Marx, Nietzsche e Freud na Escola de Frankfurt

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por GILLIAN ROSE*

O uso que os teóricos da Escola de Frankfurt fizeram de três pensadores: Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud

Karl Marx

Embora o conceito de diferentes formas de cultura se sucedendo na história seja central para G.W.F. Hegel, seu lugar é tomado no pensamento de Karl Marx por diferentes formas sociais, determinadas pelos modos sucessivos de produção. Marx não tinha uma teoria da cultura como tal. Como disse, Hegel tinha, e ela era a base de sua filosofia da história. No final do século XIX, a perspectiva de Marx se tornou rígida em distinções estáticas, mecanicistas e deterministas entre a base econômica e a superestrutura ideológica, legal e política.

A Escola de Frankfurt retornou a uma distinção dinâmica entre processos sociais e formas sociais resultantes, tomando como modelo de cultura e ideologia não uma distinção entre base e superestrutura, mas a teoria de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, e essa teoria recebeu sua declaração clássica no volume 1, capítulo 1 de O capital, e ao longo dos Grundrisse.

Agora vou tentar esboçar de forma grosseira o que é a teoria de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Se você não sabe, então recomendo que dê uma olhada naquelas poucas páginas de O capital, volume 1. As mercadorias, de acordo com Marx, são produzidas em uma sociedade na qual a força de trabalho é vendida por um salário, e a mais-valia é realizada quando o produto desse trabalho é vendido, não pelo trabalhador, mas pelo empreendedor ou empregador por um lucro.

Isso contrasta com uma sociedade pré-capitalista ou uma sociedade não capitalista na qual o produtor direto ou trabalhador consumiria ou venderia o produto de seu trabalho ele mesmo. Não estaria vendendo sua força de trabalho e realizaria diretamente o valor incorporado no produto. Assim, uma mercadoria, isto é, um produto produzido sob condições capitalistas, consiste em dois componentes: seu valor de uso e seu valor de troca.

Seu valor de uso, que Marx também chama de valor em uso, significa suas qualidades específicas. Por exemplo, o sabor de uma maçã, ou o calor do casaco que você veste. O valor de troca, por outro lado, é o que uma mercadoria é equivalente em razão de outra mercadoria, geralmente expressa em dinheiro. Então, uma é uma razão, e a outra são as qualidades concretas de um produto.

Um resultado desse divórcio entre uso e troca é que o valor de troca parece ser uma característica do produto em si – isto é, seu preço. As pessoas pensam que o valor é inerente ao produto em si, e não entendem que, na verdade, ele é a expressão de relações sociais e atividades específicas entre as pessoas.

Karl Marx diz: “O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação dos indivíduos na produção, aqui aparecem na mercadoria como algo estranho e objetivo.” “Uma relação social definida entre homens assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.” Essa é a frase crucial. É isso que Marx chama de fetichismo – isto é, quando você trata algo como uma coisa em si, quando na verdade é a expressão de relações sociais determinadas entre pessoas.

A Escola de Frankfurt acreditava que essa ideia de que as relações sociais reais entre as pessoas são transformadas e mal compreendidas como relações entre coisas fornecia um modelo para o relacionamento entre processos sociais, instituições sociais e consciência.

Este modelo, diferentemente da distinção entre base econômica e superestrutura ideológica, não reduziria formações institucionais e ideológicas a meros epifenômenos ou a simples reflexões de uma base. Isso forneceria uma explicação sociológica para a determinação social e a autonomia relativa de outras formas sociais, como a cultura. Ele estabeleceu uma maneira de dizer que algo é socialmente determinado e, ainda assim, parcialmente autônomo.

Marx não está dizendo, por exemplo, que as ilusões que surgem do fetichismo da mercadoria são erradas; ele está dizendo que essas ilusões são necessárias e reais, mas, no entanto, são ilusões. É isso que a Escola de Frankfurt, de Georg Lukács em diante, chamou de “reificação” – um termo que o próprio Marx não usou, embora por várias razões tenha se tornado associado ao próprio Marx.

Na verdade, sua adoção dessa noção de reificação deu aos diferentes membros da Escola de Frankfurt enorme liberdade para interpretar Marx de forma diferente. Até mesmo a teoria do fetichismo da mercadoria veio a apoiar filosofias da história bem diferentes e posições políticas e teorias da cultura bem diferentes.

Friedrich Nietzsche

É um lugar-comum que as ideias de Nietzsche foram incansavelmente utilizadas por teóricos sociais e políticos de direita do século XX. Por exemplo, você pode ter ouvido falar de Oswald Spengler ou Ernst Jünger. Mas não é tão amplamente conhecido que Nietzsche teve uma enorme influência sobre os teóricos de esquerda do século XX.

