Memorial poético dos anos de chumbo

Merline Tekhamadé, Arte da caça, 2016
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Por MARCELO FERRAZ, NELSON MARTINELLI FILHO & WILBERTH SALGUEIRO

Trecho selecionado pelos organizadores da “Apresentação” do livro recém-publicado

Poesia para derreter o chumbo

Entre 1964 e 1985 o Brasil viveu sob um regime militar marcado pela brutal repressão aos seus opositores, com supressão de garantias fundamentais e sufocamento da vida pública no país. A ditadura adotou, como é tônica em governos autoritários, diversas estratégias de controle político e social que resultaram em graves violações aos direitos humanos, incluindo a prática disseminada da censura, as prisões arbitrárias, a tortura, os “desaparecimentos” e assassinatos. A truculência do regime buscou calar vozes críticas ao modelo econômico de progresso a todo custo, responsável por uma dramática ampliação das desigualdades sociais, e perseguiu quem clamava pela volta das liberdades democráticas.

Algumas décadas após o término oficial da ditadura, seus impactos ainda estão presentes em vários âmbitos da realidade brasileira. Com uma nitidez crescente e assustadora ao longo dos últimos anos, observamos as sombras dos anos de chumbo marcadas na ineficaz e violenta política de segurança pública, na pretensão de tutela da esfera militar sobre outras instituições e poderes, na normalização da tortura, na demonização e criminalização dos movimentos sociais e na lógica beligerante do debate político, quando visões divergentes são tomadas como ameaças a uma “ordem” nacional imperativa e inquestionável. É notório que a sociedade brasileira não conseguiu lidar adequadamente, seja em termos culturais, políticos, históricos e jurídicos, com essa “página infeliz de nossa história”, como alertou o poeta.

Sem dúvidas a produção artística foi um dos principais espaços simbólicos de elaboração desse passado, insistindo em questionar a perigosa comodidade do silêncio. A música popular, o teatro, a narrativa de ficção, a poesia, a literatura de testemunho produziram, e produzem, vigorosas leituras dos tempos de exceção, configurando um espaço de resistência, atravessado por melancolia, medo e luto, mas também assumindo a tarefa de gritar, denunciar e testemunhar a vida no país durante a ditadura.

Em sua diversidade de formas, estilos e manifestações, a arte brasileira, sem sacrifício de sua dimensão estética (e mais ainda por conta dela), constitui um inestimável patrimônio histórico e cultural que nos ajuda a entender e acionar as memórias dos anos de chumbo, lutando contra a denegação e o esquecimento, ação imprescindível para a consolidação de uma sociedade democrática na qual possamos vislumbrar um futuro mais digno, justo e igualitário.

Dentro desse contexto, a produção poética assume um papel relevante e ainda insuficientemente reconhecido enquanto elaboração simbólica do horror, isto é, como memória ativa do autoritarismo dos governos militares. Tal produção abarca um repertório heterogêneo, amplo e, em vários casos, de difícil acesso, dadas as limitações do mercado editorial à época, o desinteresse pela publicação de poesia e o impacto da censura, que, quando não proibia ou recolhia obras publicadas, despertava em autores e editores o medo de divulgar obras de contestação sob o risco de sofrerem futuros prejuízos e perseguição.

Compreendendo o repertório poético dos anos de chumbo como um patrimônio histórico, cultural e artístico inquietante, o projeto Memorial poético dos anos de chumbo (CNPq/FAPES) iniciou as suas atividades em janeiro de 2023, com o intuito de mapear, reunir, preservar, analisar, discutir e divulgar esse repertório poético, tanto pelo seu papel enquanto documento histórico eloquente, como pela dimensão expressiva que atualiza essa mensagem no presente, comunicando-se diretamente com os leitores atuais – em grande medida perplexos com a persistência do modus operandi da ditadura e os paralelos inevitáveis com a política vigente no país nos últimos anos.

A poesia constitui provavelmente o mais abundante e o mais vulnerável espaço simbólico de elaboração mnemônica da ditadura. Abundante porque – malgrado o lugar-comum que associa a criação poética à depuração paciente e à artesania verbal – a poesia se mostrou ao longo do tempo uma linguagem altamente eficaz para a expressão urgente de uma angústia, de uma ameaça, sendo, pela sua recorrente brevidade, a forma preferida (muitas vezes a única materialmente viável) para a elaboração literária em situações extremas, como a clandestinidade ou a prisão. Nesses casos, sem dúvida a necessidade de denúncia, o registro de uma existência ameaçada ou a perlaboração de um estado-limite abalam (ou impossibilitam) o esmero estético e esvaziam qualquer pretensão de criação de um objeto autônomo, o que não significa, todavia, que essa urgência não possa, em muitos casos, acionar formas estéticas surpreendentes, capazes de integrar artisticamente o trauma em sua composição.

A brevidade também ressoa na relativa facilidade de circulação desses poemas, especialmente em um contexto de censura contra as vozes insurgentes. Diversos poemas tiveram tiragens clandestinas bastante significativas e conseguiram romper a barreira de silêncio imposta pelo regime, tornando-se populares em grupos políticos de oposição – do movimento estudantil à luta armada –, participando da formação de uma identidade militante e enaltecendo o sentido da luta política. Da mesma forma, circularam em edições mimeografadas, muito associadas à chamada geração marginal, buscando, com despojamento e bom humor, frestas na sensação de sufocamento vigente no país.

Com uma equipe formada por mais de vinte pesquisadoras e pesquisadores de todas as regiões brasileiras, empreendemos um levantamento sistemático de poemas escritos entre 1964 e 1985 que abordam a ditadura militar brasileira. Num primeiro momento, nossa fonte prioritária de pesquisa foram os livros de poesia publicados no período, os quais foram mapeados e selecionados até chegarmos a um conjunto de 160 autores/as e quase 400 livros. Partimos então ao exame dessas obras, a fim de registrar poemas que evidenciassem diferentes aspectos da vida no país sob o regime militar.

Numa segunda etapa, ainda em curso, o levantamento passou a priorizar a pesquisa documental em arquivos, acervos privados e públicos, memoriais, espólios, revistas e jornais da época, visando incorporar poemas não publicados em livro, mas que circularam em outros formatos ou mesmo que não chegaram a vir a público. Como afirmado, parte considerável da memória poética da ditadura foi veiculada de maneira clandestina, em panfletos, publicações amadoras com baixíssimas tiragens, cópias mimeografadas distribuídas entre amigos ou, por receio ou pudor dos autores, permaneceram em manuscritos inéditos, às vezes registrados somente em cartas, diários e outros documentos pessoais.

O recorte, como se nota, levou em conta somente poemas escritos, isto é, não abarcou o vasto e importante cancioneiro do período, repertório que, a nosso ver, também constitui isso que denominamos memorial poético dos anos de chumbo, mas que demandaria da pesquisa outro tipo de levantamento documental, outros operadores críticos e outros suportes de divulgação das obras, o que julgamos inviável até o presente momento.

No momento em que chega ao público a antologia aqui apresentada, o repositório disponível na página do Memorial poético dos anos de chumbo (mpac.ufes.br) já catalogou e disponibilizou gratuitamente para leitura e pesquisa cerca de 1500 poemas sobre a ditadura. Além de transcrições confiáveis desses textos e diagramação bem cuidada, a página oferece informações bibliográficas e comentários que ajudam na compreensão do contexto aludido nos poemas. Há, ainda, ferramenta de busca por temas, formas, palavras ou dados específicos dos textos. E o trabalho de ampliação desse repositório seguirá em curso até, pelo menos, o fim de 2025, com a expectativa de ampliarmos consideravelmente esse arquivo digital.

O livro Memorial poético dos anos de chumbo: uma antologia é, dessa maneira, uma seleção feita a partir desse levantamento maior. O recorte estabelecido para a escolha dos poemas foi amadurecido pelas discussões coletivas realizadas pela equipe ao longo dos últimos dois anos. Nesse período de pesquisa, mesmo já trabalhando com o tema há algum tempo, pudemos encontrar novos nomes, obras surpreendentes e praticamente desconhecidas, que reforçam a relevância dessa coleta e de sua disponibilização para novas gerações de leitores.

Nesse sentido, essa antologia dá continuidade a inestimáveis esforços desenvolvidos por outros estudiosos e intérpretes da poesia dos anos de chumbo, que não poderíamos deixar de mencionar com admiração, como o trabalho pioneiro de Neila Tavares[i] ou as mais recentes coletâneas organizadas por Raul Ellwanger[ii] e Alberto Pucheu.[iii] Ampliando o escopo definido por esses precursores, ao reunir uma amostra mais ampla de poemas sobre a ditadura, acreditamos contribuir para a superação de uma lacuna importante em nosso campo poético, na medida em que o resultado final traz novas luzes para a compreensão da poesia dos anos 1960, 1970 e 1980 e instiga novos olhares, a partir do âmbito poético, para a história recente do país, bem como para o seu presente.

