Por SANDRA BITENCOURT*
O caso do vídeo, do extremista jovial e perverso, suscitou de um lado teorias de que possa ser fruto de algum tipo de teste ou manipulação da plataforma
Tão expressivo quanto o número de transações via Pix no país, foi o debate, as visualizações e a viralização das críticas e manipulações de uma informação sobre instrução normativa do governo que poderia, supostamente, monitorar as transações financeiras acima de R$ 5 mil reais e cobrar impostos de quem não estivesse declarando os ganhos para a Receita Federal.
Esse é um caso emblemático porque reúne vários fatores e nos brinda com algumas lições: é um caso de manipulação, mas não se tratou de uma Fake News clássica, uma vez que se ancorou em parte de verdade e muito de medo; é revelador da falta que faz um centro de inteligência digital e uma diretriz política do governo mais consistente para compreender percepções, sentimentos e preocupações da vida concreta da nossa gente; é o primeiro caso de viralização depois do anúncio da Meta sobre mudanças no modo de recomendar conteúdos políticos; é inequívoca para finalmente compreender que as formas de disputa mudaram e que as condições de temperatura e pressão de uma extrema direita aliada de grandes corporações sedentas por poder e monetização, nos obriga a mudar de estratégia. Urgentemente.
Podemos recuar um pouquinho no tempo e voltar para 2016, quando o Dicionário Oxford elegeu o termo “post truth” (pós-verdade) como palavra do ano. Assim definida: relativa a ou denotando circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal. Um ano depois, o Real dicionário da língua espanhola definiu como distorção deliberada de uma realidade, que manipula crenças e emoções para influenciar a opinião pública e as atitudes sociais.
De lá para cá a extrema direita exibiu extrema habilidade em explorar essa tendência da pós-verdade. Em parte, porque a mentira costuma ser mais simples, mais barata e menos dolorosa. Sim, produzir verdade custa caro, exige pensamento mais complexo e pode ser frustrante. Quanto mais medo e bizarrice, mais cliques, mais negócios, mais dinheiro, mais poder.
Os que se dedicaram a denunciar e tentar conter a desinformação, estão com a sensação de enxugar gelo. A forma de operar influência nas grandes vitrines digitais, onde poucos são os donos dos holofotes, mudou. O que fazer?
O caso do vídeo, do extremista jovial e perverso, suscitou de um lado teorias de que possa ser fruto de algum tipo de teste ou manipulação da plataforma. A rigor não sabemos e nem saberemos como funcionam exatamente os tais algoritmos que definem o que vemos, quando vemos e se vemos. E essa é apenas uma das dificuldades de entendimento e controle do poder absoluto das plataformas. A mão invisível das big techs define assimetrias e nem nos inteiramos. Pode ser teoria da conspiração que a Meta possa ter impulsionado? Até pode, mas também é fato que há novas regras de recomendação de conteúdo.
O formato do vídeo, o momento escolhido para divulgação e a coordenação estratégica de parlamentares e influencers claro que também contam. Dito isto, claramente houve equívoco e inoperância ao tratar o tema e organizar a disputa em torno dessa agenda. A viralização foi fruto de uma bem-sucedida estratégia política da oposição, mas também foi o primeiro grande caso de conteúdo político viral depois do anúncio do retorno das recomendações no feed.
E no final das contas, nos damos conta de que não estamos tratando apenas de informação e desinformação, mas de propaganda para construir consenso ou desavença social.
A diferença é que o termo propaganda é definido pelo desejo de influenciar o público, para um propósito ideológico ou político que justifica o uso da informação, independentemente de ser verdadeira, completamente falsa ou parcialmente modificada para persuadir. É uma ideia antiga essa da “fabricação de consenso”, constituída pelo sociólogo Walter Lippmann na década de 20 do século passado (Lippmann, 1945). Não é por acaso o recorte de tempo que nos remete às raízes do fascismo e do nazismo. O aparecimento dos meios de comunicação de massa deixou claro, já no início do século XX, que “o conhecimento de como criar consentimento alterará todos os cálculos políticos e modificará todas as premissas políticas” (Lippmann, 1945).
Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud, utilizou as ideias do tio aplicadas ao trabalho de relações públicas, com uma psicologia social em que o comportamento estava ligado a impulsos inconscientes, medos e desejos irracionais e fantasias infantis. Se isso não for o feed de qualquer Instagram da vida, com influencers extremistas, não sei mais…
A propaganda torna-se particularmente relevante nas duas décadas seguintes, não só na divulgação de informações interessadas, mas na estratégia de Joseph Goebbels com a falsificação por todos os lados durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje temos a sociedade da desinformação e dela deriva a nova geopolítica da informação, com vantagem para os feios, sujos e malvados.
As ciências sociais e as primeiras teorias de Comunicação já superaram a ideia do poder da mídia como “balas “mágica” ou injeções hipodérmicas, com a hipótese de um organismo social uniforme e facilmente manipulável se a mensagem apropriada e disseminável fosse encontrada mesmo através de meios subliminares. Mas como o cinismo, o ressentimento e os sentimentos antissistema restauram até mesmo saudações nazistas, não é de admirar que tenhamos regredido em sentido crítico e marchemos, em manada, por apitos e estímulos torpes.
Precisamos de uma explicação mais complexa para os comportamentos e fascínio das massas pela selvageria e o caos que as redes hoje constituem.
A semiótica francesa já abordou com profundidade o fato de que existem significados únicos: cada leitor constrói o seu. Mas se os significados são tão variáveis quanto os públicos, como podemos hoje compreender que a mesma mensagem tenha o mesmo efeito em pessoas tão diferentes ao redor do globo.
Acusações de comer cachorros e gatos, mamadeira de piroc@, são fenômenos que encontram bons receptores mundo a fora. O poder da mídia de impor significados e o poder dos indivíduos para decodificá-los marcou a discussão sobre esta questão nas ciências sociais das últimas décadas. Há poucas dúvidas sobre a importância das elites nessa disputa. Veremos a partir de hoje como um dos maiores impérios da humanidade usará suas corporações para impor o terror na sua cartada final de domínio. Usando também isso, bizarras ideias que nos intrigam que conquistem a crença de alguém.
Eles estabelecem a fábula, a história, a norma ou o discurso social a partir da perspectiva daqueles que são donos delas (as elites económicas e a sua lógica capitalista). Como resistiremos? Para começo de conversa reconhecendo a encrenca em que estamos metidos e a necessidade de reunir inteligência, estratégia e renovado olhar político.
*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).
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