Entre aqueles com os quais analisamos particularmente, isso é especialmente verdadeiro com Bloch, Horkheimer, Benjamin e Adorno. Por que eles estavam interessados em Friedrich Nietzsche? Por uma série de razões, as quais listarei brevemente:

Friedrich Nietzsche rejeitou uma filosofia da história baseada na ideia hegeliana de um telos ou objetivo final na história, de uma sociedade ideal no futuro, ou da reconciliação de todas as contradições. Nietzsche rejeitou essa posição. Ele aplicou a noção de contradição à filosofia otimista da história em si, por exemplo, que o processo de mudança histórica pode se tornar o oposto de todos os ideais. Isso é o que Horkheimer e Adorno mais tarde chamariam de “a dialética do Iluminismo”.

Eles estavam interessados em Friedrich Nietzsche por sua crítica ao conceito filosófico tradicional do sujeito. Este conceito filosófico tradicional do sujeito, que também foi adotado por certas formas de marxismo, por exemplo, a interpretação existencialista do marxismo, é que a unidade da consciência é a base de toda a realidade.

A Escola de Frankfurt, ao contrário, acreditava que a realidade social não poderia ser reduzida à soma de fatos da consciência. Ela usou este ponto para enfatizar que a realidade social não pode ser reduzida à consciência das pessoas sobre ela, mas também que a análise da determinação social de formas de subjetividade é essencial: que a subjetividade é uma categoria social.

Uma terceira razão pela qual eles estavam interessados em Nietzsche é que o pensamento de Friedrich Nietzsche é baseado na ideia de “vontade de poder”. A Escola de Frankfurt também estava interessada em analisar novas formas de dominação política e cultural anônima e universal que afetam a todos igualmente e que impedem a formação da consciência de classe proletária libertadora clássica.

Quarto, eles estavam interessados em Friedrich Nietzsche porque Nietzsche lançou um ataque à cultura burguesa de sua época. Como Marx, ele se referiu ao “filisteísmo burguês”. A Escola de Frankfurt também queria demonstrar o ressurgimento de contradições sociais tanto na chamada cultura popular quanto na pretensa cultura séria. Ela era igualmente crítica tanto da cultura erudita quanto da popular, se preferir. Na verdade, ela rejeitou essa distinção.

A razão final pela qual a Escola de Frankfurt estava interessada em Friedrich Nietzsche é que Nietzsche produziu uma análise do nascimento da tragédia na sociedade grega, que era radicalmente sociológica, e que, diferentemente da tradição anterior no pensamento alemão, não idealizava a sociedade grega. Isso forneceu um modelo para as análises da Escola de Frankfurt de gêneros literários na sociedade capitalista avançada. A Escola de Frankfurt colocou sua ênfase na forma literária, não no conteúdo.

Sigmund Freud

Se um conceito tradicional do sujeito era inaceitável, o que tomaria seu lugar? A Escola de Frankfurt usou a teoria freudiana para explicitar a formação social da subjetividade e suas contradições na sociedade capitalista avançada. Ela pensava que a teoria psicanalítica forneceria a conexão entre processos econômicos e políticos e as formas culturais resultantes.

Mas não se voltou para os trabalhos sociológicos posteriores de Freud, mais óbvios e diretos, como O mal-estar na civilização. Baseou sua interpretação em uma análise dos conceitos psicanalíticos mais centrais de Freud. Foi particularmente atraída pela posição de Freud de que a individualidade era uma formação, uma conquista, não algo absoluto ou dado. Desejava desenvolver uma teoria da perda de autonomia ou declínio do indivíduo na sociedade capitalista avançada que não idealizasse o que havia sido considerado autonomia ou individualidade em primeiro lugar.

Ela utilizou a teoria freudiana em muitos de seus principais estudos: sobre a aceitação e reprodução da autoridade na sociedade capitalista tardia; em seu exame e tentativas de explicar o sucesso do fascismo; em seu desenvolvimento de um conceito de indústria cultural e sua influência na consciência e inconsciência das pessoas; e, finalmente, na investigação geral sobre a possibilidade ou impossibilidade da experiência cultural e estética na sociedade capitalista tardia.

*Gillian Rose (1947–1995) foi uma filósofa e socióloga britânica. Autora, entre outros livros, de The melancholy science: an introduction to the thought of Theodor Adorno (Verso). [https://amzn.to/4dBfa8t]

Tradução: Pedro Silva para a revista Jacobin Brasil.


Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES