Margem equatorial – ser ou não ser?

Imagem: Jean Gc
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ROBERTO DE CAMPOS GIORDANO*

Margem Equatorial: defender o petróleo no subsolo sem entregar o Brasil à extrema-direita ecocida

1.

O excelente diálogo entre Luiz Marques e Michael Löwy, organizado pelo site A Terra é Redonda, trouxe à baila muitas questões relevantes – e urgentíssimas. Pessoalmente, concordo quase integralmente com suas opiniões. Com uma ressalva, cujo debate, creio, é fundamental neste momento: como o setor que poderíamos definir como “esquerda ecológica” deve abordar a questão da exploração de petróleo na margem equatorial (mais precisamente, o licenciamento para perfuração exploratória no bloco FZA-M-59 pela Petrobras).

Mais recentemente, Jean Marc von der Weid[i] lançou dramático repto pela não exploração daquelas reservas, cujos fundamentos endosso integralmente: o desastre planetário se aproxima rapidamente. Mas… qual a forma e a intensidade da postura crítica que nós, conscientes da situação, devemos adotar?

Antes de entrar nessa discussão, gostaria de expor meu lugar de fala: me considero socialista e com consciência ecológica. Aliás, estou próximo da visão de Kohei Saito,[ii] que levanta com propriedade um ponto sobre Karl Marx: este não teve apenas uma “intuição” sobre os efeitos deletérios do capitalismo ao planeta; ao contrário, tais efeitos eram consequência lógica da teoria que desenvolvia. Pois, evidentemente, se acumular é natureza intrínseca do capitalismo, em algum momento atingiríamos um limite dos recursos naturais.

Creio que Marx só não avançou mais nessa questão por conta de sua busca incansável pela demonstração científica desse fato. Para isso, focando no esgotamento dos solos, estudou profundamente química e o que seriam as atuais ciências agrárias, tentando fundamentar aquela conclusão racional. Infelizmente, como sabemos, as ciências do século XIX não poderiam dar conta dessa missão – como hoje podem e fazem (exceto para os ecossuicidas, negacionistas e fascistas).

A partir dessa perspectiva pessoal, tenho absoluta concordância com a urgência, existencial para a humanidade, em abandonar (para ontem) a petroeconomia, a matriz energética fóssil. E, para isso, concordo com a imperiosa necessidade de redução do consumo por quem pode fazê-lo, os extratos mais ricos.

A desaceleração do “desenvolvimento”, até atingirmos o decrecimento, em uma nova sociedade plural, no arcabouço de um socialismo necessariamente democrático, tudo isso é a minha referência de luta político-social. E concordo que a exploração de petróleo deve ser interrompida se quisermos minimizar o desastre climático dentro de limites suportáveis.

2.

Isso posto, volto à exploração da margem equatorial pela Petrobras. E coloco desde já o que considero o núcleo do problema: qual deve ser nossa proposta sobre essa questão, de forma a minimizar os impactos deletérios ao ecossistema global causados pelo capitalismo?

Nesse ponto, abro uma divergência com relação à tática política adotada por alguns setores da esquerda que têm preocupações ecológicas, como é o caso dos autores citados. Já tratei dessa questão, embora de forma tangencial, por ocasião da primeira negativa de licenciamento de poço exploratório pelo Ibama, em 2023.[iii] Gostaria de aprofundar aqui esse ponto.

Afirma-se que Lula ainda tem como referência propostas dos progressistas do século XX – vamos chamá-los de desenvolvimentistas prometéicos (“a natureza a serviço do homem”). Por exemplo, nosso presidente frequentemente menciona a importância do aumento da produção de automóveis (claro, de preferência elétricos) para o desenvolvimento do Brasil.

Podemos criticar essa postura a partir de várias perspectivas. Por um lado, o automóvel é parte importante para a sustentação da ideologia das classes dominantes, pelo seu papel como fetiche individualista, refletido na ambição popular pelo “carrinho na garagem”. Nós, conscientes do impacto ambiental da produção e uso do automóvel (inclusive o elétrico, com sua bateria que nada tem de “sustentável” ou “limpa”), temos que nos contrapor, colocando como alternativas o transporte público de qualidade, bicicletas e o andar a pé.

Entretanto, é importante lembrar que as posições de Lula evoluíram muito desde a década de 1970. E que hoje o Brasil é um dos pilares internacionais, no mínimo pelo reconhecimento da crise climática gerada por emissões provenientes do petróleo. E pela transição para uma economia que pelo menos minimize a possibilidade de um ecocídio. Evidentemente, devemos fazer críticas, mesmo ácidas, à desarticulação do governo, à falta de planos consistentes para a transição energética, etc, como bem faz Jean Marc von der Weid.

Mas, se quisermos realmente avançar com nossas propostas, não podemos perder de vista a dimensão política, a conjuntura terrível que vivemos em nível mundial. A luta contra o fascismo, que foi ainda mais alavancado pela vitória de Donald Trump, é, também, uma luta contra o ecossuicídio. E a importância do Brasil na resistência democrática na América Latina e no mundo é imensurável.

Se perdermos em 2026, talvez não seja exagero dizer que o mergulho no precipício se tornará inevitável, com negacionistas governando um país-chave para mitigar a crise ambiental. A frente ampla foi a salvação da democracia brasileira – e da esperança de um planeta habitável. E ganhamos em 2022 com 50,9% dos votos, não vamos nos esquecer disso. Ademais, seria uma ingenuidade trágica achar que em 2026 haverá alternativa “mais avançada”.

