mundiais que, de forma direta ou indireta, atrelam-se aos interesses imperialistas e discorrem alegações favoráveis à extração. Contrariamente a tal orientação, encontram-se os preservacionistas ambientais, cujo discurso se apoia na defesa dos ecossistemas naturais e antrópicos, os quais também corroboram para a reprodução discursiva de uma pauta engendrada por um dos setores imperialistas.

Finalmente, incluem-se no pleito os adeptos do nacional-desenvolvimentismo que podem ser caracterizados como idealistas, pois não consideram o papel relegado ao país no contexto global da economia capitalista. Todavia, apresentam um conjunto argumentativo favorável à exploração petrolífera, pois pretendem que os investimentos e as rendas obtidas sejam acompanhados de um possível ciclo de desenvolvimento econômico e social.

As petrolíferas possuem o respaldo do Ministério de Minas e Energia e dos seus órgãos correlatos. Verifica-se um sistema articulado para a defesa dos seus interesses por meio de uma construção argumentativa que representa o posicionamento do executivo federal frente à questão. Destaca-se que a Petrobrasé parte fundamental da narrativa, cujo simbolismo é utilizado pelo governo atual para o encaminhamento teórico de um propósito de desenvolvimento nacional advindo dos ganhos obtidos pela exploração petrolífera.

As vantagens econômicas da extração são evidentes, visto que o custo monetário para a produção de um barril de petróleo responde a um retorno, por vezes, de 10 vezes o seu investimento. Contudo, torna-se fundamental traçar os artifícios financeiros para que o retorno real da renda petrolífera não signifique, automaticamente, o estabelecimento de um projeto soberano de desenvolvimento, ou mesmo, um menor preço para a população dos seus produtos derivados.

Segundo as informações da própria petroleira nacional, em abril de 2025, o montante de 45,58% da sua composição acionária pertencia aos “investidores” estrangeiros. Outros tantos da participação compreendem especuladores nacionais, os quais estão sempre ávidos pela distribuição dos seus dividendos. Soma-se o papel não distinto do executivo nacional que, diante da limitação orçamentária, em razão do jogo especulativo da dívida pública, vai buscar, via artifícios fiscais mirabolantes, equalizar o emprego de políticas filantrópicas e a garantia dos lucros para o setor financeiro.

2.

Nesse sentido, a distribuição dos dividendos da Petrobras alimenta, ironicamente, a máquina fiscal do governo para a manutenção das coisas como estão, ou seja, a exploração petrolífera também é uma forma de “ajuste fiscal” engendrada pelo executivo federal.

Pode-se afirmar que tais dividendos se constituem numa importante fonte de recursos financeiros para as contas públicas, sobretudo, ao considerar que a equipe econômica, respaldado pelo chefe do executivo federal, faz malabarismos para subtrair algumas migalhas das políticas básicas de proteção social, sob a denominação de “pente-fino”.

Trata-se de um posicionamento que, institucionalmente, não encontra resistência ideológica alguma, a ponto de o próprio governo federal se mostrar favorável à imprudência que envolve a flexibilização da legislação ambiental, principalmente, no âmbito do chamado licenciamento autodeclaratório.

Tal ação tem um único objetivo: viabilizar os negócios de certos setores da burguesia. Acrescenta-se ainda a aberração da lei de partilha (lei federal n. 12.351 de 2010), sustentada e articulada pelo governo corrente, que permitiu a entrega da exploração petrolífera aos oligopólios internacionais do setor, procedimento já colocado em prática na Margem Equatorial.

Por conseguinte, deve-se também levar em conta o fluxo petrolífero. De certa forma, parte da renda é perdida quando se exporta o produto bruto e importam os refinados com valor agregado. Para aprofundar o grau de dependência, colocou-se em prática a entrega da infraestrutura pública do seu processamento.

O controle de parte das refinarias pelo capital internacional descreve uma articulação que determina a incorporação do sistema produtivo petrolífero pelos oligopólios imperialistas. Junta-se a essa questão o fato de não haver qualquer esforço do governo vigente em fomentar o debate acerca da irracionalidade econômica que envolveu a “doação” da empresa pública de distribuição de combustíveis.

O lema do poço ao posto não existe mais. Tal princípio, além de representar controle completo das fases produtivas petrolíferas, simbolizava uma marcação ideológica da natureza pública desse recurso natural. Indubitavelmente, os objetivos atuais são distintos, pois grande parte da renda petrolífera se dirige ao capital financeiro internacional. Por isso, quando o governo federal apregoa a necessidade de sua exploração, há um propósito velado, a defesa dos interesses de um projeto imperialista. A falácia do interesse nacional se expõe aos fatos.

3.

Por outro lado, a exploração do petróleo como recurso energético se articula ao setor elétrico. Convém destacar que a entrega da Eletrobras incluiu uma reserva de mercado de geração que diz respeito à obrigatoriedade da contratação de 8 GW de termelétricas a gás natural. Já a nova lei do gás de 2021 (lei federal n. 14.134 de 2021) expressa, não somente, o poderio do setor, como a necessidade de estabelecer uma estratégia duradoura para o suprimento do insumo. Se a demanda por petróleo é inevitável, a de gás natural é induzida.