Se na criação do repositório o levantamento foi o mais amplo e exaustivo possível, na antologia a delimitação dos poemas selecionados acionou outros critérios para além dos já apresentados. A partir dos cerca de 1500 poemas sobre a ditadura disponíveis atualmente em nossa página – que, sabemos, por mais expressivo que seja o número, é também uma amostragem parcial, resultante de nossos interesses e limitações – selecionamos inicialmente cerca de 220 poemas para compor a antologia, dos quais 200 receberam autorização para constar no livro.

Neste processo, sem ignorar o peso das preferências pessoais dos organizadores, buscamos realizar uma curadoria exigente, garantindo uma coletânea com uma qualidade estética alta, de leitura instigante para diferentes públicos interessados na poesia e na história brasileira. Para além da importância documental e do trabalho de preservação e sistematização de um patrimônio cultural ameaçado – que inspiraram a criação do repositório –, na antologia nos preocupamos em fazer um bom livro de poesia, com textos de grande força expressiva, capazes de comover e despertar reflexão em seus possíveis leitores.

Mas obviamente o critério estético não foi exclusivo – e nem poderia ser, diante das particularidades do projeto. Não cogitamos em momento algum que a antologia fosse a seleção dos “melhores” poemas do Memorial poético dos anos de chumbo ou mesmo, de forma menos ambiciosa, que fosse a listagem dos poemas de que os organizadores mais gostam no repositório. Era importante que o livro fizesse justiça à pluralidade da poesia dos anos de chumbo, daí o cuidado em selecionarmos textos representativos das principais vertentes da época, tanto daquelas que ficariam consagradas pela historiografia literária posterior – constituindo um cânone (em constante construção) da poesia contemporânea brasileira – como de pessoas que não quiseram ou não puderam desenvolver uma trajetória literária posteriormente, mas que, em um momento extremo de suas vidas, utilizaram com agudeza a poesia como forma de expressão de uma angústia ou de uma revolta.

O levantamento mais amplo presente no repositório também confirmou traços de desigualdade social que se projetam no campo literário. O exame quantitativo dos textos encontrados durante a pesquisa revela, como era previsível, uma poesia majoritariamente escrita por homens brancos, publicada quase sempre por editoras ou veículos de imprensa situados no Rio de Janeiro e em São Paulo, raramente produzida por escritores nascidos nas regiões norte e centro-oeste.

Sem a pretensão de apagar artificialmente essas disparidades, que revelam muito sobre a literatura do período, julgamos importante atenuá-las na seleção final da antologia. De toda forma, os desequilíbrios continuam sendo flagrantes e foram ampliados na etapa de busca pelas autorizações para publicação dos poemas. À dificuldade de encontrar poemas representativos de grupos historicamente excluídos dos espaços de produção e legitimação do fazer literário seguiu-se a dificuldade de, após chegar aos seus textos e selecioná-los para compor a antologia, encontrarmos quem por eles respondesse, o que, em vários casos, foi um obstáculo que não conseguimos transpor.

Optamos por organizar a antologia em sete seções. A primeira, intitulada “I- As aparências revelam”, título extraído de um poema de Cacaso, reúne poemas de caráter irônico e/ou satírico, que apontam aspectos da vida sob um regime de exceção, zombam dos vícios do poder e flagram a hipocrisia do regime. O humor, nesta seção, é uma arma muito utilizada pelos poetas para abalar o ufanismo e as promessas de modernização conservadora alentadas pela ditadura.

Da mesma forma, o corpo e a sexualidade ganham destaque em poemas que escancaram o moralismo tacanho dos militares. Na sequência, em “II- Aqui a gente sai e não sabe se volta”, título que evoca um poema de Francisco Alvim, temos poemas voltados para a sensação de sufocamento. As marcas do panóptico, o medo como parceiro cotidiano, a liberdade restringida em prol de uma “segurança nacional” inflexível são elementos que ganham vida na elaboração artística da época e estão bem representados nesta que, talvez, seja a faceta mais amplamente difundida na poesia de então: o sufoco.

