Por ARTHUR MOURA*
O paradoxo do funk ostentação – entre o Estado penal e a fetichização da miséria
A nova cena do controle social
A prisão de MC Poze do Rodo, além de um evento policial e midiático, é um sintoma agudo da lógica de funcionamento do Estado Penal brasileiro e das formas contemporâneas de controle social aplicadas às periferias urbanas.
O caso, como todo espetáculo de repressão seletiva, revela os limites estruturais da democracia brasileira e a lógica paradoxal do funk ostentação como fenômeno cultural: um produto estético e simbólico que, ao mesmo tempo que aparenta subverter, reproduz os códigos fundamentais da dominação capitalista.
O presente ensaio não busca defender MC Poze enquanto indivíduo, tampouco reduzir o caso a uma caricatura moralista de certo progressismo inócuo. A análise aqui proposta é estrutural, materialista e crítica. Nosso objeto não é a biografia de MC Poze, mas o que ele representa dentro da engrenagem social, econômica e simbólica que conecta Estado, mercado, cultura de massa e controle penal.
O Estado penal e a indústria da punição
Loïc Wacquant, em sua obra As prisões da miséria, descreve o avanço global de um modelo de Estado penal voltado para a gestão repressiva da pobreza urbana. No Brasil, a seletividade racial e territorial da ação policial cumpre esse papel com ainda maior virulência. A prisão de MC Poze, um jovem negro de origem periférica que acumulou fortuna, visibilidade e poder simbólico, é a tradução concreta daquilo que Loïc Wacquant denomina como “reconfiguração punitiva do Estado”.
Essa repressão não é fruto de despreparo policial. Ela é estratégica, orientada por interesses econômicos, políticos e midiáticos. O corpo de Poze torna-se o palco para a reafirmação das fronteiras de classe e raça. Sua prisão é pedagógica: ensina à juventude periférica que o sucesso fora das vias autorizadas será, mais cedo ou mais tarde, punido ou regulado.
O espetáculo da punição
Como apontou Guy Debord, vivemos sob a lógica do espetáculo, em que os conflitos sociais não aparecem como realidade histórica, mas como imagens manipuladas. A prisão de MC Poze não foge a esse roteiro. As imagens da coletiva de imprensa, os depoimentos emocionados de delegados, as manchetes alarmistas e o debate nas redes sociais transformaram a prisão em um grande reality show punitivo.
Não se trata apenas de aplicar a lei. Trata-se de vender o acontecimento como produto midiático. O espetáculo da punição cumpre duas funções complementares: de um lado, reforçar a sensação de segurança da classe média, ávida por sangue periférico televisado; de outro, gerar engajamento digital, visualizações, monetização de conteúdo e lucros para as plataformas.
O paradoxo é que MC Poze, enquanto agente cultural, também é um produtor de espetáculo. A fronteira entre o que o Estado faz e o que o próprio artista fomenta se dissolve no ciclo de retroalimentação do mercado de atenção.
O funk ostentação
O funk ostentação nasce como uma resposta estética à miséria material, mas sua própria existência é marcada por um paradoxo central: ao denunciar a pobreza através da exaltação da riqueza, reforça a ideologia da acumulação individual como via de ascensão.
MC Poze do Rodo representa essa contradição em seu estado mais cru. Suas letras falam de sofrimento, mas também glorificam o consumo de luxo, o acesso a bens de prestígio e o gozo individualista que são os pilares do ethos neoliberal.
Theodor Adorno e Max Horkheimer já nos alertavam, em Dialética do esclarecimento, para a capacidade da indústria cultural de transformar em mercadoria até mesmo a crítica ao sistema. O funk ostentação não é exceção. Ele é produto acabado da reificação estética da desigualdade.
O sucesso como armadilha
O consumo de MC Poze não é apenas econômico, é também simbólico. Sua prisão se transforma imediatamente em narrativa de superação futura, alimentando o ciclo da sua própria mitificação. O público, alienado pelos códigos do espetáculo, consome a prisão com o mesmo apetite com que consome os clipes de ostentação.
O que temos aqui é o que Pierre Bourdieu chamaria de “conversão de capital simbólico em capital econômico”. MC Poze acumula engajamento, cliques e conversas públicas enquanto permanece na posição ambígua de vítima e estrela.
Por isso, a prisão de MC Poze não significa seu cancelamento. Ao contrário: é parte funcional do seu próprio processo de valorização enquanto mercadoria simbólica.
A farsa da cidadania penal
Enquanto a direita festeja a prisão e a mídia comercializa a tragédia, parte da esquerda institucional se contenta com discursos protocolarmente humanistas: “liberdade para MC Poze”, “fim da seletividade penal”, “respeito ao devido processo”.
Essas posições, embora necessárias em um nível imediato de denúncia, são estruturalmente insuficientes. Como já critiquei em outros trabalhos, a esquerda institucional brasileira renunciou há muito a qualquer horizonte de transformação radical. Sua função atual é gerir o mal-estar, propor reformas inócuas e canalizar a revolta social para os ritos burocráticos da democracia representativa.
Ao tratar o caso MC Poze apenas como mais um episódio de “injustiça penal”, esses setores ocultam as determinações de fundo: a propriedade privada, o racismo estrutural, a divisão de classes e a função histórica da polícia como garantidora da ordem burguesa.
A juventude que consome MC Poze aprende uma lição dolorosa: ou você vira mercadoria ou vira cadáver. O funil é estreito. De um lado, o sucesso como fetiche inalcançável; de outro, a repressão penal como castigo.
Essa é a pedagogia da precariedade, que forma sujeitos dóceis, ocupados com a busca individual por ascensão e permanentemente aterrorizados pela punição exemplar.
Aqui reside o verdadeiro paradoxo: o funk ostentação funciona como válvula de escape da revolta de classe, enquanto reforça os códigos de submissão ao capital.
As condições de possibilidade de uma superação
O caso MC Poze precisa ser lido como mais uma prova histórica da falência do modelo de integração pelo consumo. A juventude periférica precisa construir um novo horizonte político que rompa com a lógica da ascensão individual, com a ilusão da cidadania penal e com a mitologia da meritocracia musical.
Não se trata de criminalizar MC Poze enquanto sujeito, mas de compreender que a libertação da juventude favelada não passará nem pela justiça burguesa, nem pela ostentação, nem pelas plataformas digitais.
A tarefa histórica é outra: organizar, formar, construir uma consciência de classe real, que seja capaz de recusar tanto o espetáculo da repressão quanto o espetáculo da ostentação.
Enquanto o capital seguir sendo a gramática da vida, novas prisões de ídolos populares se sucederão. E o público continuará entre o aplauso e a likeação, reproduzindo sua própria alienação.
Cabe a nós romper esse ciclo.
*Arthur Moura é doutorando em História Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
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