Marianne Weber

Imagem: Tiarra Sorte
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Por MAURÍCIO BRUGNARO JÚNIOR*

Marianne Weber uniu, em sua vida, a participação política, a pesquisa acadêmica e as perspectivas de modificação social

1.

É de conhecimento compartilhado que um clássico consiste numa base comum que estabelece critérios de seu campo, os quais evitam demonstração prévia do processo de criação, pois fornece uma base para o relacionamento cultural que integram e tornam coeso um conhecimento prévio e comum.

Isto é, um ponto de referência que reduz a complexidade e proporciona caminhos comunicacionais. Ou seja, a essencialidade de clássicos se constitui na construção de um conhecimento cumulativo que é passível de ser revisitado devido a uma suposta qualidade interna a si e que permanece ao longo da história oferecendo uma “linguagem comum”.

Por outro lado, é também conhecido que a formação de um clássico ocorre por vias de disputas, seletividade e arbitrariedade entre a comunidade científica legítima e os conflitos sociais ao redor,[i] vide a formação de um primeiro cânone sociológico a partir de Talcott Parsons e a separação entre o teórico e o prático, dado os avanços de métodos estatísticos nas ciências sociais; e o segundo cânone com a supressão de alguns autores e inserção de outros.

Assim, os clássicos “deixam de ser entendidos apenas com base nas características intrínsecas aos textos e passam a ser analisados a partir de uma visão processual, histórica e sociológica de como se constituiu um cânone” (TOSTE; SORJ, 2021, p. 11). Ao contrário do que se propaga no “universo acadêmico clássico”, muitas autoras foram intelectuais influentes com reflexões originais e sistemáticas sobre os mais diversos temas e, concomitantemente, marcadas pela perspectiva de gênero, pois “não podemos pretender compreender o mundo social sem prestar atenção ao gênero”, da mesma forma como “não podemos compreender gênero sem entender o mundo social” (ibid., p. 17).

É nesse momento que questões como sexualidade, gênero, relações familiares, relações raciais, entre outras, foram colocadas à margem do cientificismo vigente. Assim, fez-se prevalecer a masculinidade eurocêntrica do domínio epistemológico, realizando a divisão entre o que seria e o que não seria sociologia.[ii] Logo, nessa suposta neutralidade científica, também se torna evidente a divisão entre uma ciência puramente analítica e um modo normativo de pesquisa, isto é, que não só identifica os conflitos sociais, mas busca transformá-los. Embora discorra sobre o campo sociológico, obviamente a mesma prática e consequências similares podem ser encontrados em outros campos do conhecimento.

2.

É nessa chave que pretende-se compreender, brevemente, a trajetória de Marianne Weber que uniu, em sua vida, a participação política, a pesquisa acadêmica e as perspectivas de modificação social, na qual, um esquecimento constrangedor “pairou longamente sobre a obra intelectual própria e a intensa atuação política dessa autora, cuja importância multifacética tanto para os movimentos sociais, para a sociologia jurídica como para a metodologia foi e é considerável, mesmo que sua atualidade só gradativamente venha sendo resgatada” (SOBOTTKA; SOUZA, 2021, p. 12).

No final do século XIX, já casada com Max Weber, “sua postura era não convencional e apontava para interesses culturais e sociais próprios”, enfatizando leituras, “ao invés de corresponder às expectativas de um papel social e, fundamentalmente, aprender a cozinhar” (ALDENHOFF-HÜBINGER, 2021, p. 60, 61, respectivamente), denunciando posteriormente, em Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico [Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung]([1907] 2021), o patriarcalismo sob o qual foi submetida à lógica da família e do contrato matrimonial. É na compreensão enquanto problema jurídico-histórico, jurídico-sociológico e perspectiva feminina que desenvolve seu trabalho.

Sua escrita é marcada por um ponto de vista ideal[iii] e normativo, porém tal idealismo não ocorre abstratamente, mas nas incongruências históricas entre as formas de dominação das sociedades tradicionais e suas continuidades nas sociedades tipicamente modernas através do direito, da dominação e da racionalização do mundo social, observado a partir das relações de gênero e, portanto, o significado prático dessas normas para a situação das mulheres.

Tomando por objeto de estudo o casamento civil e o direito de família, o código civil não deveria ser mantido a serviço da dominação patriarcal, mas deveria ser colocado em função da coexistência das liberdades.

Seu principal aspecto era composto por teoria e prática numa unidade, se conectando diretamente pela ampliação “de liberdade política e social e ao desenvolvimento em direção a uma personalidade humana interiormente livre” (WEBER apud ALDENHOFF-HÜBINGER, 2021, p. 64), na qual apenas ao sexo masculino estaria disponível tal possibilidade. A situação contextual de gênero de sua época era de que, até o momento, o ideal de “liberdade política e social e de desenvolvimento em direção a uma personalidade humana interiormente livre só se aplicou ao homem e, no seio do patriarcalismo, só se mostrou acessível para ele” (WEBER, 2021, p. 192).

