Por BRUNO BONCOMPAGNO*
O fetiche da mercadoria no século XXI: como o capitalismo esconde exploração, dependência e risco geopolítico por trás de uma simples caneta
1.
A injustiça segue plena num mundo que não cansa de se deteriorar. A sociedade permanece cega acerca das consequências nefastas de seus atos. Mesmo que pareça inofensivo e banal, a maior parte do que fazemos gera uma contraparte negativa. A troca, longe de equivalente, representa uma hierarquia e desagua no progressivo cerceamento das oportunidades de muitos, ao bel prazer de poucos.
Karl Marx conceituou o ofuscamento das relações sociais sob o signo da troca de mercadorias, ainda no século XIX. A chamada fetichização das mercadorias diz sobre pelo menos dois processos concomitantes: a perda do que é explícito e a valorização daquilo que não existe.
Tudo que é vendido chega nesse estágio final após uma longa sequência produtiva. No século XXI, essa sequência é internacionalizada e interconectada com as esferas bancárias e financeiras.
A caneta vermelha, com a qual escrevo esse texto, foi feita no Brasil. Seu insumo plástico é proveniente da extração e refinamento do petróleo, também brasileiro. A manipulação química do polímero do plástico, sua tecnologia e posterior produção, são importadas de países da Europa e, mais recentemente, da Ásia.
As máquinas envolvidas no processo industrial são feitas de aço, ferro, entre outros minérios cuja origem é internacional. Um banco possibilitou que a BIC tivesse crédito o suficiente para prosseguir seu ciclo produtivo, e esse empréstimo deverá ser pago com juros. A BIC não é listada na bolsa de valores brasileira, mas imaginemos que fosse: a receita da BIC, operacional e financeira, serviria, por fim, para retornar o investimento de seus acionistas, ou seja, deve dar lucro.
São milhares de funcionários, trabalhadores, que se põe em atividade até que surja essa simples caneta, que é vendida numa loja como a Kalunga, que terá, por si, uma organização semelhante à descrita.
Quando comprei a caneta não pensei em todas as camadas produtivas impostas para que ela estivesse ali, pronta para ser utilizada. As relações humanas interpoladas durante esse longo processo são esmiuçadas em relações de trabalho. Se em alguma parte desse indecifrável esforço algo esteve de fora dos termos legais, nunca saberei.
Quanto mais adiante caminhamos nesse intrincado processo, mais a mercadoria esconderá sua real natureza, que é ser fruto do trabalho humano. Sob a premissa necessária do lucro a produção é feita e, quando bem sucedida a venda, temos a primeira parte da fetichização.
Se eu estivesse na Kalunga e concluísse que ali não teria a caneta que me servisse, tal como a Zara às vezes não oferta todas as roupas que eu quero, eu precisaria buscar outra caneta em outra loja. Inúmeras variáveis viriam ao cérebro para terminar essa compra: o preço, a qualidade, a marca e o status derivado da caneta. Uma simples caneta é sim, dependendo da loja, sinal de que o indivíduo pertence à determinada classe social. Direcionando-me à Swarovski, pagando duzentos reais numa caneta, que também desconheço o processo, escolhi pelo bem de luxo, cuja qualidade inegável é de poder ser reconhecido, por um outro pertencente à alta classe, que sou um igual.
2.
A mercadoria recebe um poder metafísico. O indivíduo não depende mais de seu trabalho, de seus valores e moral, ou de sua família, para comprovar um certo estilo de vida. Basta comprar tal marca de carro, de camisa e terno, de caneta, comer em certo restaurante e andar em certa região. Vendida à vista como qualquer outra, mas fonte de diferenciação numa sociedade de classes.
Os dois processos seguem em conjunto, invertendo constantemente suas funções. Todavia, são eternamente complementares no aprofundamento das desigualdades. Saberemos cada vez menos quem produziu nossos bens. Uma maioria ingênua nem desconfia sobre os sweat shops que servem à gigantes como a Shein. Uma minoria má intencionada compra diamantes raríssimos, minerados em condições desumanas na África, tudo pelo reconhecimento alheio.