A aquisição de um conjunto de termelétricas por um grupo do setor alimentício na região amazônica é a materialidade que traz substância ao conceito, pois foi possível mediante a expedição de uma Medida Provisória (MP) que garantiu um socorro financeiro à Amazonas Energia (MP 1.232 de 2024), empresa privada de distribuição energética que se encontrava deficitária junto às termelétricas geradoras regionais.

Com a MP, o executivo federal incluiu a dívida na Conta de Consumo de Combustíveis, ou seja, um prejuízo socializado para a população de todo o território nacional. Mais uma vez, o atual executivo federal é o facilitador dos negócios e dos lucros privados da burguesia.

No outro vértice do triângulo, encontra-se o Ministério do Meio Ambiente (e Mudança Climática), representado pelo Ibama, o qual, naturalmente, encampa o discurso pró-preservação. Por vezes, agem dentro da legitimidade e da legalidade técnico-científica, por outras, sob a pressão – e mesmo orientação – das Organizações Não Governamentais (ONGs). Com relação às ONGs, os seus financiadores, quase uma regra, são os grandes oligopólios com importante atuação do capital financeiro.

Porém, não se deve menosprezar a ação dos oligopólios petrolíferos internacionais que interpretam a região como uma reserva estratégica de hidrocarbonetos. Cabe ressaltar que as ONGs, no jogo da disputa política, defendem a sua existência, em outras palavras, se o seu objetivo é a suposta defesa ambiental, vão agir dentro dessa lógica.

Ademais, as ONGs são parte da dominação imperialista para a apropriação dos recursos naturais dos países periféricos. Para isso, constroem as suas narrativas discursivas. No caso específico, apresentam, principalmente, a falácia do impacto ambiental na foz do Amazonas, distante, aproximadamente, 500 km das reservas petrolíferas.

Por fim, identifica-se a participação dos idealistas na disputa discursiva, os quais evocam uma soberania nacional que sequer existe, sobretudo, quando o assunto se refere aos recursos petrolíferos. A construção argumentativa se baseia na suposição de que a ação exploratória dos poços petrolíferos da Margem Equatorial trará ganhos econômicos e sociais para o país. Tal interpretação é válida apenas num mundo ideal, o que incluiria o controle estatal desse fundamental recurso energético e insumo industrial. Nas circunstâncias atuais, o Estado nacional se posiciona como mero representante dos interesses do setor petrolífero imperialista e do capital financeiro nacional e internacional.

Muitas vezes, quando confrontados com tal realidade, os idealistas destacam como atributo positivo a importância dos negócios petrolíferos para o entorno imediato das áreas de exploração que seriam materializadas na geração de emprego e de renda. Entretanto, não consideram a condição dependente e periférica do país.

Ao pontuar que a distribuição de royalties para os estados e os municípios é um fator de investimento social, negligencia-se a economia política em que o país se insere. É oportuno utilizar as reflexões de Ruy Mauro Marini, dispostas no livro Dialética da Dependência, para caracterizá-los, visto que pretendem substituir o fato pelo conceito abstrato, o que seria uma das incoerências e dos desvios que a realidade sugere. Outra incoerência, com base nas proposições de Ruy Mauro Marini, é a utilização de um enfoque teórico-metodológico que não foi desenhado especificamente para explicar tal realidade.

A construção teórica idealista pressupõe que a exploração do recurso natural em questão poderá alicerçar um quadro nacional-desenvolvimentista e, consequentemente, poderá engajar um ciclo de crescimento econômico pontual no tempo e no espaço. As condições materiais permitem chegar a uma conclusão oposta, pois o sistema, como se encontra estruturado, permite, com efeito, aprofundar a dependência e a hegemonia do capital financeiro. Há, portanto, uma falácia desenvolvimentista que permeia a argumentação.

4.

Em resumo, a exploração petrolífera da Margem equatorial é valorosa se considerada no contexto de uma lógica autônoma de desenvolvimento econômico. Porém, as condições reais da divisão internacional capitalista inviabilizam qualquer aceno soberano e desenvolvimentista.

No âmbito do governo federal, observam-se os seguintes posicionamentos conflitantes: o primeiro se volta para a defesa dos interesses do negócio petrolífero. A lógica de atuação favorece, marcadamente, a especulação financeira nacional e internacional. Vislumbram algum ganho fiscal à máquina pública, mas acabam por estruturar e aprofundar as condições de dependência, juntamente com o caráter periférico da economia nacional.

O segundo grupo encampa o discurso preservacionista, fortemente pautado pelas ONGs e que, inevitavelmente, age para defender os interesses delas. Com isso, a construção discursiva e o encaminhamento prático podem ser interpretados como uma intervenção imperialista nos assuntos de política interna.

O terceiro grupo, não hegemônico institucionalmente, apresenta-se como uma voz crítica que orienta as ações, mas acabam por defender um sonho impossível de ser concretizado, diante do grau de submissão do país aos interesses anteriormente descritos. No momento em que os idealistas atribuem ao poder executivo federal uma roupagem nacional-desenvolvimentista, torna-se oportuno destacar o papel do governo: articulador para a manutenção da apropriação da renda petrolífera pelo capital financeiro nacional e internacional. Convém reafirmar que esse grupo analisa, equivocadamente, a conjuntura e desconsidera a atual função do país frente à distribuição mundial da produção e do consumo de mercadorias – um país dependente e periférico.

*Sandro Francisco Detoni é doutor em geografia física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Faculdade de Tecnologia de Barueri.


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