Memórias frágeis

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Por VALÉRIO ARCARY*

11 de agosto de 1992: o impeachment de Fernando Collor

Não levo muito a sério as lembranças dos outros. Não confio nem sequer nas minhas. Sei que nossas mentes são incansáveis em atribuir novos sentidos ao que passou. Mas isso não quer dizer que a memória do que foi não seja, de alguma maneira, válida, mesmo quando um pouquinho inexata, desde que seja honesta. Escrever sobre o passado só faz sentido, também, se tivermos a disposição de assumir os erros. Senão, é pomposo e ridículo.

À exceção dos contemporâneos na esquerda, quase ninguém sabe, mas o debate, em dezembro de 1991, no Primeiro Congresso Nacional do PT, sobre a tática a ser adotada diante do governo Collor tem semelhanças com as controvérsias atuais na esquerda sobre o que fazer face ao governo Bolsonaro. A discussão se concentrava em um ponto: devíamos iniciar uma campanha pelo impeachment, ou aguardar as eleições de 1994?

Hoje pode parecer incrível, mas o Congresso do PT votou contra a proposta de iniciar uma campanha pelo Fora Collor. A tática de respeitar o calendário eleitoral apoiada pelo campo majoritário, então conhecido como Articulação, venceu com 70% dos votos dos delegados. As distintas correntes da esquerda petista unidas alcançaram 30%. Foi mantida, até agosto de 1992, uma agitação na forma de “Basta de Collor” e construída uma iniciativa de Frente Ampla na forma de um Comitê pela Ética na política para desgastá-lo.

O principal argumento esgrimido era simples, poderoso e errado: não devíamos apostar no deslocamento de Collor, porque o crescente desgaste do governo abria a possibilidade de uma vitória eleitoral de Lula, que perdeu por pouco as eleições de 1989. Considerando que era muito recente o fim da ditadura, que acabou sem que o governo Figueiredo tivesse sido derrubado com uma transição pelo alto através do Colégio Eleitoral do regime militar, estabeleceríamos um precedente perigoso que poderia ser usado para construir um impeachment de Lula.

O impeachment estava previsto na Constituição de 1988, mas era uma “bomba atômica”. Não devia ser usado. O desafio que ficou para as tendências da esquerda radical era saber se deveríamos ou não acatar a disciplina interna do PT. Não acatamos. E a centelha da mobilização estudantil incendiou a campanha pelo Fora Collor depois que o irmão Pedro Collor, que sofria de uma doença terminal, deu uma entrevista em que acusava o braço direito e tesoureiro do “caçador de marajás” de ser um gangster.

O paradoxo ou crueldade da história é que Collor foi defenestrado, mas não foram convocadas eleições antecipadas. Itamar foi poupado, assumiu, e conseguiu articular uma ampla aliança com a indicação de Fernando Henrique e a estabilização do Plano Real. Foi necessário esperar dez anos para que o desgaste dos ajustes econômico-sociais abrisse o caminho para que o PT e Lula pudessem vencer as eleições em 2002.

The postman always rings twice, ou “o carteiro sempre toca duas vezes”, diz um ditado popular norte-americano. Gosto de recordar esse momento porque vejo alguns veteranos na esquerda preferindo esperar 2022 para medir forças com Bolsonaro. Como se não existisse o perigo de 2022 ser mais parecido com 1994 do que com 2002. Como se não houvesse nem tempo, nem condições de Bolsonaro poder disputar uma reeleição em 2022. A história ensina que a possibilidade de derrotar o bolsonarismo não deve ser desperdiçada, e Mourão pode ser poupado. Revela, também, que a tentação de uma Frente Ampla com dissidentes da classe dominante é uma armadilha. Porque pode ser uma escada que facilite o caminho para uma terceira via.

Claro que se trata de outra situação nacional e internacional. O mundo evoluía mal em 1992, com a restauração capitalista e a invasão do Iraque, mas no Brasil a situação era emocionante, e a minha vida pessoal melhorava. Enquanto o martelo da história castigava a esquerda com o fim da URSS, veio o nascimento de minha filha em 1991, intensamente, desejada; o início da experiência docente na Federal, atual Instituto Federal de São Paulo; e a eleição para a Executiva Nacional do PT, em representação da Convergência Socialista.

Comecei a lecionar na unidade descentralizada da Escola Técnica Federal, em Cubatão. Não era fácil. Tinha aulas três dias por semana, distribuídas entre os períodos matutino, vespertino e noturno, e enormes janelas, começando às sete horas da manhã, o que me obrigava a levantar às cinco da madrugada, noite fechada mesmo nos trópicos, para chegar no Terminal Jabaquara a tempo de não perder o ônibus das seis da madrugada. Ou então descia a serra pela Anchieta de motocicleta, e voltava pela Imigrantes, 150 Km por dia, ida e volta.

Chegou 1992 e com ele a mobilização nacional contra Collor, oito anos depois das Diretas. Foi a maior luta política dos anos noventa, e acabou sendo o marco de ruptura da minha militância com o PT. Minha presença na Executiva Nacional colocou sobre os ombros o peso da responsabilidade de ser um dos porta-vozes da campanha pelo Fora Collor.

Lembro com satisfação a manhã do dia 11 de agosto de 1992. Era um dia luminoso de inverno paulista, com aquele céu azul. Acordei cedinho para ir dar aulas, subi na moto e fui pela marginal Tietê, até que, quando cheguei no acesso da Avenida Tiradentes, por impulso, entrei e fui até Nove de Julho na direção do MASP. Lá estava prevista naquela manhã de dia dos estudantes, a manifestação convocada pela UNE.

Quando me aproximei do caminhão, lá em cima estava sozinho Lindbergh Farias. Nunca tínhamos estado juntos. Para minha surpresa, ele me reconheceu e convidou para subir. Lindbergh agitava, incansável, como uma “força da natureza”. Mas já não aguentava mais falar sozinho. Ainda não eram oito horas da manhã. Nenhum deputado presente, na verdade, ninguém sequer com mais de quarenta nos subiu no caminhão naquele dia.

Em duas horas éramos dezenas de milhares, possivelmente, mais de cinquenta mil. Descemos a Brigadeiro na direção do centro e, de repente, na altura do Bixiga, aparece Fafá de Belém para cantar o hino nacional. Por que o hino? Ideia dela, possivelmente, mas a juventude carapintada, embalada pela repercussão da minissérie Anos Rebeldes na televisão que retratava 1968, adorou.

Há sempre algo de uma alegria jovial, risonha e feliz nas mobilizações de rua quando as pessoas, até então politicamente inativas, descobrem a potência de sua ação coletiva. E não havia nem sombra de repressão. A Polícia Militar paulista, a mesma que iria invadir o Carandiru, liderada por Fleury, dois meses depois em outubro, não ameaçava. Éramos muitos, mas ao mesmo tempo éramos uma só vontade. Lindbergh transbordava de entusiasmo. A avenida explodia de forma avassaladora. Era claro que a campanha Fora Collor tinha mudado de patamar. A partir daquele dia, foi um processo breve, rápido, fulminante. Dia 25 de agosto o Anhangabaú inteiro, talvez meio milhão de pessoas ouviram Chico Buarque cantar a Gota d’Água, e Lula foi ovacionado.

Em semanas alguns milhões tinham ido às ruas. No dia 29 de setembro a Câmara de Deputados abriu o processo e impeachment por 441 votos a favor e 33 contra. No dia 29 de dezembro, quando do julgamento no Senado Collor renunciou.

Foi um momento chave para a minha geração. Em especial, para aqueles com quem compartilhava a militância na Convergência Socialista. Tivemos um grande acerto tático e dois erros estratégicos graves, porque irreparáveis, nas consequências. Acertamos que era possível derrubar o primeiro presidente eleito depois de três décadas. Mas: (a) erramos ao subestimar a possibilidade de estabilização democrático-liberal em um país da periferia; (b) erramos ainda mais em apostar na possibilidade de disputar pela esquerda a influência de massas ao PT; (c) erramos ao não sermos capazes de evitar a explosão da corrente revolucionária, essencialmente, latino-americana, em que nos inseríamos.

Na raiz destes erros estava uma interpretação objetivista do marxismo. O objetivismo é um erro metodológico, um excesso de determinismo, um tipo de doutrinarismo. Consiste na secundarização ou desvalorização das condições subjetivas. A superestimação da maturidade objetiva da crise para a precipitação de situações revolucionárias se alimenta de uma visão catastrofista do capitalismo. Mas os erros intelectuais de análise e de perspectivas são sempre, também, condicionados por pressões sociais.

Claro que tudo que acontece na história pela primeira vez é muito difícil de compreender. Na avaliação da dinâmica histórica dos regimes democráticos liberais pesou muito o inesperado, inusitado e imprevisto do que veio a ser a longa estabilidade dos regimes democrático-liberias na América latina, até que se abriu a segunda década do século XXI, com os golpes de Estado institucionais.

Leon Trotsky tinha previsto nos anos trinta, em uma conversa com o sindicalista argentino Mateo Fossa, que era improvável que nos países periféricos fossem possíveis regimes democráticos liberais longevos, como aqueles que a Europa conheceu antes da Primeira Guerra Mundial. Essa era a nossa perspectiva estratégica. Apostávamos na iminência de uma situação revolucionária no Brasil e na Argentina. A explosão social proletária levou à antecipação da posse de Menem na Argentina, antes que Alfonsín tivesse completado seu mandato, e o gatilho da explosão do movimento estudantil no Brasil arrastando centenas de milhares nas ruas e impondo o impeachment de Collor nos embalava. Nos impressionamos e erramos.

O segundo erro foi a subestimação da força do PT e do apoio à liderança de Lula. Acreditávamos que, diante da gravidade máxima da crise econômico-social inflamada pela superinflação, e da linha quietista que saiu vitoriosa no I Congresso do PT, não era razoável aceitar as condições exigidas pela Articulação para permanecer como uma corrente interna “invisível” diante dos movimentos de massas. O que aconteceu na sequência demonstrou que estávamos errados. A direção majoritária do PT se relocalizou a partir de agosto de 1992, chegou atrasada, depois que a UNE acendeu a centelha, mas apoiou as mobilizações pelo Fora Collor. Lula foi o principal orador na Candelária e no Vale do Anhangabaú.

O resumo da ópera é que derrubamos Collor, uma vitória tática, mas sofremos uma derrota estratégica. Tivemos que esperar dez anos pela eleição de Lula em 2002. Nem é preciso lembrar que nada disto foi fácil. Dez anos é muito tempo. Quando as pessoas da minha geração dizem, com ligeireza, que algo não foi fácil, não quer dizer somente que foi difícil. Quer dizer que foi muito ruim. Ou uma merda mesmo.

Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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