Lula continua sendo a esperança de que o dique antifascista não desmorone, mergulhando o Brasil nas trevas e o planeta no desastre final, com todas boiadas passando aqui. Tornarmo-nos em uma esquerda sectária é tudo que devemos evitar nestes tempos trágicos.

3.

Ora, uma análise da conjuntura mais consistente mostra que abandonar a exploração da margem equatorial seria um desastre político para o governo, talvez insuperável. Isso é um fato, mesmo que não gostemos. Então, nessa lógica, temos que ter o máximo cuidado para não transformar nossa postura crítica em linha auxiliar da extrema direita ecocida em 2026.

Mas então devemos nos calar? Certamente não! Nossa militância, nossa práxis, é para transformar o mundo, voltando a Karl Marx. E nosso fazer político não pode prescindir de um horizonte: a transformação democrática radical da sociedade. Para que Pacha Mama não morra. Mas isso sem jogar o bebê fora junto com a água do banho. Para nós, manter a democracia é imprescindível.

Por isso, em primeiro lugar, é preciso ter consequência nas críticas. Podemos dar alguns exemplos.

O primeiro é quanto a um possível desastre ambiental decorrente da exploração na margem equatorial. Claro, toda atividade exploratória envolve risco, é questão probabilística. Mas qual o risco real aqui? A Petrobras hoje não é a BP no Golfo do México em 2010. Ao contrário, tem histórico de décadas de operação no pré-sal sem nenhum incidente grave.

E os protocolos de contenção e mitigação que vão ser agora testados (avaliação prévia operacional, APO, aprovada pelo IBAMA em 19/06/25[iv]), se passarem na avaliação técnica criteriosa que será feita, são mais um fator de redução desses riscos. Claro, aqui podemos dizer que risco zero só proibindo a perfuração, mas essa crítica tem que ser realista – riscos mínimos não são o mesmo que tragédia anunciada…

Um segundo exemplo é o argumento do declínio da demanda por petróleo a partir da próxima década. Aí surge uma confusão entre o que seria absolutamente necessário para minimizar os impactos da crise climática e o que de fato vai ocorrer. Não podemos confundir as duas coisas. Temos que conscientizar a população de que é preciso zerar a extração de óleo, mas isso é diferente de assumir como verdade uma projeção que tem níveis de incerteza absurdos. De fato, estimativas da Petrobras indicam que, sem a margem equatorial, logo importaríamos óleo. Mentiras? Não creio que tenhamos base científica para afirmar isso.

Bem, mas então que fazer? Silenciar? Claro que não.

Devemos ganhar corações e mentes. Missão difícil, mas não impossível. Precisamos aproveitar a liberdade que temos agora, sob um governo que preserva a democracia (ainda que formal, longe das periferias, etc), para trabalhar muito.

A articulação entre movimentos sociais como o MST, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, deve se somar à atuação nas cidades: comunidades, igrejas, associações de bairro, escolas, sindicatos. Uma boa nova, citada por Michael Löwy, é a adesão de sindicatos na França às nossas pautas. Poderíamos pensar, no Brasil, na criação de seções ou comitês ambientalistas em sindicatos, associações, etc, etc.

Desconheço se os trabalhadores da Petrobras já têm esse tipo de organização em seus sindicatos ou na FUP. Mas seria importante que os petroleiros atuassem fortemente para acelerar a transição da Petrobras, de uma empresa petrolífera para uma de energia sustentável. Temos que aproveitar todos espaços existentes, como por exemplo a COP 30, com a bandeira “petróleo zero”. Aqui concordo integralmente com Luiz Marques e Michael Löwy, provavelmente o único saldo concreto da COP 30 será a aceleração da articulação dos movimentos sociais. Nada a esperar no plano institucional.

A prática de articular movimentos tão distintos, de forma ampla e plural, certamente não é simples, mas talvez a resistência que hoje se constrói contra o PL da destruição (PL 2159/2021) nos ajude a abrir mais espaços a partir de experiências concretas.

Assim, talvez a postura mais coerente para nós seja dizer que somos pelo fim de toda extração de óleo, em todo o mundo. A margem equatorial deve ficar intocada, não pelos argumentos frágeis que foram criticados aqui. Mas porque o petróleo deve ficar no subsolo, se quisermos ter alguma esperança no futuro da humanidade. Agora, essa crítica não pode levar água ao moinho da extrema direita. E se perdermos essa batalha do pré-sal, como parece provável, não significa que Lula seja um traidor ecocida.

Enfim, a questão da exploração da margem equatorial não deveria ser reduzida a um ser ou não ser defensor(a) da mãe natureza. Ao contrário, podemos usá-la para alavancar a consciência ecossocial de nosso povo. Com perdão do lugar comum aristotélico, neste caso a virtude está no meio.

*Roberto de Campos Giordano é professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Química da UFSCar.

Notas


[i] J. M. Weid, aterraeredonda.com.br/a-producao-de-petroleo-no-brasil-parte-2/

[ii] K. Saito, O ecossocialismo de Karl Marx, ed. Boitempo, 2021.

[iii] R. C. Giordano, outraspalavras.net/terraeantropoceno/petroleo-na-amazonia-uma-pororoca-de-visoes

[iv] agencia.petrobras.com.br/w/ibama-aprova-plano-da-petrobras-e-autoriza-realizacao-de-simulado-em-aguas-profundas-do-amapa


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES