Metrópole à beira-mar – O Rio moderno dos anos 20

George Grosz, Blood Is the Best Sauce (Die Kommunisten fallen - und die Devisen steigen) from the portfolio God with Us (Gott mit uns) 1919, published 1920
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Por MARCOS SILVA*

Comentário sobre o livro de Ruy Castro

Tudo é belo nesse livro: capa, imagens internas, texto entre reportagem e crônica, a própria cidade. Escrito numa época em que o ainda bonito Rio de Janeiro tanto sofre com milicianos, governantes corruptos, empresários omissos e outros descalabros nada modernos, o volume fala de um sonho bom, festivo, esplendor, espetáculo da riqueza.

Parece uma versão brasileira dos Roaring Twenties ou de A moveable feast – a segunda expressão é título do livro póstumo de Ernest Hemingway sobre Paris na mesma época (HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Civilização Brasileira).

Jornalista, Castro não é nem se diz historiador. A Grande Guerra (1914/1918) lhe parece decisão de governantes ou Estados nacionais como sujeitos; a Gripe Espanhola é experiência que atinge igualmente todos os grupos humanos (hoje seria “no mesmo barco”), sem nuances de tratamento ou perspectivas de sobrevivência entre eles.

Não há classes sociais no livro; a primeira menção à impossibilidade de fazer algo devido à falta de dinheiro surge na p 98; no caso, Eugenia Brandão, depois Eugênia Álvaro Moreyra, não ter frequentado escolas por ser órfã de pai desde os 10 anos; a maioria das crianças brasileiras com pais vivos experimentava essa impossibilidade.

Embora Ruy diga que a guerra foi o desfecho da Belle Époque, tal expressão finda por sintetizar tal profusão de beleza. E, a prenunciar uma polarização entre Rio de Janeiro e São Paulo, o livro Há uma gota de sangue em cada poesia, de Mário Sobral (pseudônimo de Mário de Andrade), não consta como manifestação brasileira antibélica.

Paira uma forte dose de “coluna social” (gênero jornalístico valorizado naquele Rio de Janeiro, dedicada a festejar ricos e famosos) na obra, que descreve cotidiano e vida privada desse universo – o referido espetáculo dos que tinham tempo e dinheiro para aquelas sedas, aqueles drinks, aqueles hotéis, aqueles lazeres. Mesmo no século XXI, expressiva parcela da população carioca não dispõe de água encanada nem rede de esgoto, mas isso desaparece nas vagas alusões do volume a pobres genéricos.

Castro apresenta seu Rio de Janeiro através de personagens estratégicos, com ênfase em ricas anfitriãs controladoras de cenários culturais, quatrocentões de sobrenomes sonoros e negros e mulatos bem-sucedidos nas altas esferas sociais, sutil negação de racismo e outros preconceitos; João da Cruz e Sousa, que publicou Missais e Broquéis em 1893, não foi convidado para integrar a Academia Brasileira de Letras, criada em 1897; mas a integração do negro brasileiro à Imprensa é reafirmada por Ruy na p 338. Mais alguma má vontade diante dos socialmente fracassados, situação vista como problema pessoal de cada um; cabe indagar se tais pessoas eram apenas fracassadas.

João do Rio e Lima Barreto, situados em escalas opostas nessas avaliações, tiveram seus textos pouco interpretados, apenas referidos. [1] José Oiticica (1882/1957), descrito por Castro, era anarquista, ateu, defendia “divórcio (…), amor livre (…) uniões sem casamento (…), sequestro dos bens da Igreja católica (…), reforma agrária, o calote da dívida interna (…)”. O jornalista conclui que “seu outro lado – seu exato avesso – o salvava (…) brilhante professor de filologia e linguística no Pedro II. Pregava obediência aos escritores clássicos e aos cânones da língua (…). Casado com todas as formalidades civis (…)” (CASTRO, p. 95/96).

Entendo que, ao invés de o professor salvar o anarquista, cada “lado” existia por causa do “outro” do mesmo. E por que considerar aquela militância uma “perdição”? A resposta provável está na identificação de Ruy com valores e instituições combatidos pelo anarquista – família, Igreja Católica, Estado, propriedade –, o que é seu direito como militante conservador.

Castro interpreta Anarquismo e Socialismo (mais Comunismo, depois) no Brasil como frutos de difusão europeia através da imigração; separa “a maioria desses imigrantes (que) se dedicaria a ganhar pacatamente a vida” dos anarquistas, autores de atentados. Perde de vista nuances entre diferentes correntes do Anarquismo, alheias a tais práticas, e estima o conjunto daqueles homens e mulheres em “duzentos militantes no país”. Registra depois as greves de 1917 e 1919 em Rio de Janeiro e São Paulo, falando em 50 mil trabalhadores paralisados na última data, resultado espantoso para a ação de apenas duzentos militantes…

Jovens talentos, quase todos com formação universitária, períodos de estudos na Europa e prestígio em ascensão (Ronald de Carvalho, Dante Milano, Manuel Bandeira, Alberto Di Cavalcanti etc.), mereceram outra acolhida no livro: “Nenhum deles tinha problemas de subsistência”, trunfo e qualidade (CASTRO, p. 123).

Di Cavalcanti merece especial atenção como articulador da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo: incentivou Anita Malfatti a expor seus quadros expressionistas, apresentou Oswald de Andrade a Malfatti, sugeriu aquela atividade a Paulo Prado (que arrebanhou os patrocinadores paulistas), garantiu a presença carioca no evento, com nomes tão importantes quanto Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, dentre outros.

A forte presença de Di Cavalcanti na Semana de Arte Moderna é tradicionalmente reconhecida. A ênfase de Castro significa ressaltar a primazia do Rio de Janeiro na modernidade brasileira. De quebra, posturas conservadoras de Mario de Andrade são realçadas, com ênfase em moralismo católico, sem menção a homoerotismo.

Valeria a pena pensar num processo que ultrapassasse a dualidade Rio de Janeiro/São Paulo e abarcasse o país: Pará (Ismael Nery – referido em fotografias e texto, já na época em que morava no Rio de Janeiro), Rio Grande do Norte (Luís da Câmara Cascudo), Pernambuco (Vicente do Rego Monteiro, mencionado em texto, com ênfase em Paris), Minas Gerais (Carlos Drummond de Andrade, citado em texto), Rio Grande do Sul (Augusto Meyer) e outros. Câmara Cascudo garantiu o contato entre Mario de Andrade e vanguardistas argentinos, com quem se correspondia. Tais estados não eram satélites de São Paulo e Rio de Janeiro, a Modernidade podia nascer de todos.

As informações sobre mulheres escritoras e pioneiras feministas ficam restritas ao universo das elites, sem menção ao Anarcofeminismo como universo das demandas específicas de trabalhadoras por direitos. Quando fala que “As mulheres do Rio (…) estavam saindo para trabalhar”, o autor evoca “escritórios, lojas e serviço público” (p. 275), desconhece as fábricas e a lavoura das mais pobres desde antes.

Em sentido similar, os comentários sobre o campo teatral ignoram encenações em espaços alternativos às salas formais, parte da militância anarquista, socialista e comunista. Uma das feministas de elite, Deolinda Daltro, foi satirizada por Lima Barreto no romance Numa e a ninfa através da personagem Florinda Seixas, que liderava manifestações públicas de indígenas embriagados – Castro não registrou isso, embora indique o livro (p. 348). Ao mencionar Chico Guanabara, torcedor do Fluminense, “mestiço, profissão capoeira – valentão de aluguel (…) quase meliante” (p. 297/298), o personagem Lucrécio Barba de Bode, do mesmo romance, com alguns desses traços e falta de futuro, também poderia ser lembrado.

O escritor apresenta farta Literatura erótica produzida na época e conclui que “o sexo, mesmo clandestino, não era pecado”, embora destaque uma revista do gênero com o nome A maçã, alusão a culpa bíblica: o pecado excitava. E a adjetivação sobre essas obras (“quase todos magníficos”, p. 228) mantém o leitor carente de argumentos. O problema se repete na afirmação sobre “Je ne regrette rien”, de Louis Guglielmi e Edith Piaff, ser plágio de “Amar a uma só mulher”, de Sinhô (p. 379), que seria mais compreensível se acompanhada por partituras e identificação de notas e compassos.

O livro se encerra com a chamada Revolução de 1930, sem mencionar a quebra da Bolsa de New York em 1929 e a grande crise econômica mundial que se sucedeu a ela. Uma afirmação final sintetiza a concepção de Rio de Janeiro como centro do país: “O Rio fizera sua parte – tocara o Brasil para a frente.” (p. 426). Sendo uma cidade que recebia brasileiros de todos os estados e estrangeiros de muitos países, quem tocou o Rio para a frente?

Foi uma modernidade sob Lei de Repressão ao Anarquismo (governo Epitácio Pessoa), Estado de Sítio (governos Pessoa e Arthur Bernardes) e Lei Celerada (governo Washington Luís), mas isso quase não aparece ou figura nas páginas de Castro.

O Rio de Ruy é fascinação e fait divers.. [2] Tempo belo? Para a maioria, talvez fosse temporal mesmo…

*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH/USP.

Referência


Ruy castro. Metrópole à beira-mar – O Rio moderno dos anos 20. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.

Notas


[1] Não houve tempo para Ruy incorporar, por exemplo, SANTOS, Poliana. O povo e o paraíso dos abastados – Rio de Janeiro, 1900/1920 – Crônicas e outros escritos de Lima Barreto e João do Rio. Tese de doutorado. FFLCH-USP.

[2] Cf. BARTHES, Roland. “Estrutura dos fait-divers”, in: Ensaios críticos. Tradução de Antonio Massano e Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2009.

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Vale perceber que nas manifestações sobre a contrariedade conservadora e liberal ao PL, acima expostas, não há nenhuma tentativa de compreender as razões efetivas pelas quais a contrariedade se explicitou, da qual geraram, inclusive, mobilizações de rua de muitos motoristas. As reações às contrariedades rejeitam qualquer grau racionalidade aos opositores e transferem para estes a sua própria racionalidade. Na lógica dos defensores do PL, se o PL avança em direitos e alguém é contra é porque ou não entendeu bem o PL ou o é porque quer sua intenção é impedir que os avanços sejam consagrados ou que o governo obtenha proveito político com a aprovação do PL. Esta avaliação representa uma total abstinência analítica. A primeira grande constatação que se precisa realizar e que explícita essa abstinência diz respeito ao movimento de colocar como um mesmo objeto, PL e governo, fazendo com o que coloque em debate é a governabilidade e não a pertinência do conteúdo do PL. O que importa, concretamente, é a discussão acerca do conteúdo do PL e seus possíveis efeitos na realidade concreta das relações de trabalho. Mas, o que estas avaliações vislumbram é impedir desgastes à governabilidade. Então, nesta perspectiva passa a ser preciso dizer que as objeções ao PL são da mesma ordem, ou seja, que não dizem respeito ao conteúdo, ou que falseiam o conteúdo e se destinam, unicamente, a desestabilizar o governo. A adoção desse método para desviar o foco do debate sobre o conteúdo pode ser constatada pelo fato de que as manifestações oficiais de defesa do PL tomam como alvo apenas os argumentos de conservadores e liberais, de modo a fazer transparecer que, de fato, a contrariedade é meramente um ato político partidário. Veja-se que a Nota das Centrais Sindicais, expedida em 05 de abril deste ano, “dialoga” apenas com as objeções vindas de conservadores e liberais, muito embora, inúmeros argumentos muito distintos contra o PL já tenham sido explicitados por acadêmicos(as), pesquisadores(as), juristas, sociólogos(as) e entidades e movimentos do mundo do trabalho, além de diversos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, da categoria de entregadores (os quais não aceitaram a proposta de regulação do governo, cabe lembrar), todo(as) ligados(as) ao pensamento de esquerda. Primeiro, a Nota das Centrais aprofunda o descompromisso com a realidade, quando diz, por exemplo, que “o trabalho autônomo, assim devidamente caracterizado, “passa a ser considerado como uma relação de trabalho” entre a empresa que opera o aplicativo e a pessoa que trabalha de forma autônoma”, como se a exclusão da relação de emprego, como todos os direitos daí consequente, fosse uma vantagem, ou que o PL garante “uma remuneração base de R$ 5.650,00”, quando, de fato, 3/4 desse valor, segundo os termos do próprio PL, destinam-se à reposição dos custos do trabalho, resultando em uma efetiva remuneração, pelo número de horas de trabalho indicado na referida Nota, no importe de R$1.412,00. Mas o mais grave mesmo, como dito desde o início deste texto, é a postura assumida de não tentar compreender as motivações, ligadas ao conteúdo, que levam conservadores e liberais a serem contrários a um Projeto de Lei que, como se sabe, atende aos interesses destes segmentos ideológicos. Por certo, os defensores do PL não vão reconhecer isto e aí já se tem um vício primário incontornável, que é motivador de todos os demais desvios de avaliação. Ora, o PL ao negar o reconhecimento da relação de emprego e de, consequentemente, afastar a aplicação das garantias fixadas na CLT e em todas as demais normas trabalhistas, sobretudo, constitucionais, vai na direção do que liberais e conservadores vêm preconizando a décadas e que não conseguiram levar a efeito, nem mesmo na “reforma” trabalhista de 2017, apoiada pelo governo golpista de Michel Temer, e no Projeto da Carteira Verde e Amarelo, do governo ultraliberal e fascista de Jair Bolsonaro. Ocorre que os conservadores e liberais têm efetivas razões para se posicionarem contra o conteúdo do PL e a negação proposital dessa percepção é denunciadora de uma limitação que, gravemente, há muitos anos afeta uma certa parcela da esquerda brasileira. Afinal, por que liberais e conservadores são contra o PL? Eis a questão, que precisa de uma análise mais detida, pois algumas lições e apreensões podem ser dela extraída, como veremos. 4. Primeiro, o fato de se colocarem contra um projeto de lei que atende o seu ideário está relacionado a um ideário que há muito foi abandonado por um setor da esquerda e que acabou, de certo modo, sendo apropriado pela direita: a utopia. Os governos conservadores e liberais têm sido radicais nas defesas de suas pretensões, chegando mesmo, muitas vezes, a falar em “revolução”. Fato é que estes segmentos, desde o enfraquecimento da utopia socialista, abandonaram a postura defensiva e passaram ao ataque declarado. Querem e buscam sempre mais: mais lucros; mais privilégios; mais irresponsabilidade social; mais opressão; mais exploração… Ou seja, o PL, ao não reconhecer o vínculo de emprego e afastar os direitos trabalhistas, é muito bom para os seus interesses, mas eles querem mais. Vale, inclusive, perceber que esta parte do PL não é objetada. O que se contraria são as proposições do PL em que se tentam, mesmo de forma bastante tímida, acoplar a algumas fórmulas de cunho social. No entanto, tragicamente, a rejeição a essas vinculações é mais coerente que a sua defesa. Digo tragicamente porque esta situação acaba conferindo à direita, na balança dos argumentos, uma vantagem em termos de razoabilidade. O PL e os argumentos de sua defesa são ruins também por isso. Senão, vejamos. O PL pronuncia que os motoristas são autônomos e ao se estabelecer este pressuposto o que se acolhe são os valores liberais clássicos da liberdade, do individualismo e do empreendedorismo. No entanto, de forma dissimulada, os trata como trabalhadores integrados a uma categoria que se deve mover por espírito de solidariedade e coletivamente, com o gravame de que a organização coletiva preconizada não é aquela que representa o efeito de um movimento espontâneo da categoria e sim uma vinculação imposta de cima para baixo, a partir de estruturas pré-concebidas e que estão atreladas à lógica diversa das relações de emprego. Essa previsão bipolar faz com que a rejeição à vinculação sindical aludida no PL tenha coerência e, isto, aí sim de forma estratégica, mas por culpa do próprio conteúdo do PL, alimenta e reforça a argumentação de direita contra os sindicatos, a sindicalização e a mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, já que o artificialismo e uma captura autoritária constituem a base da vinculação desenhada. Além disso, se o PL reafirma aos motoristas que eles são geridos pela autonomia, expressão máxima da livre manifestação da vontade, estes, então, terão boas razões para acreditar que não lhes pode ser imposta contribuição social, valores pré-fixados do custo do trabalho ou mesmo limites de horas de trabalho. A incoerência do PL, ao tratar dessa figura imaginária do “autônomo com direitos”, mas direitos que, na verdade, não representam inclusão social e melhora das condições de vida e de trabalho, no plano do que se tem constitucionalmente assegurado aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, sendo, em verdade, limitações à livre manifestação da vontade, acaba conferindo motivos suficientes para que liberais e conservadores invoquem coerência e razoabilidade para extraírem do PL tudo (ainda que seja muito pouco ou quase nada) o que transborda da condição de autonomia. Afinal, ao contrário das políticas institucionais desta esquerda burocratizada, guiadas há muito pela lógica do mal menor ou do circunstancialmente possível, a direita não se contenta com pouco. E cumpre perceber essa trágica diferença de horizontes: esta parcela da esquerda diz que o PL é o máximo a que se pode chegar (e, concretamente, já são vários passos para trás); enquanto a direita, já tendo a seu favor) os passos dados pela esquerda, vislumbra passos a mais, até onde a ganância possa alcançar, mesmo que, para tanto, se destruam vidas e o próprio planeta. Isso, aliás, nos obriga a explicitar o quanto são inviáveis os objetivos da direita. Por outro lado, não nos conduz a acreditar que apenas ser resistência à destruição possa ser o nosso horizonte para um projeto de vida e de socialização. No contexto das linhas de delimitação de horizontes previamente traçadas, da esquerda, já no máximo, e da direita, com campo a ser ampliado, o único resultado a que se pode chegar no processo legislativo, sobretudo se considerada a dita “correlação de forças no Congresso”, é do piora do PL, notadamente no aspecto da ampliação da mesma lógica de autonomia plena para outras categoriais de trabalhadores e trabalhadoras. E o pior de tudo é que tendo em mente a governabilidade, baseada na conciliação de classes, o horizonte do mal menor, o desprezo à realização de análises críticas e o abandono das utopias, o que se anuncia é que poderão vir, pelas mãos do governo e com apoio de partidos de esquerda e de entidades sindicais de trabalhadores e trabalhadoras, outras iniciativas regulatórias com a mesma lógica do combate à CLT. 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Por ANTONIO RIBEIRO ALMEIDA JR.* Prefácio do livro recém-lançado de Felipe Scalisa de Oliveira sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um “currículo oculto”. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos. A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial, pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade. Durante muito tempo, o trote pareceu ser “brincadeira”, “comemoração”. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim. Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades. Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda. Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura. Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis implantadas em outros países para combater o trote. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes como tem ocorrido nos EUA. No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar “violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo”. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional. Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade. Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana. O livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal, de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa. O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias. Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte. O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Felipe Scalisa Oliveira aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade. A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Felipe Scalisa Oliveira descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade. Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Felipe Scalisa Oliveira na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.  Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários. Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição. É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho. Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira. *Antonio Ribeiro de Almeida Jr. é professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, autor, entre outros livros, de Anatomia do trote universitário (Hucitec). [https://amzn.to/3vxQXz2] Referência Felipe Scalisa de Oliveira. Trote e totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Editora Alameda, 2024, 432 págs. [https://amzn.to/4cRZiOW] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por WILLYAN ALVAREZ VIEGAS* Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda 1. Um ano e meio após a eleição de Gustavo Petro à presidência da Colômbia, se confirmam tanto a execução do projeto de governo popular apresentado durante a campanha, como os obstáculos prometidos pela oposição às reformas pretendidas pelo governo. Em junho de 2022 Gustavo Petro era eleito pela pequena maioria de 50,44% dos eleitores colombianos. Historicamente na América Latina, as elites liberais e conservadoras frequentemente não reconhecem vitórias eleitorais progressistas por margens pequenas como essa e recorrem à sabotagem e aos golpes brandos ou de força contra governos legitimamente eleitos, como ocorreu recentemente em países vizinhos da região. Desta feita não poderia ser diferente. O primeiro ano de Gustavo Petro no governo foi marcado pelos ataques incessantes das elites tradicionais colombianas através do poder midiático e institucional que têm por objetivo desconstruir a figura de Gustavo Petro, líder popular que permitiu a esquerda governar o país pela primeira vez na história. A política colombiana é caracterizada por um histórico domínio liberal e conservador que impediu a ascensão de líderes progressistas no Estado, em muitos casos através do uso da força. O caso mais emblemático foi o de Eliécer Gaitán, candidato com forte apelo popular que propôs reformas sociais estruturais, assassinado em 1948 para impedir sua eleição ao governo naquele ano. A partir de então as disputas políticas colombianas ficam marcadas pela forte violência e pela partilha do poder entre o partido liberal e o partido conservador, restando à grande parte da esquerda recorrer à luta armada nas décadas seguintes. Gustavo Petro foi um desses militantes. Durante os anos oitenta integrou o M-19, movimento revolucionário que buscava subverter o poder oligárquico colombiano sustentado com forte apoio dos Estados Unidos. A imagem de guerrilheiro foi extremamente explorada pelos opositores do governo e pelas grandes empresas de mídia colombianas. Em contraste, vendia-se durante as eleições a imagem de engenheiro responsável e empreendedor para o candidato direitista Rodolfo Hernández que teve pouco mais de 47% dos votos. A eleição de Gustavo Petro ocorreu ainda como um desdobramento das revoltas populares do ano anterior contra o ex-presidente Iván Duque que ficaram conhecidas como estallido social. O grande movimento que se opôs ao governo autoritário de Iván Duque conseguiu institucionalizar boa parte das suas pautas através da candidatura de Gustavo Petro. Contudo, tal candidatura foi costurada em uma ampla aliança entre os setores da esquerda com componentes de centro e direita formando a coalizão “Pacto Histórico”. A chapa foi composta também pela candidata à vice-presidência Francia Márquez, primeira mulher negra a ocupar o cargo, militante popular e advogada defensora das comunidades pobres e do meio ambiente contra os abusos das empresas mineradoras. A candidatura de Francia Márquez marcou o caráter profundamente popular a que o novo governo se propunha. Apesar de eficaz eleitoralmente em 2022, a frente ampla conformada para a eleição trouxe consigo as contradições que levariam à debilidade do governo no presente. A estratégia de conciliação da campanha de Gustavo Petro que incluiu setores da direita tradicional colombiana no Pacto Histórico mostrou rapidamente suas limitações durante o primeiro ano de mandato. Gustavo Petro optou sem hesitações por preservar o projeto popular de governo que atende aos anseios de suas bases sociais em detrimento de uma governabilidade mais estável através da manutenção das concessões aos aliados momentâneos que compuseram o Pacto Histórico. Dessa forma, Gustavo Petro levou adiante um projeto reformista de vulto que tem por objetivo avançar em amplas conquistas de direitos sociais para as camadas mais pobres do povo colombiano. 2. O primeiro ano do “governo da mudança”, slogan adotado pelo mandato, se concentrou nas propostas de reforma sanitária, trabalhista e previdenciária, principalmente, e nas políticas de pacificação e transição energética. Tais pontos são extremamente sensíveis às elites colombianas temerosas de qualquer democratização de áreas nas quais são historicamente privilegiadas. O que deu origem a uma grande oposição midiática e parlamentar desde os primeiros meses de governo. Gustavo Petro deu o tom inicial de seu governo com a apresentação da reforma tributária que teve rápida aprovação no congresso. Essa estabeleceu já para o ano seguinte a taxação da renda dos mais ricos em até 1,5% e dos bancos e instituições financeiras em 5% dos lucros. Além disso, a reforma determinou a sobretaxação de produtos nocivos à saúde, o que ficou conhecido como impostos saudáveis, e da exploração de carvão e petróleo, objetivando desincentivar o consumo e aumentar a arrecadação. Através da reforma, o governo espera aumentar a arrecadação em 20 bilhões de pesos em 2023 e destinar a maior parte desse orçamento para a política de Paz Total. A sobretaxação da exploração de carvão e petróleo também está inserida na política de transição energética proposta pelo governo. Essa prevê o fim da dependência de combustíveis fósseis em quinze anos com a redução gradual da produção desses dois combustíveis. A política se estrutura em cinco eixos principais: maiores investimentos em energias limpas e descarbonização; a substituição progressiva da demanda de combustíveis fósseis; maior eficiência energética; a revisão e eventual flexibilização da regulação para acelerar a geração de energias limpas; e a reindustrialização da economia colombiana. Para tal foi determinada a proibição da exploração de reservas não-convencionais (fracking) e a não concessão de novas licenças de exploração de reservas convencionais. A empresa Ecopetrol deverá dirigir o processo de transição energética se convertendo em uma empresa de energias limpas e renováveis. Com isso, o governo almeja a substituição da energia de origem fóssil principalmente pela solar e eólica. Essa transição se torna difícil pela grande dependência das exportações de petróleo e de carvão, que tem 95% da sua produção destinada ao mercado externo. A Colômbia possui uma reserva de 2,5 bilhões de barris de petróleo e é o 18º exportador do mundo, tendo 4% de seu PIB em royalties dessa produção, sendo 2,4% destinado aos departamentos e 1,5% para o governo nacional, o que possivelmente vai gerar atritos com as lideranças locais. Gustavo Petro teve também como uma de suas primeiras medidas a demissão de cinquenta e dois oficiais generais das forças armadas e da Polícia Nacional, boa parte ligada a violações de direitos humanos, prática extremamente recorrente nas forças de segurança colombianas. O assassinato de lideranças de movimentos sociais é um fenômeno generalizado no país. Além da repressão ilegal perpetrada pelo Estado contra os movimentos sociais e seus líderes, o cenário das lutas sociais é marcado pela presença de diversos grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e à direita colombiana com forte presença no Estado e nos governos locais e nacionais. Essa composição de forças políticas na Colômbia explica em grande parte a relutância dos grupos guerrilheiros em depor as armas e aderir aos acordos de paz com o Estado. Frequentemente os governos nacionais abandonam os acordos, defendendo a retomada da política de enfrentamento bélico que possui forte apelo social nos setores da direita. O governo de Gustavo Petro tem como uma de suas principais propostas a política de Paz Total, através da qual foram retomadas as negociações de paz com as guerrilhas realizadas no governo de Juan Manuel Santos em 2016, cujos acordos foram violados por Iván Duque nos anos seguintes. Como primeiro resultado foi alcançado um cessar-fogo com o Exército de Libertação Nacional (ELN) de seis meses a partir de agosto deste ano e a promessa de retomada de negociações que envolvem o compromisso do governo com diversas questões sociais que compõem as reivindicações do grupo. Esse acordo foi firmado a partir das rodadas de negociação que ocorreram em Havana durante o primeiro semestre de 2023. Para a implantação da política de Paz Total foi criado o Comitê Nacional da Participação com representantes de diversos segmentos como populações dos territórios de conflito, movimentos sociais, sindicatos, empresários e movimentos de vítimas para contribuírem com propostas a serem incorporadas nas negociações dos acordos e na construção da política de Paz Total como um todo. Essa é uma importante ferramenta de diálogo social que potencializa a política de pacificação promovida pelo governo e aumenta as chances de que seja bem-sucedida. 3. Associada à política de Paz Total aparece a nova política em relação às drogas adotada pelo governo. A reversão da política de guerra às drogas, promovida pelos governos desde a década de setenta, foi proposta por Gustavo Petro após cinco décadas de fracassos no combate ao narcotráfico. A guerra às drogas foi um dos principais instrumentos de intervenção dos Estados Unidos na região a partir do governo Richard Nixon em 1971. Os tratados com a Colômbia deram amplos poderes às agências americanas para operarem no território do país sul-americano desde a década de oitenta, possibilitando a intervenção direta e tornando a Colômbia o principal aliado militar dos Estados Unidos na América Latina com a abertura de diversas bases americanas em seu território. Gustavo Petro já no seu discurso de posse apontou para a desconstrução da política de guerra às drogas sinalizando a desarticulação do combate baseado na repressão militar à produção e ao comércio de maconha e cocaína. Em contraposição, o governo passou a encarar o problema principalmente como uma questão de saúde pública e de desenvolvimento no campo. Internacionalmente se posicionou contra a política defendida pelos governos dos Estados Unidos na cúpula do G-20 e nas duas últimas Assembleias Gerais da ONU. Contudo, o projeto de descriminalização e regulamentação do uso e comercialização da cannabis apresentado ao congresso colombiano foi arquivado após chegar à oitava e última rodada de debates no Senado. As mudanças na política de drogas ficam restritas, por enquanto, às iniciativas do governo que não dependem de mudanças legislativas, como a diminuição de operações policiais para o combate ao narcotráfico e a busca pela substituição voluntária dos cultivos. Outro problema associado ao cultivo de ilícitos na Colômbia que está sendo enfrentado pelo governo de Gustavo Petro é a questão agrária. O país possui uma altíssima concentração de terras. 