O termo utilizado por Karl Marx provém de descendência religiosa. Havia um fetichismo sobre ícones religiosos, como os de feito de madeira, que possuíam poderes mágicos atrelados à sua existência. A mercadoria, no capitalismo, segue à risca essa lógica. Por isso Marx afirma que a coisa mais comum em nosso mundo, nossos bens que utilizamos e consumimos, são hieróglifos modernos: é exacerbadamente difícil reconhecer tanto a origem quanto a natureza daquilo tão próximo e necessário para a nossa sobrevivência. A imediatez presente na compra e venda de mercadorias converge à ofuscação da realidade.
Essa maioria que consome as roupas da Shein é trabalhadora e participa ativamente num processo que piora sua condição. Mesmo que não aparente assim, e que isso dure prolongadamente, a natureza desse sistema é unívoca: produzir mais com o mínimo possível. A malha industrial segue se automatizando e aumentando sua produtividade, precisando de cada vez menos trabalhadores envolvidos no processo.
Portanto, a mercadoria esconde seu potencial agressivo. Se o lucro é a razão de ser do mercado capitalista, temos que a empresa que oferece o menor preço e é a mais produtiva possível será a vencedora, independente de quantos ela demitir e outros quantos ela expropriar.
Ademais, dada a internacionalização produtiva, oriunda principalmente da final do século XX, tudo que compramos é, em algum ponto, importado. O comércio internacional, importante desde o tempo das Grandes Navegações, é atualmente a esfera essencial de nossas vidas. Para o ciclo produtivo continuar, insumos do mundo inteiro devem chegar aos estoques dos grandes industriais.
3.
Num país como o Brasil, que depende da importação para viver, o bloqueio dos mares significaria, à curto prazo, uma derrocada ao caos.
Desindustrializado e dependente até de gêneros alimentícios importados para compor a cesta básica do cidadão. Dependente também de multinacionais para o emprego de boa qualidade e salário, que dinamizam uma economia extremamente precária como a brasileira. Um choque causado por Donald Trump após o anúncio de suas tarifas a tudo e todos poderia levar o nosso país ao brejo, rapidamente.
A China é o nosso maior parceiro comercial e, pelo que aponta a trajetória, nossa relação político-comercial crescerá. Não obstante, estamos muito perto dos Estados Unidos e ainda somos seu jardim, como bem demonstrado nas falas do ex-presidente Jair Bolsonaro, e de seus filhos e seguidores fanáticos. Fortalecer esse laço é dar mais um passo na independência dessa nação, iniciada em 1824, intensificada em 1930 e invertida sua ordem em 1964.
Advirto mais uma vez ao perigo do fechamento de portos pela marinha norte-americana. Na Segunda Guerra Mundial houve uma situação menor, comparada em tamanho, mas que resultou num dilema final para o então presidente Getúlio Vargas. A marinha norte-americana sequestrou um navio de armas, que o Brasil havia comprado da Alemanha (para defesa nacional), na costa Portuguesa.
O governo brasileiro condenou o ato e disse que, se aquilo não fosse revertido e indenizado, entraríamos na Segunda Guerra ao lado dos alemães. O resultado felizmente foi positivo e os EUA cederam sua posição.
O perigo, porém, está mais vivo do que nunca. Nossa indústria militar, em todo seu escopo, não chega aos pés do poderio norte-americano. Caso escolhêssemos, numa situação de guerra mundial, o lado do sul-global, composto pelos BRICS e outras nações subdesenvolvidas, poderíamos ser isolados do comércio e sufocados por todos os lados por esse vizinho continental.
A mercadoria comprada num supermercado como o Carrefour não deixa explícito que a marca é francesa e a maioria de seus bens são produzidos externamente. A própria agricultura brasileira necessita existencialmente de fertilizantes produzidos na Rússia.
Somos fadados à dependência enquanto não tivermos um plano nacional de desenvolvimento. Não se enganem com declarações de soberania, estamos muito longe disso.
*Bruno Boncompagno é graduando em economia na Facamp.