E, contrariamente, o “desenvolvimento da personalidade da mulher permaneceu vinculado à tradição e à vontade masculina” (idem). Porém, se há validade racional das normas éticas, estas não devem se limitar a um gênero. Se há permanência do patriarcado numa ordem moderna, “a mulher pertence à casa no sentido de que o desenvolvimento pessoal da esposa encontra seus limites […] onde a ‘autoridade’ e as reivindicações puramente subjetivas do senhorio se vejam ameaçadas e, portanto, demandem a manifestação de seu consentimento” (ibid., p. 187). Dessa forma, nota-se, desde já, o contraste contraditório entre o ordenamento jurídico e a dominação de gênero patriarcal numa sociedade capitalista moderna.

Do ponto de vista do poder historicamente constituído, na busca pela continuidade da dominação masculina e patriarcal, o protesto pessoal do marido contra a esposa afeta-a numa suposta negligência quanto aos cuidados da casa e dos filhos, inoculando insegurança quanto ao papel social sobre a legitimidade de seus esforços, afastando-a do cultivo de seus interesses e ideais.

Uma vez que a vida conjugal, se simplificada por um princípio de autoridade, é, concomitantemente, esvaziada e embrutecida, alcançando também a subordinação das mulheres em questões relativas à vida em comum. Assim, quem quer que reconheça os postulados do idealismo ético, nas supostas diferenças dos sexos, não se pode “exigir dependência e subordinação aparente de um, e domínio irrestrito para o outro” (ibid., p. 184). Aqui, percebe-se tanto o domínio no âmbito privado quanto no social.

Atuando criticamente quanto aos costumes e contrariando correntes políticas radicais de sua época, Marianne Weber postula três tópicos sobre o desenvolvimento jurídico em relação à dominação sexual da mulher, em relação à propriedade privada e no interesse do homem em garantir herdeiros legítimos: (i) a escravidão sexual das mulheres não se restringe ao surgimento da propriedade privada, pois também existia em formas econômicas “comunistas”.

(ii) O casamento monogâmico, enquanto instituição legal, é prevalecentemente posterior ao desenvolvimento da propriedade privada; (iii) o casamento legítimo, civil – seja monogâmico ou poligâmico –, somente poderia surgir com a redução das antigas comunidades familiares, fazendo prevalecer até hoje em dia quem deveria herdar a propriedade. Assim, ao homem é instituído o poder de tornar legítimo como herdeiro.

Hoje, o Estado garante entre os ricos propriedade para a geração mais jovem e entre os não ricos, a participação na aquisição por parte da geração mais velha. Ele deve, portanto, determinar claramente quem são os pais de uma criança e a que eles estão legalmente obrigados (ibid., p. 201). Assim, a emancipação do todo social não está unicamente ligada à questão da propriedade privada, mas, essencialmente, à reprodução das formas de dominação patriarcal através do ordenamento jurídico do casamento e da dominação sexual da mulher.

Em todo caso, normativamente, somente com a eliminação da obrigação dos pais de educar e da obrigação mútua de alimentos – a questão do cuidado – é que se pode, em princípio, derrubar as aspas que determinam o “casamento legítimo” enquanto instituição legal. A mera “socialização” dos meios de produção não é de forma alguma suficiente para isso. Somente se não houvesse mais nenhum direito paterno ou filial a ser garantido, nada objetivamente impediria os sexos de se separarem e se acasalarem novamente segundo inclinações particulares tal qual os bichos e grupamentos mais primitivos. Em uma tal sociedade, de indivíduos “economicamente emancipados”, o casamento enquanto instituição jurídica e econômica perderia sua base (ibid., p. 204).

3.

No entanto, segundo Marianne Weber, mesmo numa visão societal e comunitária para a transformação, não são os ideais do “individualismo ético” – característicos do desenvolvimento sócio-histórico ao redor do mundo, uma vez que o patriarcalismo viabilizou o desprendimento da família individual em relação ao clã, tornando possível também que o ser humano aprendesse a se sentir portador da própria vontade com propósitos particulares como indivíduo, porém sendo apresentado, acessível e perpetuado apenas ao homem –, que estão fora de curso, mas “sim os meios para lutar por esses ideais que mudaram em parte” (ibid., p. 192).

Segundo a autora, o patriarcalismo cumpriu sua missão inovadora, porém, no decorrer dos séculos e das formas de dominação, se transformou em obstáculo para a realização de uma missão mais ampla e abrangente: a partir das mudanças no ordenamento jurídico, garantir a dignidade humana também para as mulheres, o que significa “a garantia da ‘liberdade para o desempenho de suas funções’” (idem).

Como enfatizado em diversos momentos de sua obra, uma sociedade onde o cuidado [care]da pessoa impõe-se tão somente à mãe da criança, ou seja, ordena as relações de parentesco estritamente segundo o direito materno [Mutterrecht], que “atribui a ela de sua parte o cuidado com os filhos e ao mesmo tempo também a responsabilidade pelos mais velhos e dependentes de toda ordem pode pelo contrário e em princípio adicionalmente abster-se de uma hierarquia entre os tipos de relação sexual e de colocar o casamento no topo dessa hierarquia” (ibid., pp. 203-204), não pode se transformar.