75% das terras produtivas correspondem a pouco mais de 2% dos propriedades e apenas 5% da população detém 87% das terras agricultáveis, segundo o último censo agropecuário do país. Dessa forma, muitos pequenos produtores em áreas isoladas acabam entrando para a cadeia de produção de drogas ilícitas através do cultivo da coca, planta tradicional da região andina, e da maconha. O combate à desigualdade no acesso à terra se torna, portanto, essencial para que os pequenos agricultores não fiquem submetidos ao narcotráfico que controla seus territórios. 4. Objetivando a ampliação do acesso à terra pelos camponeses do interior do país, o governo iniciou um processo de distribuição de títulos fundiários a famílias somando inicialmente 681 mil hectares. O governo vem adquirindo terras improdutivas através da compra em negociação com latifundiários para disponibilização dessas terras para a reforma agrária. Passo importante, porém, ainda muito aquém do necessário para a mudança na estrutura fundiária do país essencial para o combate à fome e à profunda desigualdade que atinge as populações rurais no país. A desigualdade entre as populações rurais e urbanas é um problema que aparece nas diversas propostas de reforma apresentadas pelo governo desde sua posse, como a reforma trabalhista. Essa prevê a formalização do trabalho rural, ainda não incluído na legislação laboral. Além da questão do trabalho rural, a proposta de reforma levada ao Congresso pelo Ministério do Trabalho, reúne noventa e dois artigos que buscam ampliar os diretos trabalhistas do povo colombiano. Estes se concentram na formalização e estabilidade do emprego, no estabelecimento das jornadas diurnas e noturnas, em pagamentos adicionais por domingos e feriados, na diminuição da terceirização e dos contratos temporários, na formalização dos trabalhadores de plataformas digitais, no aumento da licença paternidade e na igualdade salarial de gênero. A reforma sofre forte oposição dos setores liberais e conservadores no Congresso apoiado por entidades patronais e grupos representantes do agronegócio. Essa é a segunda tentativa de reforma trabalhista apresentada pelo governo, já que a primeira foi derrotada no período legislativo anterior no primeiro semestre. A reforma que possuiu maior avanço até o momento foi a sanitária. Apesar de ainda se encontrar em tramite, 82 dos 143 artigos da reforma já foram aprovados e esta segue avançando no Congresso. A reforma sanitária se concentra na ampliação do acesso aos serviços de saúde para uma enorme parcela da população que se encontra aquém da atenção básica. Para tal, prevê o fortalecimento do Sistema Geral de Saúde da Previdência Social para torná-lo universal com foco na prevenção, através de uma rede de Centros de Atenção Primária de Saúde (CAPS) em todo o território com atendimento ambulatorial, emergência, hospitalização, reabilitação, exames laboratoriais e programas de saúde pública. A reforma inclui a diminuição da desigualdade do acesso aos serviços de saúde com o estabelecimento de um CAPS para cada 25 mil habitantes; a criação de um sistema de prevenção de enfermidades, a extinção das Entidades Promotoras de Saúde (empresas que intermediam a prestação de serviços aos cidadãos); a qualificação e acompanhamento de órgãos internacionais, como a OMS e OPAS; a padronização dos valores dos serviços privados; e melhoras nas condições laborais para os profissionais de saúde como qualificação, aumento salarial e autonomia médica. Outro pilar da seguridade social, a previdência também é objeto de reforma pelo governo Petro. A reforma pensional objetiva principalmente a ampliação da cobertura do sistema que hoje mantém uma enorme parcela dos idosos sem acesso à aposentadoria. Através da reforma, todos os contribuintes passariam para o sistema público Colpensiones que seria mantido pelo orçamento público e pela contribuição empresarial e dos próprios trabalhadores. A reforma se estrutura em três pilares: o contributivo, descrito acima, o semicontributivo, para aqueles que chegaram aos 65 anos sem cumprir os requisitos da aposentadoria e o pilar da poupança voluntária que permite ao trabalhador a poupança nos sistemas público ou privado. A reforma segue em tramite no Congresso caminhando para a sua segunda rodada de debates. O conjunto de reformas levadas ao Congresso obviamente trouxe um grande desgaste para o governo durante esse um ano e meio de mandato. As oligarquias rurais, as elites industriais e do setor de serviços, o capital financeiro, comandantes das forças armadas e polícias, lideranças religiosas conservadoras e os principais conglomerados midiáticos desencadearam uma forte oposição às reformas e ao governo de Petro. Iniciaram uma campanha constante de desconstrução de sua imagem tentando repetidamente ligá-lo a escândalos de corrupção. Tática extremamente recorrente contra as lideranças populares na América Latina. 5. Dois episódios em especial trouxeram enorme desgaste ao governo. O caso envolvendo possíveis gravações do embaixador colombiano na Venezuela e o outro sobre o filho de Gustavo Petro, Nicolás, que supostamente teria recebido financiamento ilegal de campanha para o pai. Esses dois episódios, fortemente explorados pelas empresas de mídia de oposição, causaram uma significativa redução do apoio popular ao governo. Esse abalo na imagem do governo e a forte oposição das lideranças locais se refletiu na derrota dos candidatos governistas nas eleições regionais de outubro de 2023. Dos 32 departamentos colombianos, apenas nove foram ganhos por candidatos que se mantêm no Pacto Histórico. E nas 1.100 prefeituras, apenas 21 candidatos apoiados pelo governo foram eleitos. Esse resultado reflete a enorme dificuldade do governo após o racha da coalizão que o levou à eleição no ano passado. O fim da coalizão se deu com a reforma ministerial promovida pelo governo em abril, após a resistência à aprovação da reforma sanitária, que incluiu a substituição da própria ministra da saúde e de outros seis ministros. Essa reforma foi o ponto final na adesão de figuras liberais e conservadoras ao governo. Após esse episódio, Gustavo Petro convocou grandes manifestações de massa em primeiro de maio para aprovação das reformas colocando o apoio popular como fiel da balança, estratégia eficaz até o revés envolvendo seu filho nos últimos meses. Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda. O crescimento do PIB em torno de 1% em variação anual e uma queda na inflação que ainda se mantém em um patamar alto de 10,48% ao ano reforçam os desafios do combate à desigualdade extrema da sociedade colombiana através da aprovação das reformas promovidas pelo governo, da transição energética planejada, da política de pacificação conjugada ao combate à fome e a promoção do acesso à terra e a neutralização dos ataques incessantes das elites econômicas, midiáticas e políticas. Willyan Alvarez Viegas é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado originalmente em Recortes da conjuntura, vol. I, no. 1. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por GERSON ALMEIDA* Quem de nós homologaria um acordo deste jeito? A pergunta do corregedor ecoou no plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em meio à leitura feita pelo juiz Luiz Felipe Salomão do resultado de seis meses de trabalho da corregedoria junto à 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada por Daniela Hartz, a juíza que substituiu Sérgio Moro, quando esse renunciou ao cargo de juiz para assumir o Ministério da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. O acordo investigado “foi construído de forma sigilosa e ilegal”, sendo que o ex-juiz, Sérgio Moro, a juíza Daniela Hartz e o ex-procurador da república, Deltan Dallagnol, então coordenador da Lava-Jato, teriam “atuado de forma proativa e assumiram de forma indevida o papel de representantes do Estado brasileiro junto à Petrobras e aos norte-americanos”, conforme relatório da Polícia Federal divulgado pelo site Poder360, um dos documentos que embasa a decisão do corregedor do CNJ. A decisão do corregedor está sustentada em mais de mil páginas de documentos e provas obtidos ao longo da sua inspeção, o que lhe permitiu afirmar categoricamente “que tudo era feito com sigilo absoluto, de grau 3, sem nenhuma transparência”; sendo que a análise das datas de reuniões e visitas de procuradores americanos ao Brasil confirma um minucioso preparo para “a realização deste desvio multibilionário”. Recursos que foram manipulados de forma consciente “à margem da legalidade, de forma sigilosa e sem moralidade administrativa” para burlar os verdadeiros representantes legais do país e instituir um órgão de “primeira instância como sendo o Brasil”. Depois de esmiuçar as manobras realizadas até chegar à homologação do acordo pela juíza Daniela Hartz, novamente o corregedor pausa a leitura da sua decisão e lança outra pergunta aos seus pares: “e o dinheiro que foi pago aos EUA, também foi para alguma instituição privada, ou foi para os cofres do Estado americano? Uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma resposta que demonstra de forma irrefutável o conluio que estava em execução, que só não foi consumado inteiramente em razão da reação do STF. O que impediu que os cerca de cinco bilhões fossem desviados do Estado e fossem destinados para a fundação privada que os investigados estavam determinados a criar. Com a fundação, eles queriam assegurar um férreo controle privado sobre esses volumosos recursos do Estado brasileiro, o que só seria possível por meio da corrupção da legalidade e da moralidade, obrigação de todos os agentes públicos. O voto do corregedor é tão rico em detalhes e tão farto em provas, que tornou o argumento da defesa de que o conluio não passou de “uma infeliz iniciativa”, numa pífia tentativa de infantilizar a juíza Gabriela e seus asseclas. Ao contrário, o corregedor demonstrou que houve uma ação consciente com vistas à apropriação de recursos públicos para uma instituição privada, pois “se combinava com o americano para se aplicar a multa lá fora para (o dinheiro) voltar e ser destinado à fundação” e a forma de viabilizar esse desvio foi o acordo homologado pela juíza Gabriela Hartz. Depois deste mergulho na “gestão absolutamente caótica” da 13ª Vara Federal de Curitiba, baseado em farta documentação comprobatória – inclusive depoimento da própria Gabriele Hartz que declarou saber não ser de sua competência – o corregedor estava plenamente preparado para afirmar que “não tenho a menor dúvida da participação da juíza no desvio do dinheiro público para a fundação desejada”. O voto foi tão vigoroso que o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, teve que alterar o procedimento usual e votou imediatamente depois para tentar persuadir os pares e abriu dissidência ao voto do corregedor e manifestou posição contrária a todos os afastamentos, sem entrar no mérito das acusações e ressaltando o seu não conhecimento do conjunto do relatório feito pela correição do CNJ. Os argumentos de Luís Roberto Barroso em relação a Gabriela Hartz foram a falta de urgência e o fato dela não estar mais na 13ª Vara, além de ser contrário à decisões monocráticas para esse tipo de caso. Não faltou outra pitada de infantilização da atuação da juíza ao afirmar que “essa moça não tinha nenhuma mácula na carreira pra ser afastada sumariamente”, como se fosse a vida pregressa e não um caso concreto que envolve bilhões em dinheiro e uma relação com país estrangeiro à margem de lei que estivesse em análise. Mesmo que a manifestação de Luís Roberto Barroso tenha sido enfática ao ponto de caracterizar o afastamento dos magistrados de “medida foi ilegítima e arbitrária” e tenha defendido a revogação de todas, a votação no plenário lhe deu uma vantagem mínima de 8 x 7 contra a manutenção do afastamento de Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior; sendo que o afastamento dos desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores (TRF-4) foi mantido com elástica maioria de 9 x 5, em favor da posição do corregedor. Quanto a abertura de Processo Administrativo contra todos, apesar de Barroso ter pedido vistas, alguns votos favoráveis foram antecipados e a maioria construída pelo afastamento dos desembargadores do TRF-4 sugere que dificilmente deixarão de ser submetidos ao processo administrativo, durante o qual o trabalho da corregedoria deverá se impor. Em resumo, a decisão do CNJ é histórica e representa que, aos poucos, algumas das mais importantes instituições do sistema de justiça brasileiro estão retomando um funcionamento marcado pelo devido processo legal e decididas a conter os arroubos autoritários que tomaram conta da Lava-Jato e de importantes setores do judiciário brasileiro, que ainda disputam e são fortes, mas não detém mais o domínio sobre a agenda e a opinião pública que tinham outrora. *Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por CARLA TEIXEIRA* A decisão do de tornar ilícito o porte de qualquer quantidade de droga é negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade O Senado Federal aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), submetida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que torna crime a posse de qualquer quantidade de substância ilícita. Na prática é uma resposta direta à decisão do Supremo Tribunal Federal que julga, desde 2015, a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas, buscando critérios para diferenciar usuários de traficantes. A proibição das drogas, especificamente da cannabis – vinculada por vários estudos históricos e antropológicos aos pretos escravizados do período colonial e imperial, e utilizada nos hospitais de alienados no início da República até que fosse proibida – é mais um expediente do racismo institucional brasileiro. Proibir e criminalizar o porte de substâncias ilícitas amplamente consumidas abre caminho para que sejam utilizadas como moeda em todo tipo de crime, da organização de milícias à invasão de terras demarcadas. Nessa direção, o Estado se converte num agente ativo para prender, matar e construir organizações criminosas essencialmente compostas por jovens negros e periféricos. Estes, sem acesso à educação e oportunidades de emprego digno, tornam-se presas fáceis das organizações criminosas que a cada dia se entranham com mais eficiência nas instituições do Estado, a exemplo do que se passa atualmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com pesquisa de 2023 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 68% dos réus por tráfico são negros; 72% têm menos de 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico. Em apenas 13% dos casos há envolvimento anterior com organizações criminosas. Ou seja, é na prisão superlotada que esses quadros vulneráveis são mobilizados pelos grupos criminosos. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando quase um milhão de pessoas. Além do custo humano, há as expensas econômicas. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revelou que em 2017 o Rio de Janeiro gastou quase R$ 1 bilhão na guerra às drogas, enquanto São Paulo desperdiçou R$ 4,2 bilhões. A aprovação da PEC de Rodrigo Pacheco, aliada à aprovação do projeto que extingue a possibilidade de saídas temporárias dos presídios – parcialmente vetado pelo presidente Lula por ferir os princípios da dignidade humana – aponta para um futuro temeroso de superencarceramento e prováveis rebeliões, com o crescimento das organizações criminosas e das milícias. Tais aspectos contribuem para o fortalecimento dos grupos da extrema direita que, sedutores com suas soluções fáceis para problemas difíceis, apenas têm a ganhar com uma revolta carcerária a nível nacional, uma vez explícita – mas não enfrentadas – as ligações das milícias e das organizações criminosas com quadros parlamentares e da alta burocracia do funcionalismo público. Como apontou Muniz Sodré em seu livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo. A PEC de Rodrigo Pacheco é apenas mais uma manifestação disso: negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade. Essas e outras medidas evidenciam que na democracia do Brasil atual o parlamento é apenas uma Casa para lamentar. *Carla Teixeira é doutoranda em história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por KATIA SANTOS* Homenagem ao lógico e professor da USP, recém-falecido As realizações de Newton da Costa nas áreas da Filosofia, da Matemática e da Lógica tornam supérflua qualquer apresentação minha dos seus méritos. Ele já está de fato consagrado dentro e fora do Brasil, e há inúmeros trabalhos dele e de comentadores à disposição de todos os que quiserem conhecer sua obra e pensamento. Existe, inclusive, um documentário, Espírito de contradição, dirigido por Fernando Severo, onde se pode ver e ouvir o professor falar por si mesmo. No entanto, pela ocasião de sua morte recente, considero importante ressaltar, em poucas palavras, alguns aspectos de sua pessoa que somente aqueles que o conheceram mais de perto saberão. Faço isso, porque a grandeza de seu espírito também se manifesta no modo como se relacionou com inúmeros pesquisadores, alunos e professores. Dentre os muitos e muitos com os quais ele travou contato teórico, estive também eu. Embora não seja afeita a narrativas autobiográficas, vejo como útil falar de alguns aspectos do meu contato com ele. Conheci o professor Newton da Costa no ano de 2015, quando realizava minha pesquisa de doutorado na FFLCH-USP, sobre uma antinomia presente nos fundamentos do pensamento de Arthur Schopenhauer. Ao refletir sobre essa questão, formei a hipótese de que ela poderia ser abordada de uma forma diferente do modo como até então tinha sido, se a lógica paraconsistente, da qual Newton da Costa foi o principal fundador, pudesse ser colocada como sua lógica de base. Sem muita certeza sobre essa possibilidade, entrei em contato com ele, para saber o que achava. Para minha grata surpresa, o professor foi receptivo à minha ideia e me convidou para conversar pessoalmente com ele sobre o assunto. Fiz isso, fui até à sua casa em Florianópolis, e conversamos sobre a questão da filosofia schopenhaueriana que eu estudava e sobre a lógica paraconsistente. Na verdade, eu não sabia à época, mas essas sempre foram características marcantes do professor Newton da Costa, a saber, a abertura de espírito, a curiosidade e o interesse genuíno em problemas filosóficos variados. A questão que eu estudava era desconhecida para ele, porque faz parte de uma temática à qual ele nunca havia se dedicado e que, a princípio, parecia estar completamente fora das suas preocupações lógicas e matemáticas. No entanto, Newton da Costa logo compreendeu as relações que eu fazia entre metafísica, teoria do conhecimento e lógica e, inclusive, apontou a lógica paraclássica como sendo, dentro do campo das lógicas paraconsistentes, talvez a que mais se adequasse à antinomia que eu estudava. Muitos schopenhauerianos e também muitos lógicos não mostraram receptividade ou mesmo compreensão semelhantes: os primeiros, por acharem que o pensamento de Arthur Schopenhauer não tratava de lógica, os segundos, por julgarem que a lógica não se liga a outras partes da filosofia. Houve reações antipáticas e até mesmo furiosas à minha pesquisa. Mas nunca houve hostilidade da parte de Newton da Costa, embora o ambiente filosófico no Brasil seja repleto de descortesia, rivalidade e agressividade entre egos muito inflados. Ele sempre soube lidar com alunos, professores, colegas e colaboradores com interesses muito diversos sem impor suas convicções, sem invalidar as pesquisas dos outros, colaborando em tudo o que estava ao seu alcance. Foi assim que ele sempre lidou comigo, desde que conversei com ele pela primeira vez. Fui em mais uma oportunidade a Florianópolis, quando finalizei meu trabalho de doutorado, para entregar uma cópia a ele, na UFSC, e desde então mantivemos contato frequente por mensagem. Embora já com idade avançada, Newton da Costa nunca deixou de pesquisar, de escrever, de se interessar por filosofia, ainda que se tratasse de algo diferente para ele. Foi assim que dialogamos bastante sobre o filósofo francês Charles Renouvier, sobre o qual ambos passamos a refletir e, inclusive, a produzir juntos. Essa era outra característica de Newton da Costa que vale a pena ressaltar, a saber, sua disposição para adentrar searas novas, para pensar e se aprofundar em temas fora da sua especialidade. Considero essa característica algo notável, porque o mais frequente é que os pesquisadores esqueçam tudo o mais no mundo e olhem única e exclusivamente para a pesquisa iniciada no mestrado ou doutorado, ficando cegos para outras temáticas. Quando isso ocorre é ruim, porque estreita a visão de mundo do indivíduo e o faz acreditar que tudo gira em torno das suas escolhas. A visão de mundo de Newton da Costa, porém, jamais foi estreita. Dentre suas principais preocupações teóricas, dizia ele, estava o problema do conhecimento em geral, e do conhecimento científico em especial. A lógica e a matemática são de fato as bases fundamentais da ciência e de todo conhecimento, e foi justamente nessas áreas que o professor atuou deixando verdadeiras obras-primas, como Sistemas formais inconsistentes e Ensaio sobre os fundamentos da lógica. Qualquer pessoa que se dedique a entender o pensamento de Newton da Costa verá a grandiosidade do que ele realizou, sobretudo quando se reflete sobre o que foi e tem sido a grande problemática da contradição na história da filosofia: o interlocutor aqui é nada menos que Aristóteles. Apesar disso, de tão grandes realizações, não se notava arrogância no seu trato com ninguém, nem ganas de superioridade. Pelo contrário, ele era acolhedor com as pessoas e perseverante na pesquisa, ciente de que a busca do conhecimento é infindável e não se faz sem colaboração. Fará muita falta. *Katia Santos, professora e pesquisadora, é doutora em filosofia pela USP. Nota Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8gKKabtLA_U. 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