Em “III- Sobre a luta nossa visão se constrói”, que recupera um belo verso de Orides Fontela, trazemos poemas que abordam atos cívicos e anunciam a esperança de superação das mazelas do período. Essa luta política remete primeiramente às passeatas, muito importantes como expressão da indignação popular logo após o golpe e, anos depois, na luta pela anistia. Mas também é figurada pela luta armada, momento de radicalização que se afirmou como alternativa na medida em que a repressão sobre os atos de rua tornava-se cada vez mais sangrenta. Há nesses poemas tanto a exaltação da luta – que se abre a diversas estratégias de atuação, da mística-religiosa à contracultural – quanto as dúvidas, vacilações, frustrações e derrotas que marcam estes gestos de resistência.

As seções seguintes, intituladas “IV- O corpo entre as grades, a vida entre parêntesis” (adaptada de uma entrevista de Alex Polari) e “V- Venho falar pela boca dos meus mortos” (extraída de um célebre poema de Pedro Tierra), abordam, respectivamente, a denúncia das violações da dignidade humana perpetradas nos porões da ditadura, com torturas e sequestros ocupando função central nos aparatos repressivos, e dos assassinatos cometidos pelo regime, incluindo neste canto geracional a questão dos “desaparecidos” e comoventes homenagens a alguns dos muitos que morreram lutando pela liberdade do país.

Por sua vez, na seção “VI- Um poema, uma bandeira”, nomeada com versos de Ferreira Gullar, estão reunidos poemas de caráter metalinguístico, com grande ênfase no silenciamento imposto, seja pela censura seja pela perseguição política a escritores, bem como pela reflexão sobre os sentidos da poesia – seus limites e potencialidades, sua autonomia e seus compromissos – em um contexto de exceção. E, finalizando, a seção “VII- Na cova rasa da história” – cujo título foi extraído de um poema de Affonso Romano de Sant’Anna – inclui poemas que formulam, de variados modos, um balanço crítico dos anos de chumbo, ora reivindicando uma memória ativa dos horrores, ora olhando para um futuro de superação de todo o entulho autoritário legado pela ditadura.

Tais obras trazem para o primeiro plano o vínculo poderoso entre história, memória e poesia que subjaz ao longo de toda a antologia, figurando, no âmago da expressão artística, essa capacidade do poema evocar o passado no presente, contribuindo para a consciência das novas gerações.

O historiador José Luiz Werneck da Silva, em A deformação da história ou Para não esquecer (1985), fez um trabalho exemplar de recuperação de memórias, a partir da produção de depoimentos. Segundo ele, “a muitas memórias coletivas foi imposto o esquecimento, como a dos militantes de esquerda, da guerra revolucionária. Muitas vidas humanas também foram esquecidas ou até mesmo silenciadas definitivamente pela ditadura, dentre os que ‘fizeram vivendo’ as memórias da resistência”[iv]. A maior contribuição desta antologia – Memorial poético dos anos de chumbo –é exatamente reunir em um volume uma quantidade expressiva de poemas que, com toda a diversidade, nos fazem “não esquecer” um regime que censurou, perseguiu, exilou, sequestrou e assassinou pessoas que a ele se opuseram.

Todos os autores e autoras presentes no livro foram, em algum grau, vítimas dessa violência de Estado e tiveram a generosidade de compartilhar conosco, em seus poemas, parte dessas experiências, lançando para nós uma lição e uma tarefa: ditadura nunca mais! A eles e a elas, dedicamos o livro.

*Marcelo Ferraz é professor de teoria literária na Universidade Federal de Goiás (UFG).

*Nelson Martinelli Filho é professor de literatura no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES).

*Wilberth Salgueiro é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referência


Marcelo Ferraz, Nelson Martinelli Filho & Wilberth Salgueiro (orgs.). Memorial poético dos anos de chumbo: uma antologia. Porto Alegre, Editora Zouk, 2024, 414 págs. [https://shre.ink/grfZ]

Notas


[i] Tavares, Neila (org.). Poesia na prisão. Porto Alegre: Proletra, 1980.

[ii] Ellwanger, Raul (org.). Poetas da dura noite. Porto Alegre: Comitê Carlos de Ré, 2019.

[iii] Pucheu, Alberto (org.). Poemas para exumar a história viva. São Paulo: Cult, 2021.

[iv] SILVA, José Luiz Werneck da. A deformação da história ou para não esquecer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 11 (Coleção Brasil: os anos de autoritarismo).


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