Assim, neste momento no qual as mulheres reconheceram seu direito à personalidade e seu dever de agir de acordo com sua própria consciência – note-se o movimento emancipador – em nome de seu próprio bem, de valores culturais objetivos e do rompimento das correntes históricas dos ideais da geração futura do tempo de seus antepassados (ibid., pp. 192-193) é que, em termos kantianos, alcançar-se-ia a maioridade social, ética, jurídica, etc.

Somente assim, com a supressão de tal modelo sócio-reprodutivo e com equidade é que haverá a formação de personalidade humana interiormente livre, isto é, nas relações sociais que libertem do cuidado familiar e societal, que seja compartilhado por instituições devidamente destinadas a esses fins e não colocadas sobre a figura da mulher.

Para a autora, a ética assume um papel fundamental na ordem do dia e também na possibilidade de transformação social, uma vez que, por sua visão de uma maioridade sócio-política, “um círculo de pessoas eticamente disciplinadas em alto nível, infinitamente refinadas espiritualmente” poderia haver a transformação da união sexual ao conceber e concretizar a normativa jurídica superando o patriarcalismo, uma vez que esse não conseguiu se desenvolver e dar continuidade a um projeto emancipador.

Nesta perspectiva, a situação atual de sua época e com “o valor espiritual e moral interior das relações sexuais na média foi formado a partir da omissão completa em relação a concatenação econômica das gerações, nossos olhos se tornaram incapazes de ver através da densa névoa que esconde as configurações possíveis de uma tal sociedade futura” (ibid., p. 205).

Revela-se, portanto, como observar os problemas sociais de uma época baseada em uma normalidade confortável segundo a prevalência do papel masculino na dominação também jurídica, faz com que se tornem opacos os horizontes de transformações fundamentadas na realidade social. Somente com a superação de um ordenamento jurídico reprodutivo que, descaradamente, torna as relações sociais assimétricas dentro das casas como também nas instituições, configurando uma dominação que não se justifica na ordem contemporânea que é possível alcançar tal objetivo.

Em suma, identifica-se o posicionamento socialmente ativo de Marianne Weber através de suas pesquisas e engajamento político, buscando uma normatividade transformadora das assimetrias de sua época, também identificando e criticando os movimentos sociais de luta que pecam em alguns meios de reivindicação. Logo, ela utiliza da pesquisa e da participação científica como o meio pelo qual explorar e divulgar conhecimentos críticos numa sociedade que há pelo que lutar e transformar.

*Maurício Brugnaro Júnior é mestrando em história na Unicamp.

Referências


ALDENHOFF-HÜBINGER, Rita. “Comentários sobre Marianne Weber: vida, obra, política, impacto”. In: ZANON, Breilla; SOBOTTKA, Emil Albert; CUNHA, Gustavo; FLEURY, Lorena; CHAGURI, Mariana (orgs.). A atualidade de Max Weber e a presença de Marianne Weber. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021.

SOBOTTKA, Emil; SOUZA, Luiz Gustavo. “Max e Marianne Weber: atualidade, importância, esquecimento”. In: ZANON, Breilla; SOBOTTKA, Emil Albert; CUNHA, Gustavo; FLEURY, Lorena; CHAGURI, Mariana (orgs.). A atualidade de Max Weber e a presença de Marianne Weber. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021.

TOSTE, Verônica; SORJ, Bila. Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século XIX. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.

WEBER, Marianne. “Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico – excertos”. In: ZANON, Breilla; SOBOTTKA, Emil Albert; CUNHA, Gustavo; FLEURY, Lorena; CHAGURI, Mariana (orgs.). A atualidade de Max Weber e a presença de Marianne Weber. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021.

Notas


[i] Tanto que a inserção de Karl Marx no cânone sociológico ocorreu após a expansão e divulgação dos subalternes studies, a partir da década de 1970.

[ii] Nesse momento, a pesquisa e o trabalho desenvolvido por mulheres no âmbito social foram restringidas aos cuidados e assistencialismo, enquanto uma “sociologia legítima” era praticada nas universidades, ambiente dominado por homens. Na divisão entre empiria e teoria, é alcançado o embate entre cientificismo e implicação de transformação social, fazendo com que o engajamento das primeiras sociólogas fosse substituído e, gradativamente, apagado dos anais da sociologia.

[iii] Nota-se a semelhança entre o ideal transformador — e mesmo emancipador —, com a tese kantiana de maioridade intelectual. Como no seguinte trecho: “mas quando o tempo e o destino permitem o amadurecimento da mulher, e ela não mais — como infelizmente tantos outros — quer permanecer na menoridade, um dia, mesmo que o sentimento de amor para com o marido permaneça inalterado, sua individualidade dormente surge como ânsia por vontade e julgamento e se impõe para ela com a força de um mandamento moral” (WEBER, 2021, p. 188).


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